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3 A ESPERANÇA É BOA? Práticas sociais de resistência em cidadania

4.4 Figuras metodológicas de resistência

4.4.4 Interfaces e suportes comunicacionais (braços)

O grupo no WhatsApp funciona diariamente. Os braços que vão às ruas durante os atos exibem cartazes resultantes de uma oficina de agitação e propaganda. Os muros registram o picho de indignação pela política pública que tenta arrancar uma comunidade inteira de um território. A página do Facebook exibe imagens e textos que questionam, que resistem e que articulam formação política. O documentário sobre a vivência das comunidades em um contexto desigual e excludente participa de um festival. Mais um filme está sendo exibido em local público para movimentar a comunidade com o lazer, mas também com pautas que geram a reflexão sobre a situação em que vivem. Essas são descrições rotineiras das estratégias comunicativas vivenciadas na região da Avenida Boa Esperança.

Os suportes e dispositivos comunicacionais e midiáticos estão entremeados no movimento de resistência Lagoas do Norte, pra quem?. Eles abraçam as estratégias de ação política e geram comunicação para que os resistentes militantes possam produzir seus posicionamentos, suas falas. Mais que espaços de fala, as interfaces e suportes comunicacionais fazem com que a produção de comunicação mude de mãos, saia do fluxo tradicional hegemônico e seja produzida também na periferia, em suportes que resvalam a transgressão que é forjada no seio dos movimentos de resistência social.

Maldonado (2012, p. 25) explica que a premissa da cidadania comunicativa acontece na problematização dos modos de vida das sociedades contemporâneas e na expressão deles. O autor acredita que é um passo imprescindível na vida cidadã comunicativa “[..] aquele que permite superar, quebrar, a vivência e a concepção unidimensional que só reconhece os sistemas midiáticos comerciais, capitalistas, como a melhor possibilidade de estruturação e realização social comunicativa”. Compartilho essa perspectiva de que é na esfera da vida cidadã comunicativa que os sujeitos expressam contextos midiáticos e comunicacionais de maneira sensível a realidade que os cercam e que em nada se assemelham aos que vemos estampando as páginas e telas das mídias hegemônicas tradicionais.

A premissa é que a cidadania comunicativa é capaz de construir e reconstruir, não de restringir os processos comunicacionais que vigoram no âmbito das comunidades, dos movimentos de resistência. A utilização dessas interfaces e suportes possibilita a constituição de estéticas diferenciadas de conteúdo comunicacional, articulam a comunicação popular a partir dos sujeitos que não ascendem à esfera midiática hegemônica e conectam os mecanismos de resistência na pauta comunicativa. A cidadania comunicativa e sua ambiência possibilitam entendimentos distintos a respeito da realidade social, intercalando características antropológicas, multiculturais e comunicacionais pertinentes aos sujeitos que a realizam.

Entendo essa figura como os braços do corpo da metodologia da resistência, em virtude da capacidade produtiva e de ação, enquanto também diz respeito a um fluxo contra- hegemônico que entende a comunicação e seus mecanismos a partir de uma ótica de horizontalidade. Na cidadania comunicativa, os processos de produção, distribuição e consumo dos bens comunicacionais e midiáticos são estabelecidos a partir do coletivo e das relações intrínsecas que se estabelecem no berço dos movimentos de resistência.

Camacho Azurdy (2005) entende que a cidadania comunicativa é a relação comunicacional que se estabelece entre os sujeitos sociais e os meios de comunicação, que possibilita a autonomia e o desenvolvimento das condições de vida. Essa é uma perspectiva possível quando escapamos dos meios de comunicação de massa tradicionais, principalmente. Ainda que o autor parta da possibilidade de existência de cidadania comunicativa em uma intersecção como os meios tradicionais – uma compreensão que percebo ser difícil em virtude das desigualdades de fluxos e da impossibilidade dos sujeitos em produzir comunicação nesses suportes –, acredito que essa forma de entendimento é perceptível quando a comunicação é aportada em meios e estratégias comunicativas alternativas, contra-hegemônicas.

Isso significa dizer que a produção comunicativa cidadã percorre o caminho da autonomia e das condições de vida dos sujeitos na tentativa de promover emancipação política

e práxis cidadã. A cidadania comunicativa estabelecida nas interfaces e nos suportes comunicativos da resistência assume bases reivindicatórias, contestadoras dos discursos dominantes e dos processos de produção que não dão conta da multiplicidade da sociedade e suas demandas. “Você faz uma mobilização, você faz uma coisa, você faz uma filmagem e coloca na rede social e você faz a denúncia. Então assim, as redes sociais são importantíssimas como instrumento de denúncia, de comunicação” (OLIVEIRA, 2018, entrevistas). A postura de Lúcia Oliveira nas redes sociais aponta essa possibilidade recorrente de produção de comunicação a partir da ótica da comunidade, ao passo que ressignifica os sentidos dos fluxos de denúncia, que passam a acontecer também pelas mãos dos movimentos de resistência, mas de forma singular, sem a leitura dos meios tradicionais.

Essas estratégias quebrantam a lógica recorrente no modelo midiáticos tradicionais, enquanto sustentam na resistência possibilidades múltiplas de compreender a comunicação e suas múltiplas facetas. Quando um morador grava vídeos de casas sendo derrubadas compulsoriamente13 e registra a ação violenta do poder público nas redes socais, quem precisa dar uma resposta é a entidade pública que realizou a ação violenta de destruição, não a comunidade que perdeu suas casas. O fluxo comunicativo tradicional se inverte.

A intersecção de vários grupos na organização do coletivo que forma o movimento de resistência Lagoa do Norte, pra quem? possibilita a construção de espaços de produção de comunicação popular e jornalismo alternativo, nos quais é possível perceber mecanismos plurais de comunicação. É o caso do Ocorre Diário (https://ocorrediario.com/). Na página, o coletivo Flores.Ser Comunicação realiza a produção de jornalismo alternativo e comunicação popular e as reportagens abrem espaço para que a comunidade em resistência possa fazer suas denúncias, discutir e opinar sobre os modelos de políticas públicas que são aplicadas na periferia das cidades.

A página Ocorre Diário é resultado dessas mobilizações de resistência, das estratégias comunicativas produzidas nos movimentos e figura como um elemento comunicativo que também resiste e tenta ressignificar os modos de fazer e produzir comunicativa e midiaticamente. O espaço funciona como um meio de comunicação alternativo que intersecciona assuntos e pautas, que em outras condições não ascenderiam aos meios tradicionais, porque não atendem aos critérios de noticiabilidade que reiteradamente repercutem nos meios hegemônicos. É importante perceber, que quando o Lagoas do Norte, pra quem? é

13 No dia 30 de outubro de 2018, casas foram postas abaixo por máquinas sem qualquer aviso prévio, na Rua 1 da

Vila Apolônia. Os vídeos que circularam pelas redes socais mostravam o desespero de famílias que estavam vendo suas casas irem ao chão.

tratado no Ocorre Diário, o fluxo das ações comunicativas são outros. Todavia, quando há o compartilhamento desses conteúdos nas redes sociais há uma institucionalização daquilo que está sendo exposto midiaticamente. Em outras palavras, o Ocorre funciona não só como um espaço de ressignificação jornalística, mas também como um ambiente que institucionaliza as vozes silenciadas do movimento de resistência mencionado e de outros que estão atuando na capital piauiense.

A organização das interfaces e os suportes comunicacionais de resistência fazem com que os movimentos não fiquem perdidos em um looping de produção comunicativa sem fluxo. Pelo contrário, permitem que os sujeitos saiam dos silenciamentos e reconfigurem as formas de ser e existir na sociedade. A cidadania comunicativa que resulta dessas articulações é uma prática social que está estabelecida na práxis cidadã. Essas confluências possibilitam conhecimentos, liberdades, capacidades produtivas e criativas, geram alegria, prazer e mistificam os espaços de resistência. Lúcia bem nos lembra, como é que se vive sem mistificar?

Desse modo, os braços das interfaces e suportes comunicacionais possibilitam a construção lógicas comunicativas abertas, geram nos sujeitos o entendimento que é possível pensar midiaticamente fora do espectro da comunicação midiática tradicional e que por meio desses suportes alternativos é possível acessar uma visibilidade não distorcida pelos filtros da comunicação hegemônica.