3.5. Outros aspectos da colocação dos clíticos em Mayombe: mesóclise, grupos
3.5.3. Interpolação
A interpolação é a separação entre o pronome clítico e o verbo por um constituinte
sintáctico. Os clíticos são chamados verbais porque ocorrem normalmente adjacentes ao
verbo (ou seja, o verbo é o hospedeiro ao qual cliticizam). Todavia, existem casos em que
o marcador de negação frásica (não) pode interromper a ligação entre um clítico pré-
verbal e o verbo. A interpolação de certos constituintes entre o clítico e o verbo, no PE,
só é possível quando o clítico precede o verbo; de contrário, existe sempre adjacência.
Uma das nossas surpresas ao analisar o corpus foi ver uma grande presença deste
fenómeno em Mayombe. Na verdade, esta situação da interpolação tem um âmbito muito
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restrito no PE contemporâneo, apesar de ser muito comum no português antigo e de o PE
dialectal permitir ainda a interpolação não só do operador de negação predicativa, mas
também de pronomes e advérbios de natureza dêitica (Magro 2007). No nosso corpus
aparece apenas a interpolação com o operador de negação predicativa, não, com 17
ocorrências em Mayombe contra 6 em A Sul. O Sombreiro. De novo, Mayombe mostra-
se mais conservador do que A Sul. O Sombreiro, embora neste caso de forma menos
marcada do que noutros aspectos que comentámos ao longo deste capítulo.
34. a. Segredo doloroso, de que o Comissário se não apercebia, de que o Chefe de Operações
se não interessava. (Mayombe, 6)
b. Criança ainda, queria ser branco, para que os brancos me não chamassem negro.
(Mayombe, 8)
c. Começou a falar, a dizer que tu e eu estávamos enganados com ele, que se não deixaria abater. (i) (Mayombe,124)
d. Homem, queria ser negro, para que os negros me não odiassem. (Mayombe, 8) e. Por isso gosto das grandes cidades ou então da mata, onde se não é anónimo, antes
pelo contrário, é-se singular, mas em que realmente uma pessoa sente ser uma personalidade singular (Mayombe, 78)
f. Como vês, há erros que se não corrigem. (Mayombe, 96)
g. O vigário passa a vida em concílios pouco apostólicos com o ouvidor André Velho e agora também com um bacharel recém-chegado, de nome Manuel Nogueira, o qual ainda se não apresentou a mim, o que não é normal e me cheirou logo a esturro. (A
Sul. O Sombreiro, 106)
h. Quando se não apunhalavam pelas costas. (A Sul. O Sombreiro, 159)
i. Se encontravam alguma matebeira, já se não andava nesse dia. Cortavam-na, tiravam a seiva e esperavam até fermentar numa cabaça andando sempre na cabeça de um deles. (A Sul. O Sombreiro, 186)
j. Porque Cerveira não acreditava na outra possibilidade, a de ele efetivamente se não meter nas conspirações, ou por lealdade ou covardia. (A Sul. O Sombreiro, 236)
Mais uma vez é claro o alinhamento de Mayombe com o PE. Isto levanta a ideia de que
Pepetela escreve Mayombe ainda sob a influência da sua carreira estudantil, que ainda se
realiza sob o domínio português. É evidente a preocupação de cumprir a norma, ao passo
que em A Sul. O Sombreiro, está patente a ideia de comunicar de uma forma mais natural,
de acordo com a realidade angolana, portanto sem obediência estrita à norma literária
herdada do PE.
Em suma, quanto à direcção da clitização Mayombe apresenta característica
convergentes com o PE. Cumpre com a próclise obrigatória, excepto num caso, e cumpre
com a ênclise obrigatória. E ainda mantém algumas formas de posicionamento do clítico,
como a mesóclise, que evoca o português erudito ou académico. Ao passo que o A Sul. O
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Sombreiro, apesar de manter a próclise obrigatória nos mesmos contextos que o PE,
manifesta claro afastamento à norma quanto à ênclise obrigatória, indicando assim a
próclise como direcção de mudança no PA, mesmo que ainda não conheça estabilidade.
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IV CAPÍTULO
A colocação dos pronomes clíticos no português angolano escrito (literário) no
século XXI
Depois desta análise de duas obras do mesmo autor, mas distantes uma da outra no
tempo e no contexto, passamos agora, neste capítulo, para um estudo mais concentrado
no PA escrito entre os autores do séc. XXI, ou pelo menos da transição. Nele, faremos
uma análise detalhada dos dados de que dispomos (o corpus da presente tese, consultável
nos seus anexos), comparando os diferentes textos entre si e também com a globalidade
dos dados quantitativos de Gerards (2018). Não usaremos o mesmo modelo de tabelas de
Gerards, em função do esquema concebido na constituição do corpus, o que exigiria a
sua restruturação. Usá-lo-emos para analisar a direcção da clitização, tal como fizemos
no capítulo anterior, adaptando os modelos de gráficos de Gerards (2018). Teremos, por
outro lado, como referência o artigo de Martins (2013: 2231-2302) sobre a Posição dos
Pronomes Pessoais Clíticos, publicado em Raposo et alii (Gramática do Português), pela
Fundação Calouste Gulbenkian. Também poderá ser interessante compararmos os
resultados de Gerards (2018) com os textos particulares, nomeadamente aqueles que se
revelam mais inovadores (i.e. mais fortemente marcados por traços do português
angolano).
Toda a abordagem, sobre colocação dos pronomes clíticos, será suportada pelos
exemplos extraídos do corpus, constituído por cinco obras de escritores angolanos (A Sul.
O Sombreiro de Pepetela; Os da Minha Rua e Os Transparentes de Ondjaki; A Última
Ouvinte de Patissa). Sempre que forem apresentados exemplos exteriores ao corpus, a
fonte será indicada no local.
Apresento de seguida a estrutura do capítulo, indicando assim o esquema que
orientará a análise e discussão de dados.
4.1. Direcção de Cliticização (dados globais)
4.2. Próclise no PE, no PB e no PA
4.2.1. Próclise em frases finitas negativas
4.2.2. Próclise (ou, marginalmente, Ênclise) em frases finitas afirmativas, com
proclisadores (quantificadores, advérbios, sintagmas qu-)
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