• Nenhum resultado encontrado

4.2 Propriedades estruturais das fases lamelares obtidas pela associação dos surfactantes DDAB e DODAB em solução

4.4. Interpretação dos resultados obtidos

Durante a formação das fases lamelares, mudanças estruturais podem ocorrer nas bicamadas, de modo que as moléculas de surfactante, eventualmente, se reorganizam para formar agregados com propriedades estruturais peculiares56- 57. Fases interdigitadas são uma das mudanças que podem ocorrer devido a essa

reorganização molecular56-62. Quando a interdigitação ocorre, as cadeias

carbônicas das moléculas anfifílicas que compõem uma monocamada se condensam entre as cadeias carbônicas das moléculas que formam a camada adjacente e a estrutura resultante é caracterizada por apresentar uma pequena espessura das bicamadas, se comparada ao comprimento das moléculas de surfactante58-59.

A interdigitação em bicamadas já foi descrita na literatura para lipídeos assimétricos (com tamanhos de caudas carbônicas diferentes)63, com cabeças

polares que ocupam grande área superficial58, sob modificações de pressão64 ou na

presença de álcoois de cadeia curta (como o etanol)62. O fenômeno também foi

descrito na literatura, em poucos trabalhos, para os brometos de dialquildimetilamônio29,30,65, sem, contudo, investigações mais aprofundadas sobre

as causas da interdigitação das caudas carbônicas dos surfactantes.

Trabalhos realizados por diferentes grupos de pesquisa mostraram uma relação entre densidade de carga superficial e espessura de bicamadas formadas por fosfolipídios e surfactantes56-62. Para os brometos de dialquildimetilamônio,

Dubois e Zemb14 relatam bicamadas de DDAB com densidade de carga superficial

(σ) igual a 0,08 C.m-2, enquanto que Ricoul e colaboradores66 descrevem

membranas formadas por DHDB com σ = 0,11 C.m-2. Para o DODAB, a literatura67

indica σ = 0,13 C.m-2.

Com base nesses dados que indicam que as bicamadas formadas pelo DODAB são mais carregadas, chegou-se numa hipótese para explicar a diferença na espessura das bicamadas formadas pela associação dos surfactantes DDAB e DODAB em solução aquosa. Como os contatos próximos entre os grupos polares das moléculas de surfactante nas bicamadas são não-favoráveis (devido às forças

46

de repulsão eletrostática entre as cabeças carregadas positivamente), as moléculas de surfactante tendem a se interdigitar, condensando sua parte apolar e criando espaços que acabam afastando os grupos polares, diminuindo a repulsão eletrostática e também a espessura das bicamadas.

O efeito da interdigitação seria mais pronunciado para o surfactante DODAB (que forma bicamadas menos espessas) devido à maior densidade de carga superficial das bicamadas formadas por esse anfifílico, indicando uma menor quantidade de contra-íons adsorvidos na superfície positiva das bicamadas e, consequentemente, mais grupos polares carregados se repelindo. Um esquema ilustrando a interdigitação das cadeias carbônicas do surfactante DODAB nas bicamadas é apresentado na Figura 31.

Figura 31 – Esquema da interdigitação das cadeias carbônicas de um surfactante

em bicamadas. Desenho somente representativo, fora de escala.

Resultados da literatura indicam que o efeito de interdigitação das cadeias carbônicas pode contribuir para a diminuição da espessura de bicamadas, como os apresentados por Ryhanen e colaboradores30,65, que estudaram as propriedades

estruturais de fases lamelares formadas pelo DHDB e também verificaram a espessura reduzida das bicamadas (2,30 nm). Porém, para as amostras formuladas na presença de sal (NaCl), a espessura aumentou consideravelmente, devido à blindagem eletrostática dos grupos polares, o que diminuiu as repulsões eletrostáticas entre as cabeças polares dos surfactantes nas bicamadas e o efeito da interdigitação.

Para avaliar o efeito da interdigitação das cadeias carbônicas na espessura das bicamadas formadas pelos surfactantes estudados nessa dissertação, foi obtida

47

a curva de intumescimento para as bicamadas formadas pelo DODAB acima da temperatura de transição (Tm) da fase gel para a fase fluida (Lβ-Lα). A curva obtida

nessa condição é apresentada na Figura 32, cuja análise mostra um comportamento semelhante de intumescimento em ambas as temperaturas mas um ligeiro aumento da espessura das bicamadas acima da Tm.

Figura 32 – Variação da distância de repetição das bicamadas (𝑑) em função do

inverso da fração volumétrica de surfactante (Ф𝑠−1) para algumas amostras formuladas com DODAB a 25º C e 45º C. A espessura das bicamadas (𝑑𝐻𝐶) obtida

nas duas temperaturas também é indicada.

Essa observação pode ser explicada pelo fato de que em altas temperaturas (acima da temperatura de transição para a fase mais fluida), a energia térmica permite mais mobilidade às moléculas do surfactante, fazendo com que as cadeias carbônicas dos anfifílicos ocupem um espaço lateral maior, que pode ser suficiente para manter as cabeças polares mais afastadas, diminuindo a repulsão entre elas68.

Se as forças de repulsão entre os grupos carregados diminuem, a interdigitação é menos pronunciada e há um aumento na espessura das bicamadas, conforme obtido pelo teste realizado.

0 10 20 30 40 50 20 30 40 50 60 70 80 90 d / n ms-1 25oC dHC = 2,41 ± 0,06 nm 45oC dHC = 2,53 ± 0,04 nm

48

Bo Jönsson e colaboradores69-75 se dedicam às aplicações de simulações

computacionais para resoluções de problemas envolvendo química coloidal. Jönsson descreve em seus trabalhos um modelo intitulado de efeito de correlação iônica (ion correlation effect, em inglês), que envolve o estudo da interação e repulsão entre cargas de igual e oposto sinal em sistemas coloidais. Parte desse modelo é usado para explicar a variação de propriedades de fases lamelares formadas por surfactantes em solução.

O modelo trata as bicamadas de uma fase lamelar como sendo duas superfícies planas carregadas, positivamente, no caso dos surfactantes DDAB e DODAB, separadas por uma distância 𝑑 (a distância de repetição das bicamadas já descrita nesse trabalho). É assumido que a densidade de carga superficial é constante, que o espaço interlamelar está em equilíbrio com o bulk da solução e que todas as espécies carregadas presente nesse espaço (os contra-íons) são tratadas como esferas. Uma representação desse modelo é mostrada na Figura 33.

Figura 33 – Representação esquemática do modelo do efeito de correlação iônica

para fases lamelares de surfactantes. Desenho somente representativo, fora de escala.

49

De acordo com o modelo, os íons brometo provenientes da dissociação do surfactante tenderiam a se aglomerar no espaço interlamelar, dando origem a uma atmosfera iônica que funcionaria como uma membrana semipermeável (permeável ao solvente, água, mas não ao soluto, os ânions). Devido à diferença de potencial químico do solvente no interior das lamelas e no bulk da solução, haveria uma tendência das moléculas de água migrarem para o espaço interlamelar, intumescendo as bicamadas.

Esse fluxo de solvente ocorreria até que os potenciais químicos da água no interior e no exterior das lamelas fossem igualados, ou seja, fosse estabelecido o equilíbrio. O intumescimento da fase lamelar seria então resultado da pressão osmótica do solvente na tentativa de diluir a região concentrada em contra-íons e igualar os potenciais químicos da água no espaço interlamelar. Uma representação desse processo é mostrada na Figura 34.

Figura 34 – Esquema representado o intumescimento das bicamadas de uma fase

lamelar de acordo com o modelo do efeito de correlação iônica. Desenho somente representativo, fora de escala.

O efeito de correlação iônica seria mais pronunciado para as bicamadas formadas pelo surfactante DODAB devido a maior densidade de carga superficial das mesmas, como mencionado anteriormente. Isso indica que mais contra-íons

50

estão em solução, se aglomerando e desencadeando o efeito, do que adsorvidos na superfície das bicamadas, o que geraria uma densidade de carga menor (mais grupos polares contrabalanceados pelos ânions brometo).

É importante salientar que o efeito de correlação iônica é aplicado para sistemas onde há separação de fases entre uma fase líquido-cristalina e uma fase isotrópica, formada pelo excesso de solvente expelido das bicamadas69,70. A partir

da análise da Figura 24, concluiu-se que não há separação de fases durante o intumescimento das bicamadas formadas pelo DODAB, levando a crer, a princípio, que não há bulk de água nesse sistema. Porém, análises por RMN-2H (Figura 35)

de amostras preparadas com o surfactante DODAB indicaram a presença de pequenas quantidades de água isotrópica, sem orientação, não interagindo com as cabeças polares dos surfactantes.

Figura 35 – Espectro de RMN de 2H obtido a 25º C para amostra formulada com

15,0% de DODAB em água. O termo água anisotrópica refere-se às moléculas de água orientadas entre as lamelas. Água isotrópica refere-se àquelas moléculas de água que não interagem com as cabeças polares dos surfactantes nas bicamadas.

0 200 400 600 800 1000 água isotrópica água anisotrópica In te n s id a d e / u .a . v / kHz

51

Com esses resultados, sugere-se que não há bulk nos sistemas DODAB/H2O

mas sim pequenos domínios isotrópicos de moléculas de água, sem orientação privilegiada, entre os domínios de bicamadas que compõem a fase lamelar, conforme representado esquematicamente na Figura 36. Essas moléculas de água é que migrariam para dentre as lamelas, devido ao efeito de correlação iônica, intumescendo as bicamadas.

Figura 36 – Esquema mostrando o arranjo de bicamadas de uma fase lamelar e

pequenos domínios isotrópicos de moléculas de água. Desenho somente representativo, fora de escala.

Para se avaliar tanto a hipótese da interdigitação das cadeias carbônicas quanto a contribuição do efeito de correlação iônica para o intumescimento das bicamadas, foram formuladas amostras com ambos os surfactantes, separadamente, na presença de 1,0% de cloreto de sódio (NaCl), amostras estas que foram caracterizadas por SAXS. A Figura 37 mostra as curvas de intumescimento para as amostras formuladas com sal e, como comparativo, para as amostras formuladas somente com os surfactantes (que já haviam sido apresentadas anteriormente).

52

Figura 37 – Variação da distância de repetição das bicamadas (𝑑) em função do

inverso da fração volumétrica de surfactante (Ф𝑠−1) para algumas amostras

formuladas com DDAB e DODAB na ausência e presença de 1,0% de NaCl.

Os dados representados na Figura 37 indicam uma mudança no comportamento de intumescimento e na espessura das bicamadas formadas pela associação do surfactante DODAB na presença de NaCl, como pode ser constatado pelos dados apresentados na Tabela 4. Isso pode ser explicado pelo fato de que os ânions cloreto, provenientes da dissociação do sal em solução aquosa, blindam algumas cabeças positivas dos surfactantes, via interações entre cargas opostas, diminuindo a repulsão eletrostática entre esses grupos polares e a densidade de carga superficial das bicamadas73.

Como a repulsão entre os grupos polares diminui, a interdigitação das cadeias carbônicas dos surfactantes nas bicamadas não é, ou é com menor amplitude, necessária73,74. Isso justifica o aumento na espessura das bicamadas

formadas pelo DODAB (valores apresentados na Tabela 4) na presença de NaCl. Esses resultados corroboram a hipótese de que a interdigitação é o fenômeno que governa a espessura das bicamadas formadas, sendo esta, por sua vez, função das forças eletrostáticas atuantes sobre o sistema investigado.

10 20 30 40 50 20 30 40 50 60 70 80 90 d / n mS-1 DODAB DODAB + 1,0% NaCl DDAB DDAB + 1,0% NaCl

53

Tabela 4 - Variação da distância de repetição (∆𝑑)* e espessura das bicamadas (𝑑𝐻𝐶) formadas pelos surfactantes DODAB e DDAB na ausência e presença de

NaCl. Sistema ∆𝒅 / nm 𝒅𝑯𝑪 / nm DODAB 56,3 2,41 ± 0,06 nm DODAB/NaCl 24,6 2,55 ± 0,05 nm DDAB 27,5 2,30 ± 0,04 nm DDAB/NaCl 26,1 2,27 ± 0,03 nm

* ∆𝑑 é definido como a diferença entre as distâncias de repetição das bicamadas que compõem a

amostra mais concentrada e a mais diluída, com base em dados da Figura 37.

Com base no modelo do efeito de correlação iônica, o menor intumescimento das bicamadas na presença de sal pode ser explicado pela formação de pares iônicos 𝑁𝑎+𝐵𝑟, provenientes da dissociação do cloreto de sódio e das moléculas

do surfactante, respectivamente, em solução. Com isso, não há excesso de íons brometo livres para se aglomerar e dar origem a regiões concentradas e diluídas em soluto, o que provoca a migração de solvente por osmose para equilibrar o sistema72-75. Ademais, como existem mais grupos polares blindados, a repulsão

eletrostática natural que existe entre as bicamadas é menor, diminuindo a separação entre as lamelas e, por fim, a quantidade de água comportada por elas. A Figura 38 mostra um esquema resumindo as informações obtidas.

A análise da Figura 37 ainda mostra que o comportamento de intumescimento das bicamadas formadas pelo surfactante DDAB continua o mesmo, apresentando uma pequena diminuição no valor de ∆𝑑, que pode ser explicado pela queda na repulsão entre bicamadas, causada pela adsorção dos ânions 𝐶𝑙− na superfície carregada positivamente das bicamadas.

54

Figura 38 – Esquema exemplificando as bicamadas formadas pelo DODAB em

55

5. Conclusões

A partir dos resultados obtidos, conclui-se que, numa ampla faixa de concentração, os surfactantes estudados nessa dissertação, DDAB e DODAB, se associam em solução aquosa dando origem a arranjos líquido-cristalinos com estruturas típicas de fase lamelar. Em diferentes faixas de concentração, ambos os surfactantes se associam em duas fases lamelares, Lα e Lβ. Essas fases diferem

entre si tanto pela organização das cadeias carbônicas nas bicamadas, quanto pela quantidade de água contida nelas. Para o DDAB ainda foi constatado a presença de pequenos domínios cristalinos de lamelas imersos em solução isotrópica, quando em baixas concentrações.

Estudos calorimétricos mostraram que fornecendo energia térmica suficiente para a fusão das cadeias carbônicas dos surfactantes, há uma transição da fase gel (Lβ) para a fase fluida (Lα). Já nas misturas dos anfifílicos DDAB e DODAB, devido

à diferença de tamanho das caudas hidrofóbicas, as moléculas não se associam em estruturas lamelares altamente ordenadas, dando origem a uma única fase lamelar desorganizada que, quando aquecida até 60º C, se transforma na fase hexagonal reversa.

Com relação às propriedades estruturais das fases lamelares obtidas, foi constatado que, dependendo da densidade de carga superficial das bicamadas, há repulsão entre os grupos polares nas moléculas dos surfactantes nas bicamadas. Para evitar as forças de repulsão desfavoráveis, as cadeias carbônicas do surfactante tendem a ficar interdigitadas, condensando sua parte apolar, criando espaços que afastam os grupos carregados.

Esse fenômeno de interdigitação justifica a pequena espessura das bicamadas formadas pelo DODAB, que possuem maior densidade de carga superficial. O maior intumescimento das bicamadas formadas pelo DODAB se deve ao efeito de correlação iônica, que promove o fluxo de água segregada em pequenos domínios isotrópicos entre as bicamadas para o espaço interlamelar, de modo a diluir a região concentrada em contra-íons e igualar o potencial químico do solvente dentro e fora das lamelas.

56

O conhecimento das propriedades estruturais das fases lamelares formadas pela associação dos surfactantes estudados nessa dissertação é fundamental, já que esses surfactantes encontram uma série de aplicações importantes, desde a mimetização de membranas biológicas e compreensão do funcionamento das mesmas, chegando até a processos industriais de grande importância.

57

Documentos relacionados