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Interpretações alternativas sobre psicologia positiva e crítica a flow

2.6. Flow

2.6.5. Interpretações alternativas sobre psicologia positiva e crítica a flow

A Psicologia tem, em geral, empreendido esforços para compreensão de aspectos patológicos da mente humana. Não obstante, alguns aspectos positivos também despertam a atenção, tais como criatividade, maturidade e empatia, por exemplo. Esses aspectos introduzem complexidade adicional à investigação e mensuração científicas, pois estão relacionados a mecanismos de defesa que são empregados consciente ou inconscientemente no sentido de permitir ao indivíduo enfrentar (ou lidar com) conflitos. Esses mecanismos de defesa se manifestam por meio de humor, altruísmo, supressão ou sublimação, por exemplo (Vaillant, 2000).

Conflitos se apresentam ao indivíduo como incompatibilidades entre estruturas cognitivas sedimentadas e situações vivenciadas, e demandam atenuação para que deixem de gerar incômodo/desconforto (manifestados por meio de comportamentos depressivos/agressivos). Alguns desses tipos de conflito podem ser caracterizados como dissonância cognitiva (Festinger, 1964). A sensação de dissonância, consciente ou inconscientemente, impele o indivíduo a buscar consonância por meio de artifícios mentais, muitas vezes alterando a sua declaração de atitudes (frente a determinada situação) ou distorcendo a realidade conflitante.

A atenuação da dissonância cognitiva ocorre segundo interpretações diversas: (a) cognições que se mostram inconsistentes mas que não têm probabilidade de influenciar o comportamento não causarão dissonâncias (modelo baseado na ação); (b) cognições

que se mostram inconsistentes quando comparadas ao elevado esforço de obtenção de resultados tendem a gerar supervalorização dos resultados (justificação do esforço); (c) a intensidade da dissonância é inversamente relacionada à quantidade de pressão externa para que ocorra o comportamento (conformidade induzida); (d) dissonância é uma ameaça à autoimagem e não uma inconsistência cognitiva (autoafirmação); (e) dissonância só é causada por cognições que ameaçam o autoconceito por meio de comportamentos contrários à crença do indivíduo em si (autoconsistência); e (f) dissonância é atenuada, geralmente após decisões difíceis, pela supervalorização da escolha, mesmo quando a alternativa escolhida era equivalente a outras alternativas, como consideradas antes da decisão (distanciamento de alternativas) (Harmon-Jones, 2012).

Assim, é razoável perceber-se a atenuação da dissonância cognitiva como um possível mecanismo de defesa disparado por incompatibilidades cognitivas. Nesse sentido, poderia flow ser entendido como um recurso de atenuação de dissonâncias agindo em proteção ao/defesa do indivíduo?

Estudos abordando dissonância cognitiva e flow ilustram, por exemplo, que há esforço de alinhamento entre atitudes (redução de expectativas em relação a sucesso e satisfação com o trabalho) e a realidade enfrentada na rotina de ensaios e apresentações, como modo de atenuação da dissonância entre instrumentistas de uma orquestra sinfônica (Mogelof & Rohrer, 2005). Ilustra-se também atenuação da dissonância empregada em situações de escolha hedônica, quando indivíduos optam pela determinação da supervisão em vez de livre decisão, em situações de alocação de recursos entre indivíduos no trabalho (Hsee et al., 2012).

Mas, em todo caso, permanece a questão: flow teria ocorrido como manifestação autêntica, independente de demandas cognitivas reconciliatórias ou, ao contrário, seria precisamente a manifestação de atenuação de conflitos cognitivos, com artifícios (conscientes ou inconscientes) do tipo “optei por este trabalho e agora devo encontrar formas de lidar bem com ele” ou “tenho que realizar esta tarefa que vai me dar muito trabalho, mas posso atribuir a ela uma supervalorização em termos de recompensas”?

Há situações em que flow parece não agir como mecanismo de defesa, mas como uma das causas de dissonância. Em experimentos com o uso interativo de software, há demonstrações de que sentimentos de culpa decorrentes do prazer obtido quando em estado de flow são responsáveis pela ativação de dissonância, atenuada com justificativas de que o tempo empregado na atividade foi útil para a aprendizagem, ou

outra justificativa instrumental (Agarwal & Karahanna, 2000), ou quando ocorre atenuação da dissonância por meio da redução racional da expectativa de ludicidade no uso de portais web (Lin et al., 2005). A relação entre flow e sentimentos de culpa decorrentes parece ser uma área ainda a ser explorada (Pace, 2004).

Há ainda situações em que experiências hedônicas são definidas em função de mecanismos de defesa, e vice-versa, sem causalidade estabelecida a priori, ou seja, são definições circulares (mutuamente referenciadas), por exemplo na modelagem de motivações intrínsecas em que se empregam conceitos de flow e dissonância cognitiva, para estudos na área computacional e robótica (Oudeyer & Kaplan, 2007).

A teoria de flow, mais especificamente, recebe crítica do próprio Csikszentmihalyi (1990) em relação ao possível caráter “viciante” da experiência (p. 62). No entanto, a crítica a flow tem ocorrido, aparentemente, de forma assistemática. Por exemplo: (1) na investigação de flow (por meio de estados afetivos) e desempenho, a crítica não ocorre sobre flow, mas à ausência de evidências empíricas que demonstrem que flow influencia positivamente o desempenho de desenvolvedores de software (Graziotin et al., 2013); (2) na investigação da dimensão equilíbrio entre desafio e habilidades como o melhor indicador de flow, quando afirma-se que o desequilíbrio seria melhor preditor de flow que o equilíbrio (Løvoll & Vittersø, 2012); (3) na investigação de flow como estado estimulante, quando afirma-se que flow pode inibir a consciência do risco e limitar a avaliação de consequências da atividade exercida sob flow (Schüler & Nakamura, 2013) e possivelmente conduzir o indivíduo à obsessão pela experiência (Chou & Ting, 2003); e (4) na investigação de flow relacionado à compulsão pelo trabalho, quando se afirma que trabalhadores “workaholic” apresentam elevados níveis de flow e, sendo o indivíduo “workaholic” associado a características negativas, como perfeccionismo, centralização, de difícil relacionamento interpessoal e elevados níveis de estresse, flow poderia ser um indicador negativo (Burke & Mattheisen, 2008).

Quanto à aplicação prática/gerencial de conceitos de flow, observam-se críticas a pressupostos subjacentes à teoria, como por exemplo em discussões sobre talento e meritocracia na “nova economia”, afirma-se que não interessa muito ao contratante/empregador o conhecimento e habilidades que o indivíduo dominava ou domina. Importa o que esse indivíduo é capaz de vir a dominar (Sennett, 2006, p. 163). Comportamento semelhante ocorre crescentemente com profissionais de TI (De Moura Jr. & Helal, 2014). A preferência por contratar pessoas capazes de se adaptar e aprender

rapidamente, mais que pessoas competentes no que já dominam, sugere assim questionamento quanto aos pressupostos de validade das dimensões de flow equilíbrio entre desafio e habilidades e ação-consciência (já que pressupõem “conhecimento na ponta dos dedos”), quando se discute flow no trabalho.

Observa-se, ainda, que mecanismos de defesa nem sempre implicam condição completamente negativa em avaliações psicológicas, pois podem exercer também papel relevante no restabelecimento da “homeostase psicológica” ao permitirem a redução de dissonâncias e conflitos emergentes na realidade circundante ao indivíduo, sem que necessariamente o indivíduo desenvolva patologias/psicoses (Vaillant, 2000, p. 90). Seria flow um mecanismo de defesa dessa natureza, que age positivamente não no sentido de criar “ilusão” de satisfação, mas ao favorecer o equilíbrio de interesses conflitantes (entre o indivíduo e a realidade que o cerca) e potencializar a sensação de recompensa?