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2 POTÊNCIAS METAFICCIONAIS DO LIVRO ILUSTRADO

2.2 INTERESPAÇOS METAFICCIONAIS DO LIVRO ILUSTRADO

No ano de 2008, Lawrence R. Sipe e Sylvia Pantaleo lançam uma coletânea de artigos que problematizam a produção pós-moderna de livros ilustrados sob o título Postmodern Picturebooks: Play, Parody, and Self-Referentiality [O livro ilustrado pós-moderno: jogo, paródia e autorreferencialidade] (2008, tradução livre nossa). O livro conta com dezesseis textos críticos sobre o tema que se voltam às especificidades de uma produção de escritores e ilustradores contemporâneos. Pantaleo e Sipe, em texto introdutório, fazem um resumo das recorrências dos livros ilustrados contemporâneos analisados, atendendo a uma conceituação de uma produção pós-moderna. Dentre as especificidades apontadas pelos organizadores, os “postmodern picturebooks” direcionam maior poder ao leitor-espectador, transformando-o em cocriador, prezam pela não linearidade, a exposição do interesse pela natureza ficcional e pelos processos narrativos, empregando dispositivos metafictícios. Também é próprio do livro ilustrado pós-moderno a quebra dos limites, o emprego da hipérbole, a incerteza, a paródia ou a performance, a intertextualidade e o questionamento de regras e convenções (PANTALEO; SIPE, 2008, p. 2).

Segundo Bette Goldstone (2008), tanto os criadores como os receptores dos livros ilustrados tradicionais compreendem que o espaço ilustrativo possui três

planos hipotéticos: o primeiro plano (foreground), o plano de meio (mid-ground) e o plano de fundo (background) – e que a ilustração, a pintura e a fotografia se valem desse trio, dando a ilusão de profundidade. Sobre o uso do espaço nos livros ilustrados tradicionais, Goldstone ainda explica que o espaço é mais comprimido em relação às outras formas de representação visual citadas, de modo que os personagens e os objetos se movimentam ou são posicionados num espaço estreito e limitado, no qual a história se desenvolve com boa parte da ação sendo realizada entre o primeiro plano e o plano de fundo. Ao passo que o texto é tradicionalmente posicionado no lado inferior da página, muitas vezes criando uma barreira visual entre o texto e a ilustração.

No entanto, explica a pesquisadora, os artistas contemporâneos dos livros ilustrados pós-modernos possibilitam aos espectadores um novo mundo visual, uma nova forma de ver, uma maneira singular de interpretação visual como consequência da reconceituação do espaço em relação ao texto e à imagem. Com isso, mesmo ainda se utilizando das três dimensões espaciais tradicionais, os artistas dos livros ilustrados pós-modernos tendem a fazê-lo de uma forma expandida, sob três caminhos, conforme as próprias palavras de Bette Goldestone:

1. Space has been redefined, reconnoitered, and manipulated into five dimensions. The fourth dimension is the space shared between the physical book and the reading/viewing audience. Characters and objects can leave the standard three planes of space and move into space traditionally reserved for the audience. The fifth dimension is a spatial area that lies beneath the physical page. Characters now step off the page surface into spaces hidden underneath the flat rectangular page area. There the characters engage in newly formed storylines. [O espaço foi redefinido, redescoberto e manipulado para cinco dimensões. A quarta dimensão é o espaço compartilhado entre o livro físico e a recepção do leitor-espectador. De modo que personagens e objetos podem abandonar o padrão tridimensional para se moverem no espaço tradicionalmente reservado para o leitor-espectador. A quinta dimensão, por sua vez, é uma área espacial que se encontra abaixo da página física. Os personagens agora saem da superfície física para dentro de espaços escondidos sob a área plana e retangular da página, para se empreenderem em enredos recém-formados.]

2. The picture surface is now porous and dynamic. This permeability allows characters and audience to move back and forth from the illusionary world of the story into “real” space and then back again. Book characters and story elements spill out of the book into the audience space, while audience members enter the story world. This dynamic page surface allows room for alternative realities to lie beneath the page. The page surface now has an atmospheric quality; it is translucent and mobile. [A superfície da ilustração agora é fluida e dinâmica. Essa permeabilidade permite que os personagens e o receptor se movam de um lado para o outro, do mundo ilusório da história para o espaço "real" e depois retornem.

Os personagens do livro e os demais elementos da história transbordam para o espaço de recepção, ao passo que o receptor entra no mundo da história. Esta superfície dinâmica possibilita uma folga para que as realidades alternativas coexistam abaixo da página. A superfície da página agora tem uma qualidade atmosférica; é translúcida e móvel.]

3. These additional two dimensions and the porous surface plane allow new possibilities for location and function of the text. The text is now not necessarily segregated from the pictorial space but is woven around characters, objects, and settings. Words can now be placed literally all over the pages, can be manipulated by the characters in the story, and can become props within the space. Although text still can be seen as a separate component, there now are new ways for narration to be integrated within the whole. [Estas duas dimensões adicionais e a superfície plana e fluida permitem novas possibilidades de posicionamento e funcionalidade do texto. Logo, o texto não precisa, necessariamente, estar apartado do espaço pictórico, pois agora é tecido em torno de personagens, objetos e cenários. Assim, as palavras podem ser colocadas literalmente em todas as páginas, ser manipuladas pelos personagens da narrativa ou se tornarem ornamentos dentro do espaço. Contudo, embora o texto ainda possa ser visto de forma isolada, agora existem novas formas de a narração ser integrada ao todo.] (GOLDSTONE, 2008, pp.118-119, tradução livre nossa)

Sobre o aspecto metanarrativo, em Livro ilustrado: palavras e imagens, no penúltimo capítulo em que tratam exclusivamente sobre o livro ilustrado metaficcional, sob o título Linguagem figurada, metaficção e intertexto, Maria Nikolajeva e Carole Scott pontuam algumas das recorrências desse livro intersemiótico pós-moderno. Contudo, é importante citar que embora as autoras de fato contribuam para uma compreensão crítica e teórica sobre o livro ilustrado, a proposta de análise sobre os livros ilustrados atinge níveis descritivos elevados. Revelando, assim, uma marcante influência do estudo narratológico e hermenêutico, que tanto podem enriquecer a apreensão crítica de uma obra intersemiótica quanto produzir um labirinto de detalhamentos verbais, muitas vezes solucionável com uma simples representação visual do que se anseia descrever verbalmente com detalhes menos eficazes. Assim, embora as autoras indiquem através do título da obra um estudo da relação palavra-imagem no livro-ilustrado, há uma prevalência do texto verbal em relação ao visual durante o processo analítico, de modo que, em muitas passagens do livro, o primeiro será o ponto de partida para o segundo.

No penúltimo capítulo, Maria Nikolajeva e Carole Scott se atêm aos aspectos do contraponto texto-imagem no que se refere à linguagem, designados pelas autoras como textos intraicônicos, além da metaficção e da intertextualidade. No tópico Significante sem significado e significado sem significante: linguagem figurada

em palavras e imagens, as autoras indicam diferentes maneiras do texto verbal e

visual se configurarem no livro ilustrado. O nonsense, a estética do absurdo e o deslocamento linguístico (quando a situação, isto é, o contexto desempenha grande influência na construção do sentido) são possibilidades de embaralhar os limites entre o real e o imaginado. O conflito de estilos entre o verbal e o visual (quando a aplicação da linguagem é subvertida do seu uso mais comum) e a leitura do iconotexto (na qual conecta-se cada imagem verbal a um correspondente visual) são recursos recorrentes empregados nos livros ilustrados contemporâneos. Ao passo que, acrescentando-se o termo “pós-moderno”, esses dispositivos estilísticos se potencializam, pois, segundo as próprias autoras, “uma das características do pós- modernismo é o questionamento da linguagem como meio artístico.” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 288).

No entanto, é comum a crítica de que a metaficção ou a metalinguagem, por exemplo, enquadradas como uma característica recorrente do pós-modernismo, sempre se fizeram presentes na literatura. Porém, os livros ilustrados que jogam com o significante e o significado, parafraseando a justificativa de Nikolajeva e Scott, embora já se fizessem presentes nas obras de Lewis Carroll – e ilustrações de John Tenniel –, na conjuntura pós-moderna emprega-se o “uso desse dispositivo [de questionar a linguagem como meio artístico] para criar um contraponto estilístico empolgante” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 288). Especificamente a respeito do tópico em que trata sobre a metaficção, Maria Nikolajeva e Carole Scott classificam a ficção que volta para si mesma como um dispositivo estilístico “que busca destruir a ilusão de uma ‘realidade’ por trás de um texto e em seu lugar enfatiza a ficcionalidade.” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 288), levantando questão sobre a relação entre a ficção e a realidade, ao passo que “se baseia principalmente no convencionalismo da linguagem” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 288).

Uma das formas metaficcionais mais acionadas na literatura se faz pela inserção do leitor na narrativa por meio de um diálogo que o narrador empreende com o leitor. Contudo, os livros ilustrados metaficcionais que propomos analisar se utilizam de elementos autorreferentes que extrapolam os limites da linguagem linguística, ao introduzirem recursos visuais, gráficos, plásticos, ou seja, o livro enquanto objeto e as suas especificidades ao plano narrativo, passando a protagonizar no âmbito literário como dispositivo estilístico da diegese. Sobre essas ramificações ou camadas narrativas, Nikolajeva e Scott referem-nas como “fronteiras

flutuantes” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 289), que mesmo não sendo parte integrante de uma narrativa principal, constituem o livro enquanto metanarrativa. Assim, no livro ilustrado metaficcional que se instaura na pós-modernidade, a história é uma obra em progresso, estando sempre em fase de construção. Nesse sentido, os paratextos são reprojetados em vista do jogo pós-moderno e as convenções abaladas. Obviamente, o estranhamento diante dos paratextos manipulados decorrentes desse jogo “pressupõe que o leitor esteja familiarizado com o modo de os paratextos normalmente funcionarem em um livro” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 321). Desse modo, tal qual um ouroboro, a narrativa de frente e verso proposta por Banyai amplia o leque interpretativo apenas quando o leitor une as duas pontas da serpente, ou melhor, os dois lados sobrepostos da página.