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2.3 CICLO DO CAPITAL NA ECONOMIA BRASILEIRA E DOMINAÇÃO DO SETOR IIB

2.3.2 A interpretação de Marini

A escolha de construir a industrialização brasileira em torno do setor automobilístico encaixa- se no padrão apresentado pelos países latino-americanos mais industrializados, de crescimento desproporcional da produção de bens de consumo duráveis de acesso restrito às camadas mais abastadas da população. Tal fenômeno foi teorizado por Marini (1979b) a partir dos esquemas de reprodução do livro II d'O capital, de Marx. Para isso, ele precisou tomá-los em seu contexto teórico, para escapar da armadilha de ignorar as restrições que Marx inseriu esses modelos e tomá-los como representação da realidade tal como foram elaborados.

Como aponta Rosdolsky (2001), o problema inicial que Marx queria explorar com os esquemas era quais as condições necessárias para que o capitalismo compatibilize a contradição entre valor de uso e valor da maneira necessária para prosseguir a acumulação de capital. Neste sentido, importa verificar as condições de proporção intersetoriais necessárias para que a acumulação se reproduza ao longo do tempo, explorando as maneiras pelas quais são geradas as demandas intersetoriais a partir da distribuição do valor gerado entre os setores de bens de capital (I), de bens de consumo necessário (IIa) e bens de consumo de luxo (IIb). Para resolver o problema teórico que se propôs, Marx fez uma série de pressupostos que restringiam as variáveis utilizadas àquelas destinadas à definição das produções intersetoriais e da demanda que elas induziam, sem considerar as questões da realização do capital (possibilidade de crises de superprodução), do comércio exterior (possibilidade de especialização em valores de uso restritos) e da produtividade do trabalho (possibilidade de mudanças na taxa de acumulação) (ROSDOLSKY, 2001).

Fica claro que os esquemas são um corpo teórico que se posiciona em um nível de abstração específico, não se prestando à extração de conclusões sobre formações sociais concretas. Para isso, são necessárias mais mediações. Como destaca Lenin:

La cuestión de la realización es un problema abstracto, vinculado con la teoría del capitalismo en general. Que tomemos un solo país o el mundo entero, las leyes fundamentales de la realización descubiertas por Marx son siempre las mismas. El problema del comercio exterior o del mercado exterior es un problema histórico, un problema de las condiciones concretas del desarrollo del capitalismo en tal o cual país, en tal o cual época. [...] De esta teoría [de la realización] se deduce que, aun cuando la reproducción y la circulación del conjunto del capital fuesen uniformes y proporcionales, no podrá evitarse la contradicción entre el aumento de la producción y los límites restringidos del consumo. Además, el proceso de realización no se

desenvuelve en la realidad según la proporción idealmente uniforme, sino sólo a través de dificultades, de "fluctuaciones", de "crisis", etcétera (LENIN, 1974, p. 234,

apud MARINI, 1979b, p. 25).

Marini (1979b) coloca que as mediações que se devem inserir nos esquemas são justamente a quebra dos pressupostos sobre os quais Marx os construiu, pois não se trata mais de inferir as condições para que estabeleça-se uma proporcionalidade entre os setores, mas de ver a forma em que se dá essa reprodução em uma situação histórica concreta, em que agem as dificuldades de ajustamento devido à anarquia de mercado, as flutuações das proporções seguindo a dinâmica da produtividade entre setores e crises devido a insuficiência de demanda. É na transformação das capacidades produtivas do trabalho que Marini põe ênfase, ao notar que ela têm centralidade na construção teórica de Marx, determinando a concentração e centralização de capital, a lei geral da acumulação capitalista e a lei tendencial de queda da taxa de lucro.

Os aumentos na produtividade do trabalho podem acontecer tanto no âmbito de um capital individual como no de um setor inteiro. Quando acontece em um capital individual, ele se traduz em mais-valia extraordinária e, consequentemente, numa mudança da relação de distribuição do valor produzido entre salário e lucro. Quando a produtividade é disseminada para um setor como um todo, a mais-valia extraordinária some e estabelece-se uma produção de maior quantidade de mercadorias com o mesmo valor (MARINI, 1979b).

Em todos os casos, a apropriação efetiva de uma quantidade maior de mais-valia, a partir de um avanço nas forças produtivas do trabalho, depende da realização da venda da maior quantidade de valores de uso produzidos, ou seja, da demanda. Em um primeiro nível, a determinação da demanda da economia se dá através da divisão básica do excedente entre salários e lucros, em um segundo nível, da divisão da mais-valia entre os setores e da proporção desta que é destinada ao consumo individual dos capitalistas ou à acumulação. A partir disso, Marini distingue três casos dinâmicos: quando o aumento da produtividade acontece no setor I, no setor IIa e no IIb. No primeiro caso, considera-se que caso o aumento da massa de valores de uso produzidos seja chancelada por uma demanda correspondente, aumenta a massa de valor apropriada por I, gerando lucros extraordinários frente aos outros setores. A compra de bens de capital implica então em um aumento na capacidade produtiva do setor II. Para que a maior massa de mercadorias produzida nessas condições seja realizada,

é necessária a elevação da demanda de bens de consumo, caso contrário ocorreria redução da demanda pelos bens de I (levando à redução de seu valor) ou os capitais de II migrariam para I, fazendo diminuir a taxa de lucros do setor. Em ambas as hipóteses, a taxa de lucro entre os setores seria nivelada pelo movimento de capitais. Posto que os aumentos de produtividade não produzem aumentos significativos na quantidade de força de trabalho utilizada (podendo gerar diminuições), a única fonte adicional de demanda por bens de consumo seria o acréscimo na mais-valia não acumulada pelos capitalistas de I, chancelando o aumento na produção de setor IIb e dos capitais de I que produzem para ele, o que determinaria que os lucros extraordinários gerados pelo aumento da produtividade seriam apropriados por esses dois ramos até que os mecanismos de nivelação da taxa de lucro atuem para eliminá-los (MARINI, 1979b).

No caso de aumento da mais-valia extraordinária em IIa, a venda da maior massa de valores de uso produzidos dependerá da queda do valor individual de cada mercadoria, pois há uma redução relativa da participação da força de trabalho nesse setor, decorrente do aumento de produtividade, diminuindo sua demanda. A queda no valor individual das mercadorias de IIa levará a um aumento na mais-valia relativa em toda a economia. Assim, o setor IIa como um todo não é capaz de reter lucros extraordinários de maneira duradoura.

Já o setor IIb pode realizar a quantidade aumentada de valores de uso pelo mesmo valor individual de antes de um aumento de produtividade, pois apenas o fato de que a parte do produto relativa à mais-valia aumenta em relação à quantidade de trabalho utilizada imediatamente gera uma nova demanda por parte dos capitalistas do setor. O único fator que pode limitar a apropriação da mais-valia extraordinária como lucros extraordinários para esse setor é a mobilidade de capitais entre setores, que pode levar à elevação da produção e limitação da quantidade de mais-valor apropriado por cada capital individual. Assim, a especificidade do setor IIb é poder reter os preços acima dos valores ao longo do tempo, não transbordando os efeitos dos aumentos de produtividade obtidos.

Conviene tener presente que, al transferir a los precios en menor medida que I y IIa los aumentos de productividad, el subsector IIb establece con los demás una relación que implica una transferencia intersectorial de plusvalía, vía precios, que va más allá de la que correspondería estrictamente a los mecanismos de nivelación de la cuota de ganancia y que más bien los violan; en otros términos, se configura una situación similar a la que alude la noción de intercambio desigual en la economía internacional (MARINI, 1979b, p. 38-39).

A partir desta análise, Marini chega à conclusão de que a desproporcionalidade setorial, com inchaço relativo do setor IIb em relação aos outros setores, é justificada por esse mecanismo de manutenção sustentada de lucros extraordinários no seu interior. Tal fenômeno ocorre tanto nas economias periféricas como nas centrais, mas nas primeiras ele é exacerbado pela possibilidade de extrair lucros extraordinários mesmo sem elevar a produtividade do trabalho, bastando para isso elevar a intensidade do trabalho sem que se elevem os salários na mesma medida, ou seja, através da superexploração. Sob as relações de produção características do capitalismo dependente, há maiores possibilidades de crescimento da mais-valia em relação aos salários. Decorre disso também a maior ligação do setor I ao IIb no continente.

Postas as coisas nesses termos, a determinação da dinâmica do sistema estaria dada na forma como é produzida a mais-valia, não no comportamento da demanda efetiva, tal como formulado por Tavares. A forma como ocorrerá a circulação de uma maior massa de valores de uso depende da repartição, pelos distintos departamentos, da massa de valor produzida em tal período, assim como a apropriação de lucros extraordinários. A consequência da dinâmica intersetorial na circulação latino-americana é um rasgo gritante entre a esfera alta e a baixa de consumo, posto que a superexploração impede que os produtos de luxo deixem de sê-lo em tempo razoável.

La producción de sobreganancias en el sector III, ante un sector II que no ofrece estímulo significativo al aumento de productividad, y las diferencias de composición orgánica que median entre ellos, acentúan el drenaje de plusvalía hacia aquél y sesgan toda la estructura productiva, traduciéndose, en el plano de la circulación, en la diferenciación creciente entre su esfera alta y su esfera baja, es decir, la que corresponde al consumo de la plusvalía y la que corresponde al consumo de los salarios. Una vez más, se expresa como un problema de realización lo que sólo se entiende a la luz de los mecanismos de la producción (MARINI, 1979b, p. 46).

Marini critica Tavares por colocar o aumento dos lucros como advindo da desvalorização do capital constante, conseguida como efeito da produtividade do próprio capital constante. Ela perde de vista que a maior produtividade é do trabalho e sua desvalorização leva à desvalorização da força de trabalho, levando ao aumento da contradição fundamental do capitalismo e, especificamente, do capitalismo dependente. Por isso, a autora pode focar nos problemas da realização da maior quantidade de mercadorias produzidas, que deveriam ser equacionados pela intervenção estatal.

Sin embargo, esa utilización, por parte de los autores que aquí analizamos, al privilegiar el objeto específico de los esquemas: las relaciones intersectoriales y, con ello, la circulación de la masa de valores de uso y de valor producida, conduce al equívoco de poner la circulación por sobre la acumulación y reproducción del

capital mismo. (...) esa visión se deriva de su tesis respecto a la expansión de las ganancias sobre la base de la reducción general de costos, desvinculada de la producción de plusvalía, y compatible con la elevación de los salarios más allá de todo límite que pudiera imponer el valor de la fuerza de trabajo en su comercialización(MARINI, 1979b, p. 55).

A crítica de Marini ainda vai no sentido de mostrar o desacerto da decisão de Tavares de colocar pouca ênfase nas relações entre o Brasil e a economia mundial. Através da análise do ciclo do capital na economia dependente, Marini busca justamente mostrar a influência do mercado mundial em economias como a brasileira.