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PARTE II – FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS E

1. Internet, jornalismo e cibermeios cidadãos

A palavra escrita vem sendo utilizada para interferir no devir social desde quando seus próprios registros permitem saber. A própria persistência de Platão, registrada em Phaedrus, sobre a superioridade da fala era um sinal de que uma grande mudança iria afetar a cultura humana. A ligação de lugares e comunidades distantes pela circulação em larga escala da informação, formando uma comunidade de leitores conscientes de não estarem sozinhos na partilha daquele conhecimento, é uma dimensão deste meio – a escrita, e de sua expansão através da imprensa que foi definitiva para a formação da sociedade ocidental (DARTON; ROCHE, 1996). De forma semelhante a Platão “quando o carrasco público rasgou e queimou livros proibidos no pátio do Palais de Justice em Paris, estava rendendo tributo ao poder da palavra impressa” (DARTON, 1996, p. 49). Não foi por menos que Marshall

Mcluhan (1971) intitulou a sociedade pós-imprensa de Galáxia Gutenberg, e o homem desta era de homem tipógrafo. A escrita, e toda revolução tecnológica que veio em sua esteira como o fonógrafo, automóvel, eletricidade, telefone, imprensa, rádio, televisão e cinema ajudaram a fragmentar sociedades fechadas e tribais, a construir novas atitudes, crenças e valores que impulsionaram uma revolução cultural e social sem precedentes na humanidade (MCLUHAN, 1969, p.3).

É também na trilha desta revolução que nasce o jornalismo, com seu ideal de esclarecimento, instaurando uma nova subjetividade, não mais aquela da percepção primeira, mas uma estruturada na experiência singular mediada (MACHADO, 1992, GENRO FILHO, 1987, ALSINA, 2005, GROTH, 2011). Os primeiros periódicos eram pequenos empreendimentos comerciais voltados para o lucro, produzidos por um ou dois repórteres (SOUSA, 2008, p. 34). Na origem da prática jornalística, no século XVII, a produção da informação era descentralizada e praticada por colaboradores (DE BAECQUE, 1996, POPKIN, 1996). O jornalismo somente se institucionaliza no século XIX, quando ocorreu a fixação dos jornalistas enquanto uma categoria profissional, a consolidação das empresas jornalísticas e a formação de um público de massa (SCHUDSON, 1978, SCHILLER, 1981, SOUSA, 2008, MACHADO, 2006). E a mudança não foi da noite para o dia: o processo de profissionalização se deu ao longo de séculos quando o indivíduo escritor independente se transformava na figura do jornalista profissional, começando a trabalhar para periódicos. Tanto que o mercado gerado pela industrialização da imprensa no século XIX havia já surgido antes e impulsionara a autonomização e valorização do profissional jornalista (FIDALGO, 2008, p. 107).

Depois de sua institucionalização, o jornalismo não deixou de ser praticado por indivíduos independentes. Na Alemanha pré-nazista, entre 1912 e 1934, o escritor e jornalista Karl Kraus escreveu e editou sozinho a revista Fackel definindo-se, ao mesmo tempo, como objetivo e apartidário, engajado e combativo, e, para os estudiosos de hoje, em uma palavra, polêmico (MARCONDES FILHO, 2009). Em seu empreendimento solitário, Kraus teria vislumbrado o esvaziamento da língua e da capacidade de imaginação das massas em um jornalismo literalizado que levaria à perdição de sua época. Literalizado significa que se alimentava o fascínio pelas palavras impressas, literárias, mesmo que suas frases estivessem carregadas de vazio (MARCONDES FILHO, 2009, p. 24-26). Gillmor (2004) menciona, na história dos Estados Unidos, alguns indivíduos que, através de jornalismo individual, tornaram-se cânones da prática profissional. Benjamin Franklin, autor

do Pennsylvania Gazette, demonstrava preocupações cívicas e posições controversas; os panfletários arriscaram-se publicando seus escritos antes da garantia da liberdade de impressa pela Primeira Emenda dos Estados Unidos; Thomas Paine, no século XVIII, e os jornais federalistas de autoria anônima tiveram importante atuação na aprovação das constituições nos estados e na constituição na nação de seu país (GILLMOR, 2004, p. 1-2). O jornalismo pessoal sobreviveu mesmo aos jornalistas investigadores de escândalos (muckrakers) que surgiram no século XIX. No contexto dos Estados Unidos, Gillmor cita ainda I.F. Stone, que produziu um periódico próprio de jornalismo investigativo; suas técnicas haveriam influenciado uma geração de jornalistas (GILLMOR, 2004, p. 3-4). No Brasil, o primeiro periódico, o Correio Braziliense, escrito entre 1808 e 1822, era produzido por Hipólito da Costa e enviado trimestralmente de Londres para o Rio de Janeiro (MUNARO, 2009, p. 15). O Jornal Pessoal, de autoria do jornalista Lucio Flavio Pinto, é um exemplar desta modalidade individual de jornalismo no Brasil que circulou desde 1987, com sua edição quinzenal impressa e, mais recentemente, digital1 (JORNAL PESSOAL, on-line). Assim, o jornalismo pessoal não é uma invenção atual, nem uma consequência da tecnologia da internet. Na história desta prática, são muitos os relatos autorais distintos daqueles vinculados a uma corporação e elaborados sob as normas técnicas e deontológicas, conforme definidas no jornalismo estadunidense do século XIX, conhecido como penny press.

Com a internet, diferentes caminhos são traçados para a produção individual de conteúdo e para o jornalismo, e geram novas interações entre estas duas produções simbólicas. Os relatos individuais no ambiente virtual revelam algumas características destas produções independentes que marcaram diversos momentos da história do jornalismo e também dos relatos produzidos no seio de uma organização jornalística. Como observado, historicamente, os relatos pessoais estão também vinculados à própria constituição da instituição jornalística e se confundem em muitos momentos com os relatos produzidos por organizações. Com a internet, esta relação assume novas dimensões. As redes, essas entidades múltiplas e mistas que podem ser descritas como um conjunto de nós interligados (PARROCHIA, 1993, p. 5), facilitam a descentralização e conexão de formas antes apenas imaginadas, constituindo a base do que vem a ser conhecido como sociedade em rede

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(CASTELLS, 2004, p. 15), e colaborando para a diversificação da produção jornalística.

As mudanças da sociedade conectada afetam os pressupostos teóricos, técnicos e éticos da prática jornalística (DEUZE; BRUNS; NEUBERGER, 2007, GUNTER, 2003, BRUNS, 2005, GILLMOR, 2004, HALL, 2001, MACHADO, 2003, 2006, MACHADO; PALACIOS, 1996, 2003, CHRISTOFOLETTI; LAUX, 2006, ADGHIRNI, 2004, RIBAS, 2004; SCHWINGEL, 2002; MOHERDAUI, 2005, MIELNICZUK, 2003, BARBOSA, 2007). A sociedade em rede faz emergir novos questionamentos sobre normas deontológicas e financiamento do jornalismo, novas formas de circulação da informação, sobre a relação dos jornalistas com as fontes, sobre o papel destas como co-participantes do processo de produção de notícias e as mudanças que o profissional jornalista precisa passar para adaptar-se às novas exigências técnicas e de mercado.

Quando o jornalista não é mais o único intermediário da informação, torna-se necessário refletir sobre sua função social, assim como sobre o conhecimento produzido pela prática jornalística, seja por que esse conhecimento segue sendo essencial para a organização de sociedades complexas (MACHADO, 2003), seja por que um novo tipo de conhecimento parece emergir (FONTCUBERTA; BORRAT, 2006, LEVY; COSTA, 1997). O público começa a exercer uma função ativa no campo das decisões produzindo informação e ampliando a credibilidade da informação produzida pelos meios (ZAGO, 2011 CHRISTOFOLETTI; LAUX, 2007), e mesmo o conceito de verdade da informação recebe novas nuances – no ciberespaço, a verdade deriva de uma criação coletiva, como resultado da disseminação de um maior número de visões (FRIEND; SINGER, 2007, p. 121). A necessidade de repensar a prática do jornalismo é provocada, ainda, pela urgência econômica da indústria jornalística para sobreviver em um contexto, onde tanto os anunciantes como os leitores migram para a internet (DOCTOR, 2010; DEUZE; BRUNS; NEUBERGER, 2007) e pelo questionamento sobre como jornalismo, tanto em setores industriais já estabelecidos como naqueles emergentes, pode ajudar o público a lidar com o caos virtual (HALL, 2001).

Do outro lado do circuito de comunicação, ou não mais tão do outro lado assim, pessoas de distintas profissões, regiões geográficas, etnias e classes sociais tomam às mãos o teclado e se lançam em uma produção de informação tão diversificada que parece não caber em um só conceito: jornalismo participativo, jornalismo pro-am, jornalismo, jornalismo conectado, p2p journalism, jornalismo de publicações

abertas, ciber-informações nativas, entre outros ainda a serem criados. A possibilidade de tornar cada indivíduo-internauta um produtor de informação é considerada por alguns autores (GUNTER, 2003, GILLMOR, 2004, BRUNS, 2005, BOWMAN; WILLIS, 2003, CHRISTOFOLLETTI; LAUX, 2007) como a principal mudança trazida pela revolução da internet na produção e padrões de consumo de mídia: “O principal aspecto da mudança é maior interatividade entre emissores e receptores de mensagens e a redefinição dos consumidores de mídia como remetentes bem como receptores2” (GUNTER, 2003, p. 7, tradução da autora).

Mesmo diante dos impedimentos econômicos para acessar computadores, 34,3% da população mundial tem acesso a computadores com internet (INTERNET WORLD STATS, on-line). Em um mundo com seis bilhões de pessoas, um bilhão tem conta na rede social Facebook, ainda que essa percentagem não esteja distribuída igualmente pelo globo: a Ásia, a Europa e os Estados Unidos respondem conjuntamente por 77,7% do uso da internet no mundo atualmente (INTERNET WORLD STATS, on-line). Países com dificuldades em questões básicas como comida, saúde, educação e direitos humanos continuam em mais esse “fator” de desenvolvimento desfavorecidos: a África responde apenas por 7% do acesso global à internet e a América Latina a 10,4%. Mas isso não impede que desde comunidades urbanas desfavorecidas (RAMALHO, 2007) a povos indígenas e diversas etnias (PEREIRA, 2007, NUNES JUNIOR, 2009, MORALES, 2008, PINTO, 2009, SILVA; CAVALCANTE, 2009, WILSON;STUART, 2008) incorporem a internet em suas vidas, criando contas de e-mail, redes sociais e tornando-se autores de textos, vídeos e fotos para cibermeios individuais, comunitários e institucionais.

Neste contexto, destacam-se dois esforços de pesquisa para analisar estes fenômenos. Primeiro, a tarefa complexa de traçar os limites para separar e compreender as diversas informações difundidas na internet. Segundo, entender quais as consequências culturais da expansão da internet em diferentes povos e culturas. Naquela primeira direção, Palacios apresenta algumas questões provenientes da produção da informação no novo suporte: “Qual é a sua eficácia? Sua credibilidade? Trata-se, efetivamente, de ‘jornalismo’? [...] É possível prescindir de um editor nesse tipo de produção de informação?”

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Original em inglês: “The key aspect of change is increased interactivity between the senders and receivers of messages and the redefinition of media consumers as senders as well as receivers”.

(PALACIOS, 2003, p. 26). Com esta cautela de não ceder ao empenho, um tanto apressado, de professar o fim de uma técnica e uma deontologia traçadas no decorrer de séculos e o surgimento de uma forma de comunicação genuinamente inovadora, convém recordar o percurso de outras “extensões dos sentidos” que remodelaram as dimensões da comunicação humana. Além disso, do ponto de vista metodológico, comparar com os mesmos critérios produções derivadas de diferentes práticas produtivas e com objetivos distintos dificilmente resultaria em uma análise proveitosa. À pesquisa condiz analisar como elas se relacionam em uma esfera pública comum: como seus modelos de produção de informação dialogam e quais as interferências que podem exercer entre si, sobre seus autores e sobre o público quando convivem em uma mesma sociedade.

No segundo esforço, ao ter-se que escolher sob qual parâmetro metodológico será analisado o encontro entre duas culturas distintas, cuidados semelhantes são necessários para se distinguir as fronteiras e regiões de contato. Dois reconhecimentos podem ajudar nessa distinção. Primeiro, que este encontro não é algo novo. A extensão do ciberespaço nas sociedades atuais remete às mudanças das capacidades perceptivas dos indivíduos em uma sociedade, à perda de universos simbólicos e ao encontro de alternativas, assim como o fizeram a escrita, a eletricidade e outras tecnologias criadas pelo homem (MCLUHAN, 1969, p. 10, p. 34). Segundo, não é apenas através da incorporação de tecnologias de meios de comunicação que este encontro acontece. Ao contrário, a produção de ciber-informações nativas ocorre após séculos de trocas em tantas outras instâncias diferentes da cultura e vida social tais como espaços físicos, família, vestimentas, linguagem, expressões artísticas. Agora, quando os índios aderem ao universo simbólico deste novo espaço de comunicação, eles se inserem em mais uma dinâmica de relação com esta outra cultura, incorporando uma forma de lidar com a realidade derivada de séculos de revoluções tecnológicas da sociedade não-índia. Outro ponto importante a se observar é que, no âmbito da comunicação, mesmo sem assumir um papel ativo nas produções de informação ou incorporarem tecnologias de comunicação ao seu cotidiano, estes povos respondem pelas consequências das produções informativas exercidas por outros, quando seus direitos e condições de vida são decididos na esfera pública, a partir de debates, presentes nos jornais, entre instituições sociais como o governo, associações de apoio a causa indígena e associações de fazendeiros.

Nesta complexidade real que envolve instituições e atores sociais, os índios assumem os riscos e benefícios de utilizar a internet

para se comunicar com o mundo indígena e não-indígena. Estas novas interações carregam em si a herança de diversas interações das culturas indígenas e não indígenas em outros espaços simbólicos, e também de séculos de inserção de meios de comunicação em culturas previamente tribais e fechadas, recordando mais uma vez o teórico canadense. Assim, à pesquisa, convém compreender como se dão estes encontros, suas peculiaridades, consequências e potencialidades.

2. Definição de “ciber-informações nativas” e outros

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