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4.2 CONCEPÇÃO BAKHTINIANA DE LINGUAGEM

4.2.3 Interdiscurso (já-dito bakhtiniano)

Neste momento, procuramos discutir as idéias do Círculo de Bakhtin sobre interdiscurso. Embora saibamos que nos estudos do Círculo esse termo não foi utilizado, essa noção é mencionada sob diversas expressões – já-dito, discurso de outrem, heterogeneidade. Vamos também fazer referência à escola francesa da Análise de Discurso, linha teórica que, a partir dos estudos bakhtinianos, sistematizou o conceito de interdiscurso.

Como já foi dito, a contraposição eu/outro é um dos eixos no qual se baseia a teoria bakhtiniana. Nesse sentido, as palavras estão carregadas por sentidos já produzidos por outros falantes, sendo impregnadas da “voz alheia”. Assim, todo discurso orienta-se para o já-dito, o que constitui um dos aspectos do fenômeno dialógico natural da linguagem.

De acordo com essa perspectiva, o discurso molda-se na interação dialógica com uma palavra alheia que já está no objeto. O discurso constitui-se na atmosfera do já-dito e, ao mesmo tempo, orienta-se para uma resposta ainda não dita, ele encontra-se “na fronteira do seu próprio contexto e daquele de outrem” (BAKHTIN, 1990, p. 92).

Entendemos com Bakhtin que o discurso vem sempre atravessado por outros discursos, o que nos dá a certeza de que nenhum discurso é homogêneo. Dessa forma, o outro está contemplado, está inscrito no discurso do falante, produzindo sentido e tornando a heterogeneidade elemento constitutivo do discurso.

Bakhtin ressalta que entre o discurso e o seu objeto está um meio permeado de discursos de outrem, de discursos “alheios”, e esses discursos que se referem a um mesmo tema (objeto) o encontram já desacreditado, contestado, avaliado pelos outros discursos que falam sobre esse tema. Assim, todo discurso revela, essencialmente, duas posições: a sua e a do outro.

Orientado para seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando- se de outros, cruzando com terceiros, e tudo isso pode formar substancialmente o discurso [...] (BAKHTIN, 1990, p. 86).

A presença da palavra do outro em toda e qualquer prática discursiva decorre da própria concepção de linguagem do Círculo bakhtiniano. Linguagem entendida como condição humana

constitutiva, “levando em conta a dimensão psíquica, que ele [Bakhtin] aborda pela consciência e pela ideologia, a interdiscursividade que atravessa o sujeito e impede a homogeneidade, o ‘um’ absoluto” (BRAIT, 2001, p.15).

Nessa perspectiva, podemos afirmar que os enunciados são sempre discursos citados, mesmo quando isso não está explícito, já que eles surgem em resposta ativa ao que já foi dito e, conseqüentemente, fazem surgir outros enunciados como resposta àqueles, num diálogo vivo e intenso. Cabe ainda reforçar, segundo Brait, que o outro, na teoria de Bakhtin, é “concebido numa dimensão ideológica constitutiva da linguagem, e que significa tanto o interlocutor quanto os outros discursos constitutivos de qualquer discurso” (BRAIT, 2001, p.17).

As palavras estarão na nossa memória discursiva, como palavras de outrem, que perderam as aspas – usando a figura bakhtiniana – sendo bivocalizadas, ou seja, expressando simultaneamente a palavra do outro e a nossa posição: “elas são citadas direta ou indiretamente, são aceitas incondicionalmente ou ironizadas, parodiadas, polemizadas aberta ou veladamente, estilizadas, hibridizadas” (FARACO, 2006, p. 82).

A interdiscursividade na teoria bakhtiniana expressa-se na palavra do outro, a qual é inerente à prática discursiva, o que a torna fundamental na análise de qualquer discurso, pois na medida em que enunciamos estamos respondendo, tomando uma posição social avaliativa frente a outras posições, e é disso que decorre a orientação dialógica da linguagem.

A Análise de Discurso Francesa também é uma das teorias que fundamenta seus estudos na relação eu/outro, ou seja, na discursividade, sistematizando-os sob a forma de interdiscurso. A AD inscreve-se, portanto, na mesma perspectiva que a de Bakhtin, a de uma heterogeneidade constitutiva. (MAINGUENEAU, 2005).

Maingueneau (2005) propõe a hipótese do primado do interdiscurso sobre o discurso, ou seja, o interdiscurso antecede o discurso e ancora-se na heterogeneidade constitutiva. O interdiscurso é parte essencial na constituição dos sentidos do discurso, já que é a partir dele que se constroem outros discursos. Nesse sentido, Maingueneau coloca que o interdiscurso é a gênese, o discurso primeiro, a partir do qual vão se constituir outros discursos, ou, citando Bakhtin: “O discurso reencontra o discurso do outro em todos os caminhos que levam a seu objeto, e um não pode não entrar em relação viva e intensa com o outro” (BAKHTIN apud MAINGUENEAU, 2005, p. 35).

Mas, com relação ao termo interdiscurso, Maingueneau sugere a sua substituição, por considerá-lo muito vago, pela tríade: universo discursivo, campo discursivo, espaço discursivo. O universo discursivo compreende o conjunto de todas as formações discursivas que interagem numa conjuntura dada. O campo discursivo é formado pelo conjunto de formações discursivas “que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo” (MAINGUENEAU, 2005, p. 35). E em relação aos espaços discursivos, Maingueneau sugere que sejam isolados, no campo discursivo, constituindo-se em subconjuntos de formações discursivas cuja relação o analista considera importante para seu propósito.

Com essa tríade, Maingueneau reafirma que o discurso é constituído a partir do discurso do outro, ou seja, o outro já se encontra na raiz do mesmo. Dessa forma,

“[...] o Outro não deve ser pensado como uma espécie de ‘envelope’ do discurso [...]. No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível da compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma”. (MAINGUENEAU, 2005, p.39).

Como já postulava a teoria bakhtiniana, o outro constitui toda prática discursiva, está em sua origem, e esta remete, total ou parcialmente, ao discurso primeiro – ao interdiscurso, ao outro – do qual ela se constituiu. Nesse sentido, estamos falando do “caráter essencialmente dialógico de todo enunciado do discurso” (MAINGUENEAU, 2005, 38, grifos do autor).

Vimos, então, que tanto o Círculo de Bakhtin quanto a AD Francesa compreendem a interdiscursividade como fundamento do discurso, e que o sentido deste está estreitamente relacionado ao discurso do outro. Portanto, para uma análise de qualquer prática discursiva, é essencial a identificação do interdiscurso visando compreender os discursos que dão suporte ao discurso segundo, o que foi ressignificado, que vozes sociais atravessam o discurso e que tipo de relações dialógicas elas estabelecem.

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