• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 – TEMPERAR APÍCIO

5.3. Interpretando “CAE”

As colocações aqui apresentadas permitem sugerir, ainda antes de prosseguir para o final deste trabalho, uma hipótese interpretativa para o que a filologia que discute os manuscritos medievais de Apício tem considerado um enigma. Como mencionado no primeiro capítulo, a inscrição “INCP/API/CAE” que aparece no fólio 1r do manuscrito V (Anexo 1) levanta discussões. O problema maior reside na compreensão do que venha a designar a abreviação “CAE”, já que “INCP” para “incipit” é usual e “API” para “Apicius” parece perfeitamente cabível. A especialista Mary Ella Milham (1967, p. 261-262) descarta a possibilidade, a princípio mais óbvia, de que “CAE” seja uma referência ao nome “Caelius”, como aparece em muitos dos manuscritos apicianos renascentistas. Para ela, essa hipótese não está ancorada em nenhuma autoridade antiga. Na esteira de outros especialistas que a antecederam, Milham prefere considerar que “CAE” seja uma forma contrata de “caena” – o que resultaria em algo como “Incipit Apicii Caena” (começa o jantar de Apício) –, mas adverte que a sugestão permanece inteiramente hipotética. Até onde se pôde verificar, a questão não foi retomada desde então e o “enigma” permanece sem solução.

O descarte da opção Caelius por Milham é sintomático da chave de interpretação equivocada na qual se tem posicionado Apício desde a modernidade. Talvez a especialista e seus colegas tenham buscado autorictas em figuras da Antiguidade pertencentes ao mundo da cozinha ou, o que é bem mais provável, ao mundo da poesia e da prosa que tratasse a cozinha sob algum aspecto. Dentre os autores dessa “literatura culinária”, não existe Caelius (nem mesmo a possibilidade de que Apício tivesse um nome duplo, Apicius Caelius, se sustenta), portanto, não houve como seguir nessa direção. O percurso desta tese, entretanto, revelou como é imprescindível que o sentido de cozinha deva ser alargado para seu melhor entendimento no período altomedieval. Nesse novo locus, a relação de intimidade entre os textos apicianos e a medicina fica explícita. E é a ela que se deveria recorrer na busca de resposta para “CAE”.

A lógica altomedieval entendia Apício como um receituário passível de integrar códices com textos que a modernidade facilmente reconhece como pertencentes ao universo médico. Esse aspecto ficou claro na análise da relação entre os manuscritos A e E e seus respectivos códices. O manuscrito V, porém, aparentemente não constituía um códice compósito, a erudição até o momento tem concordado (ou reproduzido a informação) que ele tenha sido confeccionado para conter apenas um único texto, Apício. Do ponto de vista codicológico e filológico, o que proponho agora necessitaria evidentemente de uma investigação mais aprofundada. No entanto, ao menos conceitualmente, acredito ser possível que “CAE” indicasse um segundo autor planejado para integrar o códice, mas cujo manuscrito contendo sua obra, ou obras, teria se perdido ou, por alguma razão, não teria sido ali colocado. Fato não incomum, já que a decoração de um manuscrito poderia ser realizada paralelamente por pessoas distintas dos copistas responsáveis pela escritura do texto, e somente ao final do processo texto e imagem se reuniriam. Penso particularmente em Caelius Aurelianus.

O médico romano Célio Aureliano viveu, provavelmente, no século V. Pouco se sabe sobre sua vida e atuação, mas todas as obras atreladas ao seu nome são traduções ou adaptações em latim da produção literária do grego Sorano de Éfeso (século II): Tardae passiones, em cinco livros; Acutae passiones, em três livros292; Gynaecia, em dois livros293; dois fragmentos de Medicinales Responsiones, De salutaribus praeceptis e De significatione diaeticarum passionum. O levantamento dos manuscritos médicos dos séculos VIII e IX (Anexo 5) permitiu verificar que, daquele conjunto, foram produzidos ao longo do século IX ou na primeira metade deste, pelo menos: Tardae Passiones (proveniente da abadia de Lorsch), De salutatibus praeceptis e De diaticis passionibus (ambos provenientes da abadia de Reichenau), e ainda alguns excertos (de origem desconhecida) que não foi possível verificar pessoalmente.

Como acontece com outros autores médicos da Antiguidade, o contato com a obra de Célio Aureliano não se perdeu ao longo dos primeiros séculos da Idade Média. Entretanto, a obra pela qual ficou conhecido não parece ser nenhuma daquelas encontradas nos manuscritos mencionados. Segundo Cassiodoro, na passagem citada no terceiro capítulo, essa obra é De Medicina294; a mesma utilizada como referência por Isidoro de Sevilha para escrever o quarto livro das Etimologias dedicado à Medicina 295. Claro, é também possível pensar que De Medicina fosse um título diverso para a mesma obra que nos manuscritos altomedievias aparecem sob as rubricas indicadas anteriormente – com exceção de Gynaecia e Acute passiones, cujos conteúdos são conhecidos por meio de edições modernas.

292

CÉLIO AURELIANO, On acute diseases and on chronic diseases. Ed. e trad. I. E. Drabkin. Chicago: University of Chicago Press, 1950. (Não consultada)

293

Id.Gynaecia: fragments of a Latin version of Soranus' Gynaecia from a thirteenth century manuscript. Edição de M. F. Drabkin e I. E. Drabkin. Bull. Hist.Med., Suppl. 13, p. 1-136, 1951. (Não consultada) 294

Cf. nota 129. 295

Segundo os editores da Patrologia Latina: “Medicina. Neste livro foi seguido Célio Aureliano” (“Medicina. Coelium Aurelianum fere secutus est in hoc libro”). (ISIDORO DE SEVILHA, Etymologiae , col. 813).

A verdade é que edições e estudos sobre as obras de Célio Aureliano na Idade Média são ainda muito insuficientes para que se possa conhecer melhor a história de seus textos, bem como a significação e o alcance de sua produção médica na sociedade do período. Porém, mesmo diante de informações tão preliminares, me parece relevante e pertinente sugerir a abertura de uma via de investigação que persiga a possível convivência de Apício e Célio Aureliano em um mesmo códice. Nesse sentido, o título De diaticis passionibus apareceria como a opção que melhor se insere na lógica observada em outros códices do período, ou seja, que posiciona lado a lado receituários e textos dietéticos e farmacológicos. Se esse padrão pôde ser comprovado no códice do manuscrito V (que outrora reuniu Apício, Hipócrates e um receituário anônimo), por que não o seria neste caso?

Documentos relacionados