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Interdiscursividade

No documento MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 109-119)

CAPÍTULO III CENAS DA ENUNCIAÇÃO E ETHOS NO DISCURSO DE O

3.3. Análise

3.3.1 Interdiscursividade

Examinaremos, a seguir, a relação interdiscursiva que constrói os efeitos de sentido do discurso, ou seja, os atravessamentos e a ideologia na voz do enunciador, pois devemos olhar para o espaço discursivo (espaço de trocas) e, para atingir nosso objetivo, escolhemos e pusemos em relação às formações discursivas (posicionamentos) para podermos compreender os discursos selecionados.

Nesse âmbito, para procedermos à análise do corpus, entramos no universo discursivo pelo campo do discurso pedagógico. O espaço discursivo será o discurso da coluna Artigo do Mestre Masaharu Taniguchi, publicado na revista Pomba Branca, pois se trata de uma prática discursiva, na SNI, com as seguintes condições de produção: os discursos são recortados de obras do fundador e inseridos nessa coluna. São editados muitos exemplares da revista, que são direcionados, especialmente, às mulheres que, hoje, têm ocupado espaços que, tempos atrás, jamais poderiam ocupar e que, também, participam mais ativamente da sociedade.

Além disso, os ensinamentos veiculados, em O pecado não existe e em O pensamento iluminador e as ciências naturais, por serem de autoria do fundador, de uma forma ou de outra, influenciam o co-enunciador que, por meio dos discursos recortados de obras, das décadas de 1940/1950, e inseridos nas revistas de 2012 e 2013, recebe as mensagens como se fossem atuais.

Assim sendo, consideradas as condições de produção, analisamos os discursos utilizados pelo enunciador para obter a adesão dos co-enunciadores, por meio dos recortes abaixo que recorrem aos discursos religioso, científico e pedagógico, articulando-os como interdiscurso, para legitimar o posicionamento do enunciador. Nota-se, então:

Interdiscursividade com o campo religioso – unidades não tópicas ou discursos paratópicos.

Ao usar discursos desse campo, o enunciador evidencia uma das características da SNI: o sincretismo religioso. Apesar desses discursos não terem sido produzidos, exclusivamente, para a revista Pomba Branca, acreditamos que eles se adaptem a esse suporte e a esse público, devido aos atravessamentos que acessam a memória discursiva religiosa. Como veremos, a seguir:

• Marcas do Budismo:

Quem quiser visualizar o poder de Kanzeon Bosatsu34 durante a meditação deve mentalizar como segue (O pensamento iluminador e as ciências naturais).

Conforme Carlos Alberto Silva35 , Kanzeon Bosatsu, conhecida, ainda,

por Kannon, é uma das divindades do budismo que simboliza o que Nossa Senhora representa para os fieis do catolicismo: o espírito que orienta a Igreja Católica Apostólica Romana.

• Marcas do discurso cristão:

       34

Taniguchi, na Sutra em 30 capítulos, menciona que cada religião dá um nome diferente ao Salvador (Cristo, Buda etc.), porém todos eles são a grande manifestação do amor de Deus. E acrescenta: Todos eles são, portanto Kanzeon Bosatsu, e todas as religiões são uma só. Rendo o meu louvor a Kanzeon Bosatsu, que é a divindade padroeira da Seicho-No-Ie (TANIGUCHI, 2001, pp.19-22). 

35

Preletor da sede internacional e presidente da Associação dos Jovens, SNI. In: <http://carlosalbertodasilvasni.blogspot.com.br/2010/04/kanzeon-bosatsu-deusa-da-misericordia.html>. Acessado em 10.7.2013.

Discurso cristão

O Pecado não existe O pensamento iluminador e as

ciências naturais

Orou, Senhor, padre, cruz, igreja, religião, Deus, culpa, punição de Deus, Cristo, pecados, religiosos, divina, pecador, Evangelho, castigar, filho de Deus e espírito.

Deus, Espírito, Vida, onipresente, alma, Criação, Pai eterno, sagrado e amor.

• Marcas do discurso bíblico:

Discurso bíblico36

O pecado não existe O pensamento iluminador e as

ciências naturais Em João 1:1: No princípio era aquele

que é a Palavra, e ele estava com Deus e era Deus. Ele estava com Deus no princípio.

Cristo nos ensina o seguinte no Evangelho de João: “No princípio era o Verbo (Palavra) e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e nada do que foi feito se fez sem ele”.

Em Mateus 5:45: Dessa forma vocês

estarão agindo como verdadeiros filhos do seu Pai que está no nos céus. Porque ele envia a luz do sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e derrama a chuva sobre os justos e sobre os injustos.

[...] fazendo nascer o Sol sobre bons e maus e mandando chuva sobre justos e injustos.

Em Salmos 23, versículos 1,2: Senhor

é o meu pastor. Ele me dá tudo de que preciso. Ele me leva aos pastos de grama verde e macia para descansar. Quando sinto sente, ele me leva para os riachos de águas mansas.

      

Ele é o bom Pastor que nos conduz a verdes pastos e a águas tranquilas.

Em 1 João 4:8 : Mas se alguém não

ama demonstra que conhece a Deus, porque Deus é amor.

No que se refere ao discurso bíblico em O Pecado não existe, o enunciador menciona a fonte de onde extraiu o texto, acessando pela memória discursiva de que se trata de um discurso cristão. No que diz respeito a esse discurso em O pensamento iluminador e as ciências naturais, o enunciador se apropria dos discursos de Mateus, de João e dos Salmos 23, adapta-os a sua formação discursiva, todavia, o co-enunciador consegue recuperá-los no interdiscurso, pela memória discursiva.

Notamos que o enunciador busca nesses discursos do campo religioso o que quer ensinar: devemos obedecer a Deus, porque ele é bom e, também, para mostrar sua formação discursiva (posicionamento) de educador e a da instituição a que ele se filia, para poder conseguir a adesão do co-enunciador.

Além disso, por meio desses discursos, o co-enunciador tem sua crença acionada e, esta, serve como uma espécie de ponte, que irá levá-lo a confiar e, por conseguinte, a acreditar no que está sendo ensinado pelo enunciador:

Interdiscursividade com o campo científico (unidades não tópicas ou discursos paratópicos).

O enunciador utiliza, ainda, discursos desse campo para validar seu dizer e para construir uma imagem favorável de si, como detentor de muitos conhecimentos, conforme vemos a seguir:

Discurso da ciência

O pecado não existe O pensamento iluminador e as ciências

naturais Marcas da medicina

O dr. Karl A. Menninger, em seu livro O

Homem Contra Si Mesmo, destaca os

efeitos da autopunição, atribuindo inclusive a causa das guerras ao desejo inconsciente de autopunição.

Marcas do jurídico

Segundo o comentário de um juiz,

aquele que foi preso e condenado várias vezes por reincidência [...].

Marcas da biologia

[...] Confere força vital às plantas e

animais [...].

Células germinadores que existem nos

grãos

Se os seres vivos tivessem surgido de origens, completamente, diferentes [...].

Marcas da Física

As pesquisas científicas da era moderna tornaram claro os princípios de fissão e

de fusão [...].

Não haveria princípios de fissão e de fusão e os átomos se manteriam

isolados.

Estrutura molecular de partículas materiais

Interdiscursividade com o campo pedagógico

Ao utilizar o discurso pedagógico, o enunciador acessa na memória discursiva a obediência e o respeito a quem ensina. Ao integrar esse interdiscurso, ele valida o papel de mestre, de professor, bem como a sua autoridade, como veremos a seguir:

• Marcas do pedagógico

Discurso pedagógico

O pecado não existe O pensamento iluminador e as ciências

naturais

Cristo nos ensina o seguinte no Evangelho Segundo João

Se você praticou uma maldade, foi simplesmente porque você teve

“professores” maus. Você teve como

“professores” os criminosos e malandros e agiu obedecendo fielmente ao que eles mandaram.

Quem quiser visualizar o poder de Kanzeon Bosatsu durante a meditação

deve mentalizar como se segue

Nessas distintas manifestações da discursividade, verificamos a importância da presença da interdiscursividade com os campos religioso, científico e pedagógico para a constituição da identidade do enunciador e para a adesão do co-enunciador. Ao usar o discurso do Outro, o enunciador o faz de um modo, que pode ser visto na materialidade discursiva, caracterizando a heterogeneidade mostrada, conforme vimos.

Desse modo, o discurso da SNI, para ter existência, precisa dialogar com outros discursos, não estando, portanto, isolado. Confirmamos, assim, a hipótese do primado do interdiscurso, pois, esses discursos, podem ser vistos como um conjunto de discursos que mantém uma relação discursiva entre si e que estão relacionados

à memória do coletivo, por ser o espaço no qual os sujeitos estão inscritos e o discurso funciona.

Assim, como vimos, um discurso se relaciona com um discurso Outro e, quando o identificamos (heterogeneidade mostrada) no espaço discursivo, ele delimita o seu discurso e o discurso do Outro. Porém, verificar apenas essa relação, seria ingênuo, já que os discursos se constituem na interdiscursividade, que não é tão evidente, por se imbricar no discurso (heterogeneidade constitutiva), e, conforme Maingueneau, (2011, p.31) amarra, em uma relação inextricável, O Mesmo do discurso e seu Outro.

Em relação ao discurso de O pecado não existe, fizemos os seguintes recortes para mostrarmos a imbricação com o campo feminino:

A palavra é criadora. Por isso, se ficarmos constantemente falando que o pecado existe, ele jamais poderá ser extinguido. Por exemplo, se todo mundo se dirigir a um ex-presidiário que já cumpriu sua pena e lhe disser: “você é um criminoso, é um mau elemento, é um pecador...”, ele nunca poderá regenerar-se. Terá dificuldades para conseguir emprego, e não lhe restará outra alternativa senão a voltar à prática do crime.

Há anos, li sobre o caso de um menino chamado Eddie, assaltante de oito anos de idade, recolhido na “Cidade das Crianças” dirigida pelo padre Flannagan. Como não podia permanecer preso por ser menor de idade, foi levado para essa “cidade de recuperação”.

Esses discursos são utilizados, pelo enunciador, para elucidar as explanações acerca do poder do pensamento negativo sobre o destino das pessoas. Porém, apesar de a revista ser dirigida para mulheres, percebemos que o discurso presente na coluna Artigo do Mestre Masaharu Taniguchi não é feminino.

Essa forma de explicar, no entanto, pode acessar a memória discursiva feminina do co-enunciador que, no papel feminino, sabe que muitas mulheres (mães) procuram as religiões para resolver problemas com os filhos, com os maridos e, ao se deparar com essas situações, estabelece-se um diálogo entre os coenunciadores, facilitando, dessa forma, o ensino e a aprendizagem, por meio de exemplificações.

Essa maneira de ‘ensinar’ acessa essa memória do co-enunciador que pode relacionar o ex-presidiário ou o menino assaltante de 8 anos a um marido ou a um filho, por exemplo, pois tanto a criminalidade quanto a deliquência juvenil estão presentes na sociedade e nos lares.

Além de promover essas associações, por meio do uso dos pronomes pessoais Eu e Nós, o enunciador se aproxima do co-enunciador. Ao usar o plural, ele dá a entender que ambos sabem a influência das palavras na vida das pessoas:

A palavra é criadora. Por isso, se ficarmos constantemente falando que o pecado existe, ele jamais poderá ser extinguido.

Ao usá-lo no singular, o enunciador compartilha sua experiência sobre o assunto e faz com que o co-enunciador associe-a a um outro fato ou a uma outra pessoa:

Há anos, li sobre o caso de um menino chamado Eddie, assaltante de oito anos de idade, recolhido na “Cidade das Crianças”.

Portanto, essa identificação faz com que o co-enunciador se aproxime mais do discurso e tenha a impressão de estar vendo sua vida diante de seus olhos.

A aproximação, por meio da religião, é, também, identificada no discurso de O pecado não existe, quando o enunciador narra a história de um homem que ficou

cego ao se lembrar de que quando era criança tinha acertado, com uma pedra, a estátua de Cristo, conforme vemos no recorte abaixo:

Deus, que é amor, jamais iria castigar um homem e torná-lo cego só porque uma pedra acertou casualmente a estátua de Cristo quando ele, na infância, simplesmente, brincava de jogar pedras. O fato de ele ter ficado cego não se deve a uma punição de Deus; deve-se à sua própria convicção de pecador e à sua ideia de punição segundo a qual o pecador deve pagar os seus pecados através de sofrimento e infelicidades.

Essa história remete o co-enunciador à expressão religiosa ‘jogar pedra cruz’ que, popularmente, é usada quando a situação não está boa ou como sendo a causa/o motivo pelo qual surgem problemas na vida de uma pessoa e ao discurso bíblico, presente em João, capítulo 8, versículo 8, que narra a história de uma mulher que adulterou e foi levada, pelos fariseus e pelos mestres da lei, para ser apedrejada. Jesus Cristo, ao ser consultado pela multidão sobre a lei de Moisés, diz “quem de vocês estiver sem pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra nela”.

Diante dessa circunstância, o enunciador acessa, na memória do co- enunciador, o sentido do ato de jogar pedra (ser pecador), e, por conseguinte, a consequência desse ato (ser punido, castigado). Assim, há a interação entre o enunciador (aquele que ensina) e co-enunciador (aquele que aprende) e surge a oportunidade de serem apresentados os ensinamentos da SNI.

Vemos essa ideia de castigo, de punição, nos seguintes recortes de O pensamento iluminador e as ciências naturais:

Há casos em que o fogo destrói casas, o Sol mata as pessoas com seu calor abrasador [...]. Isso ocorre quando o ser humano contraria as Leis da Natureza.

Portanto, podemos dizer que o espírito, isto é, a força do Universo [...] é a força do amor. Contanto que não se transgrida as leis da Natureza, o espírito beneficia todas as pessoas, fazendo nascer o sol sobre os bons e maus e mandando a chuva sobre justos e injustos. Ele é o bom pastor, é o sábio conselheiro, é o nosso Pai eterno.

Como sigo ao lado de Kanzeon- Bosatsu, não deparo com nenhuma força que se oponha a mim.

Nesses recortes, vemos, novamente, o enunciador acessar a memória do co- enunciador para reforçar as ideias de que transgredir, contrariar, não traz benefícios e que obedecer é estar protegido e é ser merecedor dos benefícios divinos. O co- enunciador é induzido a perceber que o sofrimento não é castigo de Deus, mas a consequência de suas ações ou o resultado de atitudes de outras pessoas, pois Deus não castiga.

Notamos, assim, que o enunciador pretende ensinar um modo correto de agir e que a obediência é o melhor caminho para ser merecedor de algo. Nesse papel de mestre, de professor, ele utiliza como estratégia para a aprendizagem, diversas experiências que a sociedade, na qual vivemos, oferece e que fazem sentido para o co-enunciador, para que, dessa forma, a aprendizagem ocorra.

O enunciador consegue atingir seu objetivo: ensinar/doutrinar, quando o co- enunciador faz associações com o que está sendo enunciado, ou seja, quando faz sentido o que está sendo enunciado. Sabemos que, da mesma forma, os professores apresentam, em sala de aula, exemplos, do cotidiano ou de outras áreas do conhecimento, para poderem atrair o aluno e, assim, conseguirem ensinar o que está sendo proposto.

Diante desse cenário, o enunciador se utiliza desse recurso para propagar seus ensinamentos, pois ele traz, para seu discurso pedagógico, os discursos científico, religioso, entre outros, além de acontecimentos do dia a dia, como: o menino que brinca de jogar pedras, o caso do ex-presidiário que não consegue se regenerar, o juiz que condena, os fenômenos da natureza, as leis da física etc. Tais

ilustrações podem ser usadas, em qualquer momento sócio-histórico, a fim de colaborar com o processo ensino-aprendizagem.

Notamos, ainda, que o Mesmo se constitui no Outro para ensinar o correto modo de viver da SNI - obedecer aos ensinamentos do mestre - construindo, dessa forma o simulacro. Os discursos selecionados vão ao encontro da ideologia dominante cristã: obedecer é melhor, quem desobedece é punido, é castigado.

Nesse sentido, devido ao ensinamento de submissão do sujeito e aos atravessamentos, o discurso da SNI propicia que haja a manipulação por meio de uma autoridade que é construída pelo enunciador. Esse discurso pode ser visto, portanto, como uma forma de controlar os instintos do homem e de anulá-los, em outras palavras, o sujeito permite ser comandado, pois, é ensinado que ao fazer suas vontades, elas prejudicarão a si próprio e/ou ao outro. O co-enunciador, então, não reflete sobre a palavra, mas reflete em si as palavras do enunciador, como um espelho ou uma repetição.

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