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INTERFACE ENTRE LINGUÍSTICA FORENSE E TRADU ÇÃO FORENSE

2 CAMPOS DE INTERAÇÃO DA PESQUISA

2.2 INTERFACE ENTRE LINGUÍSTICA FORENSE E TRADU ÇÃO FORENSE

De fato, pode-se dizer, que há muito tempo estamos, de uma forma ou outra, envolvidos com a Linguística Forense, mesmo sem sa- ber de sua existência. No Brasil, por exemplo, já em 1619 a Linguística Forense se fazia presente, mesmo sem ter sido formalmente nomeada como tal. Segundo informações extraídas do portal do Escritório de Pe- rícias RUSSI & FREIXO, há relatos de que em 1619 houve a primeira perícia grafotécnica no Brasil. Tal perícia teve como objetivo verificar a autenticidade de quatro assinaturas de documentos pertencentes ao processo do testamento de uma senhora, chamada Isabel Felix, con- forme o extrato abaixo descreve10:

Francisco Gaia, acompanhado do procurador de seu seguro, Jaques Felix, em São Paulo, inquinou de falsas quatro quitações juntadas no processo do testamento de Isabel Felix, es- posa do espanhol Diogo Sanchez, do qual seu sogro era o curador. O magistrado nomeou a Domingos Morato Bittencourt, Tabelião da Vila, Antônio Rodrigues Miranda, escrivão da Câmara, e Simões Borges Cerqueira, Escrivão

dos Órfãos, como Peritos. Procedidos os exa- mes, os Peritos deram a sua conclusão oral- mente: as assinaturas das quitações eram fal- sas. E o magistrado, com base no pronuncia- mento dos peritos, proferiu a sentença.11

Infelizmente o laudo apontado acima não foi realizado por es- crito, o que peritos como os do Escritório RUSSI & FREIXO lamen- tam, pois hoje em dia seria possível examiná-lo para se ter acesso às fundamentações técnicas, bem como às conclusões que os peritos apre- sentaram naquela época. Também seria possível averiguar o grau de acerto que tiveram perante às técnicas grafoscópicas atuais12.

De fato, esse exemplo de evidência grafológica do século XVII remete aos estudos da Linguística Forense, área que vem ganhando cada vez mais espaço ao longo desses anos, embora ainda com pouca aceitação no meio jurídico.

No contexto de evidência linguística13, por exemplo, Lawrence M. Solan14 (SOLAN, 1998), em seu artigo Linguistic experts as se- mantic tour guides, menciona que ainda hoje existe uma certa relu- tância, por parte dos profissionais do Direito, em aceitar as opiniões de linguistas como peritos em questões jurídicas dentro dos tribunais dos Estados Unidos. Ele afirma que “quando Linguistas são chamados para discutir sobre significado de textos legalmente relevantes, eles são vistos como ameaças aos juízes, uma vez que o tribunal acredita que os peritos em linguagem possam usurpar uma função que cabe aos juízes”15.

No entanto, na Inglaterra e na Austrália, por exemplo, parece haver uma abertura maior para o linguista como perito em tribunais.

11 Não há indicação das fontes originais desta informações no portal de RUSSI &

FREIXO.

12 Não se pode, todavia, associar essa perícia ao trabalho de um linguista, ou

mesmo um perito ligado às letras, uma vez que os peritos nomeados na época foram um tabelião e dois escrivães.

13 A área “evidência linguística”, no entanto, é apenas uma das vertentes de

estudos da Linguística Forense, dividindo espaço entre a “linguagem e Direito” e “interação em contextos forenses”, por exemplo.

14 Professor de Direito da Brooklyng Law School, em Nova Iorque, com formação. 15 Tradução livre de Sabrina Jorge (PPGI/UFSC).

Trabalhos como os de Malcolm Coulthard e Alison Johnson (2007; 2010), Roger Shuy (1993; 2006), Solan (1998; 2010), Peter Ti- ersma (1999), bem como de John Gibbons (1994; 2003), Sandra Halle (2008) e Diana Eades (1994) comprovam a atuação assídua de linguistas comoexperts em tribunais.

Não obstante, Solan (2010) aponta que os americanos estariam mais interessados na metodologia aplicada pelo linguista, enquanto os britânicos teriam o foco no trabalho deste perito, em sua experiência e em seu conhecimento mais do que no método que ele usa para fornecer evidências nos tribunais.

Ainda de acordo com Solan, um linguista, devido ao seu treino em linguagem, está mais sensível a observar a variedade de possíveis interpretações em um documento que podem passar despercebidas por um juiz ou mesmo por um júri (SOLAN, 1998)16.

Malcolm Coulthard, em co-autoria com Alison Johnson (COULTHARD; JOHNSON, 2007), comenta que foi em 1968 a primeira vez que o termo “Linguística Forense” foi usado, quando o Professor de Linguística Jan Svartvik recordou a primeira menção do termo, feita durante um depoimento a policiais de Notting Hill, no caso de Timothy John Evans (de 1953), o qual fora acusado de ter assassinado sua mulher e seu filho ainda bebê na Rillington Place/Notting Hill, em Londres. No entanto, ele menciona que, anos antes, Philbrick (1949) já teria usado o termo “inglês forense” no título do seu livro “Language and the Law: the Semantics of Forensic English”, termo esse nunca mais usado17.

Ele também avalia que o crescimento da Linguística Forense foi lento, iniciando, como qualquer outra disciplina novata, com publica- ções esparsas, frequentemente de linguistas renomados sobre, por exem- plo, análise de identificação e avaliação de inconsistências linguísticas, atribuídas a imigrantes ou aborígenes em registros escritos de depoi- mentos policiais, ou na análise de semelhanças linguísticas de marcas comerciais rivais (remetendo à plágio de marcas).

16 Cf. Sabrina Jorge, em palestra proferida em 2012, na UNICAP, Recife. 17 Pelo menos até 2007, data de publicação (COULTHARD; JOHNSON, 2007,

Com efeito, John Gibbons (GIBBONS, 2003), outro pesquisa- dor da área, com pesquisa abrangente sobre a linguagem e a justiça, apresenta um histórico dos primeiros autores a discutir o tema (como o acima mencionado Philbrick, bem como Mellinkoff, em 1963, limitando- se à linguagem jurídica; O’Barr, em 1982, tratando do discurso nos Tribunais; e Kurzon, em 1986, com pesquisa focada em atos de fala jurídicos).

Gibbons também apresenta os primeiros livros sobre Linguística Forense e seus termos usados hoje em dia, que datam da década de 90, com Levi e Walker, Kniffka, Rieber e Stewart. Seria possível, segundo ele, dizer que a linguagem do Direito é dividida em duas grandes áreas: de um lado, a codificada, e na maioria das vezes escrita, a de docu- mentos jurídicos (como contratos, com características monológicas); e do outro lado, uma linguagem mais dinâmica e interativa, muitas ve- zes falada, como a linguagem dos tribunais, investigações policiais, etc. (GIBBONS, 2005).

Coulthard e Johnson (COULTHARD; JOHNSON, 2007, p. 5) acrescentam, à lista de Gibbons, os trabalhos de Eades (1994) e Shuy (1993, 1998, 2002b), comentando que naquela época pouco se fez para o estabelecimento da disciplina ou de sua metodologia.

Não obstante, Roger Shuy (SHUY, 1993; SHUY, 2006) foi um dos poucos pesquisadores ativos em Linguística Forense já na década de setenta, quando desenvolveu sua teoria sobre contaminação conversaci- onal, a partir de um caso em que participou como linguista forense. Este caso partiu, em meados de 1979, de uma conversa entre ele (que estava a bordo de um avião, indo para Dallas, para um encontro acadêmico) e um advogado (que estava sentado a seu lado, trabalhando em uma ação judicial, como representante de um Evangélico que trabalhava em um canal de TV)18.

Com efeito, nos últimos 20 anos, tem-se vivenciado um cres- cimento gradual da área, com um desenvolvimento metodológico em

18 Language Crimes: The Use and Abuse of Language Evidence in the Courtroom,

franca expansão, com a contribuição assídua de pesquisadores como Malcolm Coulthard, Alison Johnson, John Gibbons, Peter Tiersma, Sandra Hale, Diana Eades, Roger Shuy, Vijay Bhatia19, entre outros. Inclusive pesquisas específicas sobre Tradução Forense, com a contri- buição adicional de pesquisadores como Deborah Cao e Susan Šarčević. Não obstante, no Brasil o crescimento chegou uma década mais tarde e, embora lento, tem se expandido. Somente a partir de 2000 é que se percebe um impulso significativo nas pesquisas na área, com investi- gações isoladas, como as de (SANTOS, 2005), (ALVES; CHISHMAN; QUARESMA, 2005), (REICHMANN, 2007), (PIMENTA, 2007), (PE- TRI, 2008), (COLARES, 2010), (AUBERT, 2012), entre outras.

Virgínia Colares20, por exemplo, é uma das pesquisadoras mais ativas da área no Brasil, atuando principalmente na área da Análise Crítica do Discurso Jurídico (COLARES, 2010), com pesquisas na área desde a década de oitenta21.

Destarte, é preciso mencionar que embora haja vários estudos e publicações, expalhados pelo mundo, sobre Linguística ou Semântica Forenses, ou mesmo sobre interpretação de textos jurídicos ou legais, pouco se publicou (SANDRINI, 1999) e se publica na área específica de tradução de textos jurídicos, tema desta tese.

Desta forma, considerando o aumento na demanda por traduto- res e intérpretes forenses qualificados no Brasil, bem como uma maior simbiose entre os estudos da linguagem e do Direito, tornou-se impres- cindível pensar de forma mais completa sobre a própria existência da Tradução Forense como área de pesquisa no Brasil.

Com efeito, como um ponto de abertura a essa nova fase, foi idealizada uma associação brasileira sobre a linguagem e a lei, liderada pela Prof. Dra. Virgínia Colares (UNICAP) e pelo Prof. Dr. Malcolm Coulthard (Aston/UFSC), com o intuito de unir, divulgar e fomentar

19 Com pesquisas na área desde da década de oitenta, como (BHATIA, 1987). 20 Professora de Linguística na UNICAP, Recife.

21 Durante mestrado em Linguística na UFPE, iniciado em 1988, com dissertação

intitulada "A decisão interpretativa da fala em depoimentos judiciais", defendida em 1992.

as pesquisas nacionais da área.

A ideia central desse movimento foi a criação de um espaço de discussões no Brasil que unisse pesquisadores locais, assim como pesqui- sadores de além-mar, que trabalhem com a língua portuguesa associada ao universo forense. E assim foi esboçada, no dia 03 de Setembro de 2012, a “Associação de Linguagem e Direito”, a ALIDI22, sendo a pri- meira diretoria oficialmente constituída durante a Assembleia do dia 12 de dezembro de 2013, em ocasião do I Congresso Internacional “Lan- guage and the Law”, sediando na UFSC, sob organização do Grupo de Linguística Forense da UFSC.

A propósito, o grupo de pesquisa Linguística Forense da UFSC23 também foi criado no ano de 2013, com o intuito de ser um canal de pesquisa, exploração e prática de assuntos relacionados à Linguística Forense no Brasil, sob a liderança do pesquisador britânico Malcolm Coulthard.

2.2.1 Linhas de pesquisa da Linguística Forense

Segundo orientações do grupo Linguística Forense da UFSC, há três grandes vertentes principais de estudos em Linguística Forense no mundo, quais sejam:

1. Linguagem e Direito;

2. Interação em contextos forenses;

3. Linguagem como evidência.

22 A Associação foi idealizada na ocasião da I Conferência sobre “Linguagem &

Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Direito”, reali- zada no período de 03 a 06 de setembro de 2012, na UNICAP, Recife/PE. Esse encontro foi organizado pelo grupo de pesquisa “Linguagem e Direito”, lide- rado pela pesquisadora Virgínia Colares, e reuniu os maiores pesquisadores da área no Brasil. O evento também contou com pesquisadores europeus, como Malcolm Coulthard, que fez a palestra de abertura sobre a LF no mundo, e Rui Sousa-Silva (Universidade do Porto) que falou sobre os estudos de Lingua- gem e Direito em Portugal. Para visualização da ata de criação, visite o site: http://www.unicap.br/home/13861/ (Último acesso em setembro de 2012).

Dentro da primeira linha de pesquisa, a da linguagem e Direito, tem-se os seguintes campos de pesquisa:

• Direito comparado; • Filosofia do Direito; • Interpretação da Lei;

• História da linguagem jurídica; • A linguagem de documentos jurídicos; • Tradução forense;

• Gêneros forenses;

• Abordagens críticas na linguagem jurídica; • Prolixidade na linguagem jurídica;

• Direitos linguísticos;

• Intercâmbio terminológico entre os profissionais do Direito e da Linguagem.

Já na segunda linha de pesquisa, a da interação em contextos forenses, associam-se os seguintes campos de pesquisa:

• Interrogatórios policiais; • Discurso no Tribunal;

• Discurso em contextos prisionais; • Interrogatório de vítimas vulneráveis; • Desvantagens linguísticas diante da lei; • Multilinguismo no sistema jurídico; • Minorias linguísticas e a lei; • Estudos de Gênero Social; • RéusPro-se;

A terceira e última linha de pesquisa, a da linguagem como evi- dência, engloba os seguintes campos de pesquisa:

• Identificação de falantes e comparação de voz; • O linguista e o foneticista como peritos; • Foneticistas forenses e identificação de falantes; • Estilística forense;

• Análise de autoria; • Perfis linguísticos; • Plágio;

• Identificação linguística de nacionalidade; • Disputas sobre marcas registradas;

• Ambiguidades linguísticas em textos de advertência de produtos; • Falsificação de testemunhos e fraude.

Não obstante, esta tese está focada na primeira linha, a da lin- guagem e Direito, tendo como campo de pesquisa principal a Tradu- ção Forense, tocando questões ligadas a gêneros forenses, abordagens criticas na linguagem jurídica, prolixidade na linguagem jurídica, di- reitos linguísticos, intercâmbio terminológico entre os profissionais do Direito e da Linguagem. A TF também aborda algumas questões sobre a atuação do intérprete em contextos jurídicos, pertencente à linha de pesquisa em interação em contextos forenses.

De fato, essa característica multidisciplinar deve-se ao contato que a área da TF precisa manter com os vários campos de pesquisas existentes para atingir sua legitimidade textual e legal.

Legitimidade, segundo Acquaviva (2006: 519), seria um “atributo daquilo que se mostra conforme a razão e a natureza”. [...] E em juris- prudência, “são legítimas todas as ações ou omissões que as leis ordenam etc. Um título é legal [legítimo] quando está autenticamente na forma

que a lei ordena; um testamento é legal, quando foi feito com as soleni- dades da lei; uma prova é legal, quando nela se acham verificadas todas as condições que a lei requer etc.”

Em resumo, uma tradução forense é legítima quando seguir as estruturas que o sistema linguístico, social e jurídico do país de chegada requer.