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RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar ressignificações e transformações pessoais que uma pesquisa-ação com velhos produziram na pesquisadora. Escrito sob a forma de ensaio, a discussão recupera fragmentos de histórias de vida da autora e reflexões sobre situações vividas ao longo do trabalho de campo em oficinas de contação de histórias realizadas com velhas em situação de vulnerabilidade social, assistidas por uma ONG no subúrbio ferroviário de Salvador-Bahia. Assume-se a função biográfica da escrita como modo de construção de autonomia e transformação pessoal. A base teórica para a construção do ensaio é a Gestalt- terapia, com ênfase na ideia de relação dialógica e da noção de “aqui e agora”. Dentre as ressignificações percebidas, encontram-se o contato com o próprio processo de envelhecimento, reconhecendo que se trata de uma construção diária, sem data futura e distante para chegar, mas envolvida na própria condição cotidiana de ser humana; a reconexão com a simplicidade e a imperfeição; o reconhecimento de que contar histórias e atualizar memórias não significam necessariamente viver de passado, mas presença no aqui e agora, que possibilitou o repensar da forma como o tempo era percebido e vivido pela autora.

INTRODUÇÃO

Apesar de nossos apegos atuais, nossas mágoas, dores, choques, realizações, perdas, ganhos, alegrias, o local que almejamos é aquela terra psíquica habitada pelos velhos, aquele lugar onde os humanos ainda são tão perigosos quanto divinos, onde os animais ainda dançam, onde o que é derrubado cresce de novo, e onde os ramos das árvores mais velhas florescem por mais tempo. A mulher oculta que preserva o estopim dourado conhece esse lugar. Ela conhece. E você também (Clarissa Pinkola Estés, 2007).

Iniciarei este ensaio com mais uma citação, além da epígrafe: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece ou o que toca” (Larossa, 2002, p. 21). Compreendo, diante do que explicita esse autor, que todos os dias muitas coisas se passam, atravessam nossa existência, mas só permanecem e transformam aquelas que nos passam e nos tocam, a saber, as experiências. Começar por essa citação reforça a dimensão da experiência como constitutiva do processo de autoconhecimento e autorreflexão na pesquisa, na medida em que, enquanto sujeito da experiência, encontro-me aberta e atenta às transformações produzidas nos sujeitos com os quais trabalhei e também, e sobretudo, em mim. Escrever este ensaio me tocou e comoveu, de forma que, sem jamais poder imaginar ou antecipar o resultado, me abri para um vazio, rumo a um caminho numa direção desconhecida, não preocupada em chegar a uma meta final, mas desfrutando do processo, descobrindo estradas, pistas, atalhos e me descobrindo à medida que caminhava nesta narrativa.

Minha proposta inicial era investigar o processo de ressignificação do envelhecimento com e a

partir das memórias de velhos, utilizando como ferramenta oficinas de contação de histórias,

por meio de uma pesquisa-ação com participantes inscritos em uma ONG no Subúrbio Ferroviário de Salvador, de forma que meu olhar estava completamente voltado para eles, tornando-me personagem secundária ao longo do processo. Para minha grata surpresa, dei-me conta de que a principal ressignificação talvez tenha ocorrido em mim mesma, o que me motivou a mergulhar na construção que se segue, dedicando um espaço para tais descobertas. O objetivo deste ensaio é apresentar fragmentos de histórias da minha vida e das histórias de vida de velhos atendidos por uma ONG do Subúrbio Ferroviário de Salvador, numa reflexão aqui compartilhada sobre ressignificações e transformações que esses encontros geraram em mim. Assumo, neste sentido, uma função biográfica da escrita, num exercício de autonomia

como proposto por Paulo Freire (2007) e inspirada pelo sociólogo francês Vincent de Gaulejac (2009), afirmando-me existente e reconstruindo-me com a minha própria narrativa. Fui apresentada a Vincent de Gaulejac no ano de 2011, durante uma formação profissional em História de vida. Surpreendentemente, somente agora, seis anos depois, consigo compreender a força real da narrativa de vida. Trata-se de uma ferramenta da historicidade, que nos permite trabalhar nossa própria vida, reconstruir o passado, suportar o presente e tornar o futuro mais bonito (Gaulejac, 2009). Recontar a vida é um meio de nos refazermos. Utilizo como base teórica para a discussão dos resultados a ideia de relação dialógica, e a noção de aqui e agora, como concebidos pela Gestalt-terapia. Utilizo, também, a terminologia “velhas”, no feminino, em diversos momentos deste artigo, numa perspectiva política, compreendendo que se trata de um grupo majoritariamente feminino, mas sem excluir a tão importante presença do único homem que participou.

Confesso que, ao iniciar este texto, assustei-me, me senti paralisada, com grande dificuldade, percebendo o quanto estava treinada no discurso e roteiro científicos, temendo a liberdade de uma escrita em primeira pessoa, tão distante dos modelos construídos na ciência da psicologia brasileira. Pensei em desistir e me concentrar apenas nos esperados relatos de descrição das oficinas, revisão da literatura e apresentação e discussão dos resultados. Também me questionei o porquê de sempre querer seguir por caminhos não convencionais, que me dão muito mais trabalho que fechar os olhos e seguir na esteira da produção em larga escala. Contudo, o grau de excitação que foi gerado em transpor a minha experiência em palavras e todo o envolvimento que marcaram este trabalho, desde a formulação do tema, à prática e construção deste artigo, mereciam uma dedicação especial. Tratou-se de experimentar-me em novas formas, possibilidades, numa intensa transformação criativa. Um ato de coragem, na perspectiva apontada por May (1975), como ação do coração.

Para Robine (2005) existe importante distinção entre cronologia e crônica. A primeira visa ao estabelecimento de ordem, para além de datas de acontecimentos históricos, enquanto a segunda trata de relato, real ou imaginário, que se esforça por traduzir uma realidade histórica ou social. Neste sentido, a Gestalt-terapia é referenciada mais pela crônica, na formação de formas, sentidos, do campo de consciência, dos contatos em relação e em associações temporárias (Robine, 2005). Com efeito, este trabalho pretende ser uma reconstrução de histórias, impregnada de subjetividade e lembranças, que não sei até que ponto existiram exatamente como serão contadas; afinal, escrevo com base em um olhar do hoje sobre elementos passados. De fato, numa autobiografia, ou mesmo num romance, o começo se dá

pelo fim, pois só existe possibilidade de começar de onde o sujeito está (Gaulejac, 2009) e é a situação atual que estrutura toda a minha narrativa.

Tratar dessas narrativas é tratar da apropriação que faço da minha história pessoal e coletiva, além das possibilidades de sua enunciação. A revelação do meu viver nesta formulação perpassa também histórias sociais, institucionais, abrangendo uma perspectiva social e política, conforme afirma Gaulejac (2009), sendo inseparável deste processo. Busco, neste movimento, substituir a informação, em excesso em nossa sociedade (Benjamin, 1994), pela experiência (Larossa, 2002) e apresentar-lhes recortes de minha experiência, numa intenção de que ao lerem este escrito, possamos nos encontrar para sentir, conversar e compartilhar. Compreendo que a criatividade instaura uma surpresa, uma novidade e que há uma ligação intrínseca desse novo com algo de histórico, já que toda criação está vinculada a alguém que, por sua vez, está atrelado a um contexto, às suas vivências e às suas urgências mais atuais. Deste modo, ainda que seja uma matéria nova, esta criação traz minhas marcas históricas como sujeito no mundo, deixando um caráter interconstitutivo entre sujeito e objeto (Silva, Oliveira & Alvim, 2014). Na medida em que sou formada pelo ambiente, também o formo; na medida em que fui construindo esse material, fui me reconstruindo.

A ARTE DO ENCONTRO: CUIDAR E SER CUIDADA

Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem (Clarice Lispector, 2016).

Imprimindo palavras neste diário que não é só meu, escuto as minhas avós. Escuto e identifico a dimensão que minha ancestralidade tomou na minha atuação ao longo dessa investigação, num tempo que é delas e, com sua permissão, tornou-se também meu.

Uma primeira cena me vem à mente. Simples, cotidiana. Eu, no auge dos meus 9 ou 10 anos de idade, e minha avó Risó, sentadas na cama dos meus pais, numa tarde, como quase todas em Salvador, muito quente e ensolarada. A televisão tagarelava ao fundo, numa típica novela das 15h, insistindo em enfraquecer a nossa conversa, mas fracassando, sem tomar a nossa atenção. Brincávamos de “cuva-cuva-cuvaléia” (com certeza não era essa a palavra, mas por se tratar de vocábulos italianos, era assim que eu entendia e repetia), ríamos juntas e,

enquanto me deixava ganhar, coisa de que só tenho consciência hoje, pois na época acreditava ser mesmo boa nesse jogo, me dizia baixo e escondido que eu era a sua neta preferida. Tecíamos a nossa relação através de palavras, afeto, brincadeiras, partilhas e histórias. Através da voz da minha avó materna, recebia o direito à minha identidade, me sentia pertencente, incluída, amada, existente.

A segunda cena remonta ao interior onde vovó vivia. Netos e filhos conversavam na varanda, assistindo o dia passar, no silêncio daquela cidade pacata, enquanto ela trabalhava, junto a sua amiga Agostinha, uma velha que vivia em sua casa, considerada irmã, cúmplice dos quitutes que ganhavam nossos corações. Distraíamo-nos até a hora do “está na mesa”, momento em que se encerrava qualquer assunto, mesmo que estivesse pela metade, para correr e comer até que a barriga parecesse explodir. Aqui, primeiro serviam-se as crianças e meu avô, depois comiam os adultos e vovó, numa ordem de preferência por prioridade, criada por ela, como hoje consigo entender.

A terceira e quarta cenas, também em sua casa antiga no interior, se passam numa visita, já adolescente, que experimentei sozinha, sem irmãs ou pais, para fazer-lhe companhia. O dia estava frio, eu na sala, entediada e já cansada de tanto cochilar, levantei do sofá e resolvi participar do “planejamento estratégico” da refeição, seguido do labor que se passava na cozinha. Sim, aquilo era uma verdadeira empresa e minha avó, sabiamente, delegava tarefas, funções e organizava a ordem da produção. Fiquei responsável por cortar os temperos e jogá- los nas panelas. Sim, não parece muito, mas na verdade não era nada simples. Até hoje me esforço para fazer cubos tão pequenos e simétricos quanto minha avó fazia, naquela mesma rapidez, já compreendendo que não foi uma habilidade que herdei. De qualquer modo, senti- me útil, importante e adorei levar a fama, quando chegaram as visitas para jantar e ela respondeu aos elogios continuados: “fizemos eu, Agostinha e Ninha. Essa aqui leva jeito!”, fazendo-me esquecer que eu tinha feito o mínimo para aquela obra-prima.

Ao findar a noite, passando mal de tanto beliscar biscoitinhos confeitados, suspiros e balas de mel, visitei o banheiro umas seis ou sete vezes, sentindo dores abdominais absurdas. Vovó preocupou-se, preparou compressas de água morna e as instalou em meu abdômen, colheu folhas de boldo do seu quintal e preparou um chá amargo que era “remédio, minha filha”, dizia num tom firme e doce, sem me deixar convencê-la a não tomar. Fez também um

“mingau de cachorro”8

. Após três colheradas, fui obrigada a fingir que ia vomitar, para interromper aquela tortura em meu paladar.

Naquele cenário, o que mais impressiona não é a sabedoria que ela carregava de uma medicina natural e alternativa, fazendo-me melhorar sem usar uma alopatia sequer, mas o cuidado e a delicadeza, somados a uma firmeza e segurança impecáveis, demonstrados em seu trabalho incansável até me ver aliviada, com seus oitenta e muitos anos, acordada, ao meu lado na cama, até me ver cochilar. Para Botelho (2016) o cuidado é um fenômeno ontológico- existencial básico e torna humana a nossa existência. É mais que um ato ou uma atitude; é presença e está presente em tudo.

Tive em minha avó Risó, minha primeira escola de direitos humanos. Através da força dessa velha sábia, que imprimiu em mim o plano da escuta sensível, aprendi sobre comunicação e convivência. Das regras do almoço, dos jogos, das histórias, às regras da cozinha, aprendia que respeito não significava submissão e firmeza não significava violência. Eu não fazia ideia de que, durante aquelas cenas, estava sendo alfabetizada na psicologia, na escuta ativa e qualificada; nos valores humanos, relações humanas, relações dialógicas e práticas restaurativas e integrativas. Não à toa, das três netas, duas são psicólogas e uma professora. Se hoje consigo, mesmo que timidamente, me relacionar e cuidar do outro, devo e dedico esse aprendizado à minha avó. Seu cuidado, sua atitude presente, mesmo após falecer, tornou a minha existência mais humana.

Ouvir nos depoimentos daquelas mulheres velhas, ao longo das oficinas, a devolutiva em relação ao respeito e cuidado que tivemos, remonta-me quase que imediatamente a vovó Risó. Invade-me uma vontade de voltar no tempo e pedir que não me agradeçam, como fizeram durante os nossos encontros, mas agradeçam à ela, vontade que é abrandada ao entender que no ato de vê-las e ao ser vista por elas, materializo e presentifico a minha avó. Ao propor espaço para que se expressassem e se escutassem, escutava também minha avó. Ao ser escutada por elas, dava voz à minha avó, que se fez presente em mim pela força ancestral que me formou, me ensinou e, em parte, me fez ser eu.

Ao falar em relação dialógica, refiro-me à atitude relacional própria do ser humano, e que é compreendida pela Gestalt-terapia tal como formulada por Martin Buber (2001), em seu livro

Eu e Tu. De acordo com a filosofia dialógica, o foco não é o Eu nem o Tu, mas a relação, o entre, isto é, uma “ontologia da relação” (Marcondes Filho, 2008, p. 97), uma filosofia do

8 Vovó chamava Mingau de Cachorro uma preparação à base de água, farinha e alho, numa consistência de purê,

encontro Eu-Tu, que será mais explorada à frente, compreendendo o vínculo entre a experiência vivida e a reflexão, entre o pensamento e a ação (Amorim, 2007). O fato primitivo para Buber (2001) é a relação. Este autor compreende o dialógico, aí incluindo a relação e a atitude de ir em direção ao outro, numa busca do encontro da totalidade humana. A base do encontro genuíno não é constituída de conceitos abstratos, mas da própria experiência existencial se revelando (Buber, 2001).

Hycner (1995) afirma que a ênfase excessiva no individual cria uma cisão entre as pessoas e em seus relacionamentos com a natureza, além de uma cisão da própria psique. A perspectiva dialógica vem como um esforço para sanar essas rupturas (Hycner, 1995). Esse autor estruturou os princípios dialógicos desenvolvidos por Buber em forma de psicoterapia dialógica, cujo objetivo é desenvolver uma postura relacional das polaridades Eu-Tu e Eu-Isso no processo terapêutico (Amorim, 2007).

Quando falamos de Eu-Tu e Eu-Isso, consideramos que o dialógico acontece no “entre” e abrange duas posturas polares, a saber, Eu-Tu e Eu-Isso. Essas são as duas atitudes primárias que um ser humano pode assumir em relação aos outros (Buber, 2001; Hycner & Jacobs, 1997). Para Hycner e Jacobs (1997) a primeira é uma atitude de “conexão” natural, enquanto a segunda de “separação” natural, ambas essenciais. A experiência Eu-Tu envolve a presença mais plena possível, numa experiência de apreciação da singularidade e totalidade do outro, ocorrendo simultaneamente entre as duas partes envolvidas (Buber, 2001; Hycner, 1995; Hycner & Jacobs, 1997). É uma experiência mútua, de valorização profunda e relação, em um encontro genuíno. Já a atitude Eu-Isso é totalmente dirigida para um propósito, “coisificando” o outro, na finalidade de atingir uma meta (Buber, 2001; Hycner & Jacobs, 1997). O objetivo se torna primário, e a pessoa, secundária, uma atitude necessária e inevitável em alguns momentos do fazer humano (Hycner & Jacobs, 1997). O ponto central dessa perspectiva é colocar o encontro como tema central (Hycner, 1995; Hycner & Jacobs, 1997).

Considero importante ressaltar que o termo dialógico não deve ser igualado à ideia de interação verbal, embora seja um aspecto importante desta. O dialógico “não é algo que ocorre dentro de uma pessoa, mas sim uma experiência ‘misteriosa’ que ocorre na esfera entre uma pessoa e outra” (Hycner, 1995, p. 68).

Quando pensei esta investigação, tinha a pretensão ou arrogância de, através de uma intervenção, modificar aqueles sujeitos, aquele contexto, aquela realidade, imersa numa atitude Eu-Isso, focada em um objetivo final. No fim das contas, num processo dialógico e realmente transformador, compreendi que o objetivo final tornou-se secundário e que fui

transformada tanto ou mais que eles. Creio que, em muitos momentos, alcançamos um encontro Eu-Tu, onde os objetivos planejados para as oficinas tornavam-se secundários, dando espaço para um palco de humanidades. Naquele palco, havia o nosso encontro, a nossa escuta, a nossa relação, que se mostravam figura.

Validamo-nos, nos fizemos sujeitos, envolvidos, presentes, contrastando com um sistema opressor e excludente, que fomenta a partilha entre grupos de iguais, em modelos pré- aprovados socialmente, reduzindo a magia de um aprendizado que traz a diversidade, a intergeracionalidade, como me havia ensinado, anos atrás, vovó Risó. Massi, Santos, Berberian e Ziesemer (2016) confirmam para mim esses ensinamentos, afirmando que uma forma possível de desmistificar estereótipos que recaem sobre a velhice se dá por meio da aproximação entre diferentes gerações. Nos aproximando, numa postura dialógica, pudemos ser juntos ressignificados.

Retomei o meu contato intergeracional e minha ancestralidade pelo encontro com a voz dessas avós. A voz que, numa perspectiva dialógica, vai além da sonoridade verbal. Retornei às minhas origens, à base da minha genealogia, entendendo o sentido real do cuidar e ser cuidada, ao experimentar o carinho, a dedicação e a delicadeza firmes que essas velhas sábias me proporcionaram. Pude experimentar cuidar com palavras, com intenção, com o corpo, com abertura para esse entre, sabendo que o que recebi, desde a infância com a minha avó, atualizado no carinho com as minhas novas “avós”, me ensinou e facilitou, na força do que pude dar.

Houve entrega, postura dialógica, abertura para um encontro, em ambos os lados. Não sem medo, já que todo encontro transforma, mas com uma confiança que foi sendo construída, encontro por encontro, gesto por gesto, história por história, formando um castelo de boas memórias e ações. Buber (2001) traz a perspectiva da confirmação do outro, partindo da aceitação da pessoa como um processo de vir a ser, confirmando e tornando real suas potencialidade, não aceitando o outro como algo fixo e predeterminado pelo seu passado, postura presente ao longo dessa relação.

Patrícia, após a quinta oficina, convidou a mim e a Fernanda para irmos a sua casa. Insistiu, fez questão, queria que conhecêssemos o seu “barraco”, como ela o apelidava, “vamos, vocês estão de carro, não demora cinco minutos!”. Resolvemos ceder à sua vontade. Levamos Felicidade, que morava ao lado, na carona. Entra rua, sai rua, sobe e desce ladeira, o primeiro pensamento que me interpelou foi “como elas caminham tudo isso, nesse sol quente, nesta idade?”.

Chegamos. Ela pediu cinco minutos, entrou descalça no meio do seu quintal, cheio de árvores e mato alto, com um pano enrolado na cintura, apressada e com a respiração encurtada, enquanto nos olhávamos sem entendimento sobre o caminho em que aquilo ia findar. Felicidade nos distraiu com boas conversas e histórias, até que volta Patrícia, com o pano cheio de acerolas e carambolas, “Catei para vocês!”. Saímos de lá com uma penca de bananas, sacos de acerolas, carambolas e um pano que ela bordou para nossos banheiros. Lembrei-me de vovó Risó, na cena que contei anteriormente, ao entrar em seu quintal atrás de boldo para as minhas dores. Patrícia não sabia, mas colhia memórias, cuidado e afeto junto às acerolas e carambolas. Colhia um pedacinho da minha história, atualizada nas frutas da estação.

RELATIVIZANDO O TEMPO AQUI E AGORA: SENTIDO X PERCEBIDO

Existe forte distinção entre a história, tal qual se reconta em uma narrativa, e a história como série de acontecimentos e situações. Essa distinção revela outra, essencial, entre o tempo