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Intericonicidade e o discurso da imagem

No documento IN MEMORIAM (páginas 138-142)

Capítulo 2–Navegando pelas águas da Palavra

Capítulo 4 – Manchas de Sangue em águas violentas

4.2 GESTOS DE MEMÓRIA NOS DISCURSOS

4.2.2 Intericonicidade e o discurso da imagem

Você já se perguntou se consegue pensar sem imagens?

As inscrições rupestres são os vestígios mais antigos da comunicação humana, estabelecida por imagens, muito antes do surgimento da escrita. Somos produto e produtores da imagem desde sempre. Vejo as imagens em nosso “pensamento” como resultado (nunca fechado, mas em contínuo processo) da percepção que transforma as experiências de vida em informações visuais mentais.

As imagens podem representar objetos materiais, concretos, captados pela visão, ou imateriais, criados em nossa mente. No âmbito das imagens que permeiam a sociedade, Gregolin (2003) lembra que a sua circulação se dá no interior das relações promovidas pelas instituições produtoras de textos que realizam o trabalho significante da cultura. Eis, pois, o lugar da instituição imprensa.

Os trajetos simbólicos, construtores do imaginário social, dependem de um diálogo entre sujeitos, entre enunciadores (que fazem circular concepções de mundo) e enunciatários (que as interpretam reconhecendo-as ou não). Nesses trajetos, através dos múltiplos imaginários, traduzem-se visões de mundo que coexistem, superpõem-se ou excluem-superpõem-se enquanto forças reguladoras do cotidiano.

(GREGOLIN, 20013, p.98)

Ciente de que existem várias teorias cognitivas para tratar imagens, peço licença para olhar o não verbal como discurso, valendo-me dos elementos teóricos aplicados aos

52 A indicação dos linguistas que trabalham o acontecimento discursivo, além de Pêcheux, foi extraída de Charaudeau, Maingueneau (2004). Os autores apontam vasta bibliografia do contexto da AD na França.

A obra de Guilhaumou, Maldidier e Robin citada, trata-se de “Discurso e Arquivo: experimentações em Análise do Discurso”.

139 códigos verbais. Reconheço os riscos dessa empreitada. Sei também que as interpretações, por vezes, podem sugerir miradas intuitivas, fruto da experiência profissional como editora de reportagens em TV. O que aprendi de ofício, de fato, pode ajudar-me a inferir a intenção de determinado enquadramento em função de outro, mas isso no que tange à prática do jornalismo. Já nos aspectos discursivos da imagem, espero depreender o que “foi dito”, o que “não foi dito” e “como se disse” a partir dos conceitos de Análise de Discurso apresentados neste capítulo.

É por meio do imaginário social em que se constroem identidades, que as sociedades estabelecem sua cultura, ditam as normas e as ameaças e, em síntese, organizam o seu passado e futuro. O trabalho de interpretação dessas imagens que circulam socialmente nos discursos da mídia estará relacionado à concepção de memória. E como as imagens de hoje evocam imagens (memórias) do passado?

Nascemos em um mundo que se narra, e as imagens que muitas vezes acreditamos ter registrado em nossas memórias, a partir de vivências pessoais, são na verdade, reconstruções baseadas em depoimentos e relatos que, de alguma forma, impõem-se a nós (FERREIRA, 2005, p.

107).

Há que se identificar a construção de memórias sugeridas nas imagens que vêm e vão nas narrativas aqui estudadas. Para Gregolin (2003, p. 96), “a mídia constrói uma história do presente, simulando acontecimentos-em-curso que vêm eivados de signos do passado”.

Logo, a imagem é mais um dos interdiscursos que compõem as reportagens jornalísticas, seja no suporte impresso ou televisivo. O que constitui a identidade do discurso sobre a mulher vítima dos crimes é este entremeado de trocas entre os vários discursos “escolhidos” para compor aquela matéria.

Assim, retomo a noção de interdiscurso, que, aplicada às materialidades não verbais, ganhou a definição de intericonicidade em Courtine:

a noção de intericonicidade é uma noção complexa, porque ela supõe a relação de uma imagem externa, mas também interna, as imagens de lembranças, as imagens de memória. As imagens de impressão visual armazenadas pelo indivíduo. Imagens que nos façam ressurgir outras imagens, mesmo que essas imagens fossem apenas vistas ou simplesmente imaginadas. (COURTINE, 2005)

140 No Brasil, o professor Nilton Milanez é um dos principais debatedores do pensamento de Jean-Jacques Courtine. Milanez foi seu aluno, em Paris, tendo tipo oportunidade de aproximar-se do mestre para entrevistá-lo em duas ocasiões. Desses encontros, resultaram vários artigos com o propósito de compreender o funcionamento da memória no campo discursivo das imagens.

Ao longo de duas décadas, o conceito de intericonicidade foi sendo elaborado e reelaborado por Courtine. Milanez (2013) diz que o pesquisador francês está empenhado em fazer uma arqueologia do imaginário humano. A palavra “arqueologia”

empregada por ele está mesmo baseada em Foucault (2010), já que Courtine revisita o conceito de enunciado proposto pelo autor de “A Arqueologia do Saber”, aplicando-o às materialidades não verbais. E, Milanez (2013, p. 347) corrobora: “há um trabalho discursivo essencialmente com a língua que pode, certamente, ser deslocado para se pensar a imagem”.

Outros pesquisadores têm feito esse deslocamento, como por exemplo, Indursky (2011), ao analisar o “discurso do descobrimento do Brasil” em materialidades distintas:

a “Carta de Caminha”, um quadro sobre a “Primeira Missa”, uma marchinha de carnaval e um cartoon. A autora desenvolve interessante ponto de vista sobre a rede de memória que faz ressoar sentidos:

deste encontro/desencontro entre o dizer cristalizado pelas práticas discursivas, que faz ecoar um sentido que circula na memória social, e sua ressignificação pelo sujeito do discurso, que se desidentifica, se contraidentifica com os saberes do discurso fundador do/sobre o descobrimento do Brasil, dá-se a ressignificação dos pré-construídos analisados. (INDURSKY, 2011, p. 85)

E o caminho trilhado por Indursky aponta o horizonte a mirar: “a memória na AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A memória neste domínio de conhecimento é social” (ibidem, p.75). A noção de memória discursiva, portanto, será empregada para se identificar como certos enunciados sobre a mulher estão na origem dos discursos, como são retomados ou transformados e como permanecem (ou não).

141 Bom, a partir da delimitação desses conceitos apresentados e que vão pautar as análises, o que se quer saber é: como um discurso produz sentidos, como um enunciado, em dada materialidade, realiza a discursividade que o constitui e como os discursos veiculados pela imprensa produzem memórias sobre a mulher.

1) Quem é a mulher/vítima do crime? Como ela se diz?

2) Como o acusado/réu vê a mulher/vítima?

3) Como o discurso jurídico vê a mulher/vítima?

4) Como o discurso jornalístico vê a mulher/vítima?

5) Como as imagens escolhidas para ilustrar as narrativas jornalísticas sobre o crime produzem discursos sobre a mulher/vítima?

Para tentar responder, é preciso identificar quais termos ou expressões aparecem nos discursos sobre a mulher/vítima, qual é a acepção considerada dessas expressões e se elas voltam com regularidade. Quais seriam as leituras possíveis sobre os interdiscursos dos enunciados analisados? Quais regularidades de memórias discursivas podem sugerir o imaginário social sobre a mulher no Brasil, ao longo dos últimos 50 anos? As imagens veiculadas suscitam a memória de outras imagens? Que discursos e interdiscursos elas produzem, ou seja, é possível identificar traços de intericonicidade?

Estas são algumas perguntas para as quais navego em busca de respostas.

Escolha o seu lugar na proa, porque agora, esta viagem entra em mares ainda mais revoltos.

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Capítulo 5 – Águas revoltas: Discursos, Imagens e Sentidos no

No documento IN MEMORIAM (páginas 138-142)