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3. CAPÍTULO II

3.8. Interpretação do Sistema Punitivo da Administração Pública

Intimamente ligado ao argumento desenvolvido acima, a punição dos diferentes órgãos integrantes da Administração Pública não pode ser contraditória, devendo ser vista e interpretada de maneira uniforme. Dessa forma, a extinção da ação punitiva como benefício da celebração do acordo de leniência deve abranger toda a Administração Pública, não podendo outro órgão declarar a inidoneidade da empresa leniente, por exemplo, em caso de cartéis em licitações, visto que criaria uma desarmonia nas normas punitivas da Administração Pública e também geraria uma insegurança e ausência de credibilidade em relação aos seus programas e suas diretrizes.

Inclusive, diminuiria os benefícios da celebração do citado acordo, visto que, a existência da possibilidade de outros órgãos da Administração aplicarem essa sanção (declaração de inidoneidade) reduzem os incentivos para a celebração do mesmo, inclusive pelo fato de importar em confissão61. Logo, em caso de cartel em licitação, não seria tão atrativa a possibilidade de celebração do acordo de leniência com o CADE, tendo em vista que a empresa poderia ser declarada inidônea por outro órgão da Administração Pública, sendo, portanto, proibida de licitar ou contratar com a Administração.

E essa visão se torna mais forte e relevante, na medida em que é constatada a existência de previsão na própria Lei do CADE, no sentido de que os órgãos de defesa da concorrência podem impor às empresas participantes do cartel “a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos”62

61Art. 86 da Lei 12.529: “O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: IV - a empresa confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.”

. Portanto, o CADE tem

62 Art. 38 da Lei 12.529: “Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou

competência e pode declarar a “inidoneidade” das empresas cartelizadoras, ressaltando-se que a penalidade do órgão de defesa da concorrência pode ser mais gravosa, tendo em vista que há a proibição de contratar com a Administração Pública por no mínimo 5 (cinco) anos, e não no mínimo de 2 (anos) anos como estabelece a Lei 8.666.

3.8.1 Incidência da Teoria das Autolimitações Administrativas e do dever de coerência da Administração Pública

Para complementar e corroborar o exposto no tópico anterior sobre a interpretação do sistema punitivo da Administração Pública, pode-se trazer à lume outra teoria estudada pelo Procurador Alexandre Santos de Aragão, qual seja, aquela desenvolvida em seu artigo intitulado “Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre Órgãos Administrativos” que analisa, exatamente, as situações em que mais de um órgão da Administração possui competência sobre atos e condutas do particular, dando a possibilidade de emergirem entendimentos potencialmente conflitantes63.

Segundo o renomado autor, a essas hipóteses em que mais de um ente da Administração Pública possua e deseje exercer a sua competência é aplicável a teoria das autolimitações administrativas. Essa teoria64 proíbe que a Administração Pública adote entendimentos contraditórios, conflitantes ou desconformes, e, portanto, ao exercer as suas funções, e por mais razão as funções sancionadoras que podem gerar restrições a direitos de terceiros, os órgãos não podem exercê-la arbitrária ou incoerentemente.

cumulativamente: II - a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos;”

63 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 1. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

64 Ressalte-se que para a aplicação da teoria em comento, Alexandre Santos de Aragão afirma que existem três requisitos de preenchimento obrigatório para a sua incidência, são eles: (i) identidade subjetiva; (ii) identidade objetiva; e (iii) contradição entre ato anterior e posterior .

Nesse sentido, a teoria das autolimitações administrativas visa assegurar “a razoabilidade, a coerência e a isonomia no tratamento conferido pela Administração Pública aos cidadãos, em uma expressão do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal substancial, que vedam as iniquidades estatais.”65 Em outras palavras, essa teoria objetiva garantir a confiança legítima, a segurança jurídica e a liberdade dos indivíduos.

Para tanto, os julgadores deverão se preocupar em manter coerência nas suas decisões, devendo investigar, pesquisar e estudar as decisões anteriormente proferidas por outros órgãos também competentes. Segundo Alexandre Santos de Aragão, essa postura de investigação e estudo representa um imperativo lógico, pois a disparidade corrói a confiabilidade do sistema, e principiológico, na medida em que a segurança jurídica não convive com a leviandade nas decisões.66

Em resumo, as decisões proferidas pela Administração Pública devem guardar um mínimo de coerência, não se admitindo, por isso, tratamento diferenciado para os mesmos fatos geradores, em respeito à boa-fé do cidadão. Maria Sylvia Di Pietro afirma que “a segurança jurídica tem muita relação com a idéia de respeito à boa-fé.” 67

Havendo a Administração atuado, diante de uma situação em determinado sentido, não lhe será lícito fazê-lo de outra forma, diante da mesma situação68

65 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 2. Disponível no link: . Portanto, in casu, o CADE, órgão integrante da Administração Pública, não pode declarar a imunidade no âmbito

http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

66 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 2. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

67 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2001, pág. 85.

68 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, maio/junho/julho, ano 2008, p. 3. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

administrativo da empresa leniente, ou seja, atuar em um determinado sentido, e outro órgão da mesma Administração Pública, em total desrespeito a essa decisão, aplicar sanções administrativas à leniente, em virtude do mesmo fato.

Isso, porque, a boa-fé do leniente em delatar a conduta infracional implica em um dever de coerência pela Administração Pública, que consiste na necessidade de observar nas decisões, o que os atos anteriores faziam prever. A adoção de duas posturas diametralmente opostas por órgãos membros da Administração Pública brasileira, certamente, gerará a quebra de confiança do agente que procurou o órgão concorrencial, preencheu todos os requisitos para ter direito aos benefícios da celebração do acordo, colaborou com as investigações, dentre outras medidas adotadas.

Mesmo que os órgãos prolatores das decisões conflitantes tenham competências distintas, sendo precisamente o mesmo fato que gerou o desencadeamento do poder sancionatório de tais órgãos, “o dever de lealdade da Administração Pública exige que, ainda que cada centro de governo tenha seus próprios e legítimos interesses, nenhum deles, como parte integrante do conjunto, pode se sentir alheio à realização das funções dos outros. (...) Trata-se de um autêntico dever jurídico, inerente à própria existência do sistema, sem o qual não é possível seu funcionamento harmônico.” 69

Confira-se decisão do Tribunal Supremo de 7 de julho de 195270 que nesse sentido também declarou:

‘a Administração, ainda que dividida em diferentes ramos ou Ministérios, é sempre una e não pode voltar atrás em seus próprios atos nem desconhecer direitos que ela mesma havia reconhecido.”

Ante o exposto, pode-se afirmar que a teoria das autolimitações administrativas foi criada com o objetivo de controlar a atuação dos diferentes órgãos membros da Administração

69 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 6, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

70 Decisão retirada do artigo Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Pública, pois o exercício de suas competências não pode ser contraditório. Caso seja verificada a incompatibilidade de decisões sobre a mesma base fática, pois prolatadas em sentidos opostos, será necessária a revogação da decisão posterior que não observou a postura tomada anteriormente por outro órgão administrativo.

O Tribunal Constitucional Espanhol já se manifestou no sentido de que “a coordenação persegue a integração da diversidade das partes ou subsistemas no conjunto do sistema, evitando contradições e reduzindo disfunções que, se existentes, respectivamente impediriam ou dificultariam a realidade do sistema. Confira-se:

“A coordenação é uma atividade jurídica que se desenvolve para harmonizar, em função de fins comuns, o comportamento de determinados sujeitos autônomos, que ao mesmo tempo têm assegurada a sua autonomia.” (A. Mazella. II parlamento, 1992, p. 344)”

O cerne desse princípio espanhol da coordenação administrativa é, basicamente, a soma das principais ideias da teoria dos ordenamentos setoriais combinada com a teoria das autolimitações administrativas. Segundo Alexandre Santos de Aragão, “esse princípio impõe que a Administração Pública, ao apreciar a existência ou inexistência de fatos relevantes para o exercício de suas diversas competências setoriais, não emita juízos contraditórios, sob pena de comprometimento da própria realidade do seu sistema.”71

Por essa teoria, embora seja reconhecida a autonomia dos órgãos e as múltiplas competências administrativas setoriais divididas, inafastável fica a obrigação de coerência dos atos/decisões, em respeito à boa-fé dos administrados.

Tanto é verdade que a admissão de um fato como já decidido por uma esfera de atuação do Estado compromete a competência própria do outro ente, que o Poder Judiciário tem decidido que não pode validamente processar uma ação penal proposta em razão de fato

71 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 6, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

que veio, posteriormente, a ter a sua existência negada na esfera administrativa72. Veja-se os seguintes acórdãos do STF e STJ, respectivamente:

EMENTA:HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL.

REPRESENTAÇÃO. DENÚNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. ARQUIVAMENTO. AÇÃO PENAL. FALTA

DE JUSTA CAUSA.

Denúncia por crime contra o Sistema Financeiro Nacional oferecida com base exclusiva na representação do BANCO CENTRAL.

Posterior decisão do BANCO determinando o arquivamento do processo administrativo, que motivou a representação.

A instituição bancária constatou que a dívida, caracterizadora do ilícito, foi objeto de repactuação nos autos de execução judicial . O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional referendou essa decisão.

O Ministério Público, antes do oferecimento da denúncia, deveria ter promovido a adequada investigação criminal.

Precisava, no mínimo, apurar a existência do nexo causal e do elemento subjetivo do tipo.

E não basear-se apenas na representação do BANCO CENTRAL. Com a decisão do BANCO, ocorreu a falta de justa causa para prosseguir com a ação penal, por evidente atipicidade do fato.

Não é, portanto, a independência das instâncias administrativa e penal que está em questão. Habeas Corpus deferido.”73

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. GESTÃO DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA SEM A DEVIDA AUTORIZAÇÃO LEGAL. GESTÃO FRAUDULENTA. ATIPICIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.

1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa, medida de exceção que é, somente cabe quando a atipicidade e a inexistência dos indícios de autoria se mostram na luz da evidência, primus ictus oculi. 2. Em resultando manifesta a atipicidade da conduta atribuída ao agente, como nas hipóteses em que, descomprometido com o auferimento de lucro, quanto mais ilícito, tomou medidas urgentes e necessárias ao bom funcionamento do órgão que geria, o trancamento da ação penal é medida que se impõe.

3. Carece de justa causa a ação penal fundada em representação de Autarquia Federal, quando ela própria vem a considerar como lícita a conduta do agente (Precedente do STF). 4. Recurso provido.”74

72 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 12, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 81.324/SP, Relator Min. Nelson Jobim, Publicada decisão em 23.08.2002.

74 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 12.192/RJ, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, Acórdão publicado em 10.03.2003.

Conforme preceitua Alexandre Santos de Aragão, “se até mesmo nas relações travadas entre Poder Judiciário e Poder Executivo, que são independentes entre si, o primeiro não entra em contradição lógica com as decisões do segundo, por maior razão ainda devem os órgãos da Administração Pública decidirem no mesmo sentido.”75

Conclui-se, que os órgãos integrantes da Administração Pública devem privilegiar a harmonia e a coesão em suas decisões, ao passo que conferem eficácia aos princípios que norteiam a atividade sancionadora administrativa.

3.8.2. Princípio da Proibição de Comportamento Contraditório no âmbito da Administração Pública

Em estrita correlação a teoria das autolimitações administrativas, há o princípio que veda o comportamento contraditório, com o objetivo de tutelar a confiança. Portanto, o princípio da proibição do venire contra factum proprium foi criado para impedir que comportamentos incoerentes e conflitantes firam a legítima expectativa de outrem, pois a ninguém é dado o direito de contrariar os próprios atos, quebrando a confiança de terceiros. Confira-se trecho do renomado doutrinador Pontes de Miranda76 nesse sentido:

“(...) a ninguém é lícito venire contra factum proprium, isto é, exercer direito, pretensão ou ação, ou exceção, em contradição com o que foi a sua atitude anterior, interpretada objetivamente, de acordo com a lei.”

Por meio desse princípio, que é corolário do conceito de boa-fé objetiva, procura-se estabelecer um standard de conduta leal e confiável, de modo a impedir que a contradição dos atos viole expectativas despertadas em outrem. Confira-se:

75 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das Autolimitações Administrativas: Atos Próprios, Confiança

Legítima e Contradição entre órgãos administrativas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo

Econômico – REDAE, n. 14, ano 2008, p. 12, maio/junho/julho,. Disponível no link: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-14-MAIO-2008-ALEXANDRE%20ARAGAO.pdf. Acesso em 12 de novembro de 2013.

“A proibição de comportamento contraditório não tem por fim a manutenção da coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida em que a incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas despertadas em outrem e assim causar- lhes prejuízos.” 77

Inclusive é assente na jurisprudência e na doutrina a aplicabilidade do princípio da proibição do comportamento contraditório à Administração Pública com o objetivo de garantir a confiança nas relações jurídico-administrativas. Portanto, a jurisprudência pátria tem admitido o princípio do nemo potest venire contra factum proprium sobre relações que envolvem a Administração Pública. Confira-se:

“Não obstante, mesmo aqueles que restringem a aplicabilidade da boa-fé objetiva às relações privadas, devem admitir a incidência do princípio de proibição do comportamento contraditório em relações de direito público. O Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma

oportunidade, já fez incidir o nemo potest venire contra factum

proprium sobre relações entre particulares e a Administração

Pública.

Na maior parte desses casos, invocou a boa-fé objetiva, chegando a declarar expressamente sua aplicabilidade às relações de direito público.”78

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. CURSO DE FORMAÇÃO. MATRÍCULA POR FORÇA DE LIMINAR. MÉRITO JULGADO IMPROCEDENTE. MANUTENÇÃO NA ACADEMIA, INGRESSO E PROMOÇÃO NA CARREIRA POR ATOS DA ADMINISTRAÇÃO POSTERIORES À CASSAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL. TRANSCURSO DE MAIS DE CINCO ANOS.

ANULAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA E BOA-FÉ OBJETIVA VULNERADOS. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CONSTATAÇÃO DE QUE O CANDIDATO PREENCHIA O REQUISITO CUJA SUPOSTA AUSÊNCIA IMPEDIRA SUA ADMISSÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. ATENDIMENTO AOS PRESSUPOSTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PARA INGRESSO E EXERCÍCIO DO CARGO DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR.

77 SHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire

contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 96

78 SHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire

1. Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem

como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra

factum proprium), impedem que a Administração, após praticar

atos em determinado sentido, que criaram uma aparência de estabilidade das relações jurídicas, venha adotar atos na direção contrária, com a vulneração de direito que, em razão da anterior conduta administrativa e do longo período de tempo transcorrido, já se acreditava incorporado ao patrimônio dos administrados.

2. À luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verifica-se que o Recorrente, em sentido material, preenchia os requisitos editalícios para admissão no Curso de Formação, inclusive aquele cuja ausência formal constituíra obstáculo inicial à sua matrícula e que ensejou o ajuizamento da ação judicial em cujo bojo obteve a liminar. (...)”79

“Tributário. Imposto de renda. Documentação fiscal. Parcialmente destruída. Enchente. Arbitramento.

1. As decisões administrativas devem guardam um mínimo de coerência, não se admitindo, por isso, tratamento diferenciado para hipóteses rigorosamente idênticas.

(...)

2. Incidência da Súmula 76, do TRF.

3. Apelação parcialmente provida para reduzir o percentual da verba de patrocínio.

4. Remessa improvida.”80

Aliás, foi o que ocorreu no julgamento do REsp 141.879/SP. O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o recurso, ressaltou o caráter contraditório dos atos praticados pelo Município de Limeira, e com base na boa fé objetiva e na tutela de confiança, negou provimento ao pedido, proibindo o comportamento incoerente. In verbis:

“Loteamento. Município. Pretensão de anulação do contrato. boa-fé. Atos próprios.

- Tendo o Município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo. Art. 40 da lei 6.766/79. - A teoria dos atos próprios impede que a Administração Pública

retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento.