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Interface entre a transgeracionalidade e a Pedagogia Freireana

CAPÍTULO II: CONCEITUAÇÃO SOBRE TRANSGERACIONALIDADE: tecendo laços

2.5 Interface entre a transgeracionalidade e a Pedagogia Freireana

Através dos aspectos expostos acima, a transgeracionalidade, a meu ver, convida a pessoa, a fazer um resgate essencial e profundo para dentro de si mesmo, de suas raízes, de sua história ancestral, enfatizando a busca por suas verdades, com intuito de propiciar maior sustentabilidade ao ser humano para que ele consiga ser feliz e pleno na vida.

Essa valorização das raízes e das sabedorias experienciais ancestrais dos seres humanos me reporta muito, às práticas, excelentemente desenvolvidas, por Paulo Freire, quando este, também, explicitava a sua enorme dedicação aos saberes populares, a sua defesa por um homem indissociável, indivisível, integral e complexo, permeado por uma espiritualidade, a seu amor pela simplicidade, enfim, a seu amor ao ser humano. Neste sentido, enxergo em muito de seus ensinamentos, uma relação satisfatória e profícua com o elemento da “transgeracionalidade”. Mesmo que, Freire, não tenha mencionado, especificamente, esta nomenclatura, no entanto, lendo os seus escritos e se debruçando em sua terminologia, conceitos e, sobremaneira, sua prática educativa de vida, consigo enxergar, o elemento transgeracional circunscrito em suas belas e magníficas obras literárias.

Ensinar, para Freire (1978), compreende um exercício de diálogo, de troca, de reciprocidade. Para que o ensino tenha uma funcionalidade na vida das pessoas, é preciso que

esse diálogo, essa troca permeie, sempre, o entrelaçamento entre a teoria e a prática. A aprendizagem só poderá ocorrer, realmente, quando o educando tiver a possibilidade de relacionar as informações, por ele, adquiridas e estas estiverem em contato com a sua realidade vivencial. Logo, a inter-relação existente entre a realidade individual de cada pessoa e os conhecimentos adquiridos ao longo da vida é o que proporciona a aprendizagem. “Todo ato de conhecer produz um mundo. [...] Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer. [...] Tudo que é dito é dito por alguém” (MATURANA; VARELA, 1995, p. 68; 69).

O processo da aprendizagem é inato ao ser humano, mas também é construído e reconstruído, expressos e sentidos pelas diversas vivências, pela experiência vital. Freire (1996, p.26; 27) coloca

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso - trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender.

Para Hugo Assmann (1999), educar compreende não apenas ensinar algo a alguém, mas, promover situações em que o processo de aprendizagem possa florescer todos os envolvidos. O educar, então, constitui-se em um processo relacional que não ocorre unilateralmente. É preciso que ocorra o despertar do aprendente mediante sua própria experiência do conhecimento. Como esta experiência acontece através de vivências personalizadas de aprendizagens que ocorrem entre os processos vitais e os processos cognitivos, o reencantamento da educação nos dias de hoje, como nova estratégia educacional, necessita da união entre dois elementos importantes: a sensibilidade social e a eficiência pedagógica.

Os seres humanos neste espaço de reciprocidade se sentem e se tornam concretamente sujeitos sócio-histórico-culturais. Esse lugar é vivido pelo educando como um lugar de troca de conhecimento e de construção de novos saberes e práticas. Para Freire (1997), a relação entre o educador e o educando está permeada por um respeito mútuo, pela presença da humildade, simplicidade, estética, ética, corporificação das palavras pelo exemplo – principalmente, por parte do educador –, abertura para aceitação do novo e rejeição qualquer forma de discriminação, além de traspassada pela reflexão crítica sobre a prática. Quando isso não ocorre há problemas. Para Freire (1983, p. 95),

a autossuficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm humildade, ou a perdem, não podem se aproximar do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto aos outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Nesse lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que em comunhão buscam saber mais.

Freire (1997) ainda enfatiza a incompletude do ser humano que a cada dia que se passa aprende um pouco mais, se refaz, se recompõe e dá um novo significado aos seus afazeres, relembrando uma frase bem conhecida do matemático Blaise Pascal (s/d): “Não me envergonho de mudar de idéia porque não me envergonho de pensar”.

Reconhecer que o ser humano é um ser inacabado dá início a um novo começo aliado sempre às experiências vividas pelo mesmo. Para ter essa abertura, Freire (1983) afirma que é preciso saber escutar aqueles que circundam o entorno de nossa vida e ser convicto que a mudança é possível. Essa acessibilidade é permeada por competência profissional e pessoal em qualquer atividade que está se desenvolvendo. Também é necessário ao profissional da área da educação ser possuidor de generosidade, de comprometimento e, acima de tudo, ter consciência de que a educação é uma forma de intervenção destacável nas práticas cotidianas no mundo.

Saber escutar compreende uma prática necessária para que o educador consiga estabelecer uma interlocução com o educando. A escuta consiste numa prática basilar dos psicólogos, e não basta escutar, é preciso ser detentor da escuta qualificada, apurada, ativa. Não consiste em ouvir por ouvir, mas entender o que está sendo escutado. É fato de que o que nos move no processo da escuta qualificada é a nossa própria história de vida, nossa vivência (BARRETO, 2008; PALMA FILHO, 2011).

No processo da aprendizagem humana, instaurar a dúvida em nossas certezas é um caminho frutífero, porque, às vezes, as certezas plenas, as convicções fixas e doentias podem provocar enclausuramento. Logo, a problematização consiste em um princípio pedagógico exposto por Freire (1979) confiante nos trâmites da aprendizagem.

É o que bem expõe as ideias de Hannoun (1998), em seu livro Educação: certezas e apostas, ao trazer a terminologia da aposta enactante para o campo de discussão científica. Maffezoli diz que “toda experiência tem poder cognitivo, tudo é método, tudo é caminho” (1988, p.10). A ciência “enactante” requer uma defesa da ciência plural, a qual nos tempos de hoje, possa ser capaz de regenerar coletivamente o modo de pensar. Deixar-se pensar e agir desta maneira, diz respeito a compreender o próprio campo científico, um empreendimento audacioso (MAFFEZOLI, 1988; CAMATTA, 2008).

Neste sentido, a aposta enactante, seja no campo da educação, da sociologia, da pedagogia, da psicologia, da pesquisa, seja no campo da experiência do vivido, faz um convite para o pesquisador ser apostador. Apostar na experiência vivenciada, permeada pela dimensão existencial inscrita no seio do real, condiz em provocar oscilações em nossas certezas que, às vezes, nos aprisionam, para dar lugar às perguntas, aos questionamentos, as dúvidas (HANNOUN, 1998). A verdade absoluta não existe, mas existem leituras verdadeiras da realidade. Cada um consegue fazer suas leituras, dadas a partir de seu contexto, da realidade vivida por cada um. A solução das nossas problemáticas da vida necessita do apoio incondicional dos valores culturais e das heranças de nossos antepassados.

Essa possibilidade de adquirir novas ideias é advinda do marco interdisciplinar em todas as áreas do conhecimento. Cada especialidade profissional precisa se colocar como parte de uma construção ampla de saberes. Entender que as realidades antagônicas são complementares e indissociáveis significa, igualmente, entender que a emoção e a razão, por exemplo, são complementárias para a construção do conhecimento e para se viver de forma plena (VILAGINÉS, 2009), pois, a complementaridade produz uma saúde plena para os envolvidos.

Concomitante a esta ampliação do olhar sobre as práticas educativas, a educação transgeracional sistêmica, esboçada em detalhes, no capítulo quatro, a partir de um enfoque que entrelaça a visão psicodinâmica e o pedagógico-sistêmico, cria condições adequadas para que a escola e outros espaços educativos se tornem recintos orientados para a aprendizagem da vida. O princípio dialógico envolvido destaca o caráter dinâmico do pensamento, correspondendo a um transitar entre os campos das certezas e das incertezas.

Levar em conta a dimensão transgeracional para o campo da prática educativa popular em saúde e para diversos tipos de educadores, em especial, significa ajudar crianças, adolescentes e adultos a se reconciliarem com as suas raízes. Consiste no processo de promover o favorecimento do desabrochar de suas essências, de fazer com que eles se tornem quem verdadeiramente são. Isso significa dizer, também, que é possível restabelecer uma cadeia a qual uni gerações presentes e vivas com as gerações passadas. É ainda entrar em conexão com a fortaleza que cada educando, cada ser humano, traz dentro de si, com a força que lhe é conferida pela sua própria história (VILAGINÉS, 2009).

Dentro da estrutura escolar, similar a estrutura familiar e social, é revelado o que é carente e necessário ser introduzido no que se refere à ocupação dos papéis de cada um possui em específico. A leitura da dimensão transgeracional por parte da instituição de ensino e, sobremaneira, por parte do professor, aquele que assume com humildade o papel de ser

facilitador do processo de aprendizagem do educando, propicia outra forma de ensino e aprendizagem para o educando.

O educador necessita ter a noção e o conhecimento de que cada educando que chega a instituição escolar traz consigo uma bagagem relacional e emocional dentro de suas estruturas celulares. Tal bagagem compreende um diferencial enorme para as práticas pedagógicas desenvolvidas no espaço escolar. Por isso, um educando nunca pode escolher entre os valores de sua família e de sua escola, pois a família, sempre ocupará a primeira posição. Se ocorrer o respeito e a valorização da história de vida de cada uma das crianças dentro do ambiente escolar, pode-se, então, iniciar um processo de ensino e aprendizagem (VILAGINÉS, 2009).

Isso quer dizer que, dentro deste espaço escolar/familiar/social, é requerido aprender a respeitar as diferenças, a diversidade e o contexto cultural das pessoas. Não existe nada mais disfuncional e invasivo do que o anonimato, a ausência de valores e crenças advindas da vinculação emocional com a família de origem.

Segundo Bert Hellinger (2006) a vida das pessoas são influenciadas por sua família de origem e de seus sistemas geracionais e, de forma consciente ou inconsciente, será sempre fiel a mesma. Quando ocorre essa valorização da sua herança geracional, as pessoas melhoram sua autoimagem e o seu sentimento de pertença em qualquer espaço que estejam.

Alguns conflitos interrelacionais se desenvolvem na busca pela consolidação da identidade individual. Sociólogos e antropólogos que se debruçaram sobre alguns estudos acerca dos fenômenos da imigração afirmam que a existência de gangues violentas segue, em muitos casos, a necessidade de se buscar uma identidade, de se manifestar presente e de se mostrar respeito. Em outras palavras, é fazer ver que a pessoa tem um lugar no meio social (VILAGINÉS, 2009).

A reconciliação com as raízes permite o desenvolvimento do sentimento de pertença dentro da sociedade. Esta visão transgeracional nos fornece muita informação da cultura, das regras, valores, normas, costumes e do mundo simbólico e significativo o qual o educando – o ser humano – faz parte. A dimensão transgeracional consiste em um novo paradigma para a pedagogia, dada a partir de uma perspectiva sistêmica. Ela proporciona, para os educadores e as pessoas em geral, o desenvolvimento pelo cuidado de si e o cuidado com outro ser humano. Além disso, aponta para a importância de um primeiro valor existencial: o valor pela vida, o respeito à vida tal como nos é ofertada, apesar das dificuldades, dos sofrimentos e das enfermidades. Somos o que somos graças aos nossos antepassados (VILAGINÉS, 2009). Valorizá-los e admirá-los é significante e promotor de vasta saúde física, mental, emocional e espiritual.

No sentido amplo da leitura transgeracional é que esta dimensão nos leva a compreender que, além de sermos pertencentes a um sistema familiar, uma cultura e um determinado país, somos habitantes de um mesmo planeta, filhos de uma mesma terra. A dimensão transgeracional nos provoca a exercitar a consciência antropológica, a consciência ecológica, a consciência cívica terrena, ou seja, o espírito da responsabilidade, da solidariedade com o universo e com a terra. Nós estamos integrados a uma rede.

Falar sobre o exercício da dimensão transgeracional nos campos da pedagogia, da psicologia, da medicina, da antropologia e da sociologia é, talvez, falar sobre o exercício constante de nosso passado, presente e futuro que estão unidos por um fio invisível que transita as gerações. São as ligações de uma cadeia que vem de muito longe e que é portadora de uma informação preciosa que permitirá que os fatos do nosso presente adquiram um sentido e que, além do mais, nos abrirá, quem sabe, uma via para discutir para onde vamos.

A linhagem da qual proviemos marca, de uma maneira muito significativa, o que nós valorizamos. Cada sistema familiar é um mundo com uma crença, valores, emoções que foram tecidas ao longo da história e vai influenciar muitas decisões futuras. Não se herda só os patrimônios materiais, ou corporais, ou genéticos, mas, também todas aquelas construções simbólicas, emocionais, psicológicas e sociais dos antepassados familiares.

Nesse sentido, as práticas desenvolvidas e defendidas por Paulo Freire, juntamente com os estudos sobre a dimensão transgeracional podem apontar para um caminho em comum: a liberdade do ser humano e a compreensão da existência da totalidade do ser que é permeado por sua voz ativa.

CAPÍTULO III – PRÁTICAS EDUCATIVAS POPULARES EM SAÚDE: