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Interpretando o que se vê, o que se toca e o que se ouve: materialidade como investigação de sentidos

No documento DOUTORADO EM HISTÓRIA SÃO PAULO 2008 (páginas 82-85)

Retornamos, finalmente, ao ponto que motivou o início de nossa investiga- ção. O Boué Soeurs do Museu Paulista tem uma renda costurada à barra da última saia do forro que aparenta ser de algodão, contrastando com a seda presente em todas as outras três saias de forro e com tecido do próprio ves- tido, também de seda. Para alguém acostumado a estudar vestidos de alta- costura da década de 1920, e, na verdade, para aqueles que passam a olhar os avessos das roupas de qualquer época com atenção, fica evidente que aquela renda fora costurada ao vestido depois de sua confecção. Em outras palavras, o tipo de costura, a linha empregada (algodão), a fibra de que é feita a renda (algodão) e o contraste com os demais tecidos do vestido levam a crer que houve alteração do modelo original, hipótese que jamais existiria não fosse a análise material do objeto.

Apesar da evidência razoavelmente clara da alteração feita no vestido, opta- mos por fazer uma comparação entre ele e outros vestidos confeccionados pela mesma maison e mesmo por outras casas de alta-costura da mesma época. A comparação entre objetos assemelhados e datados da mesma época é de grande ajuda na confirmação de hipóteses como a minha (PROWN, 1993). Com este propósito, localizei outras roupas da Maison Boué Soeurs e pude ver duas delas numa visita ao acervo do Museu do Fashion Institute of Technology em Nova Iorque.99 Os dois vestidos fazem parte da coleção da

Família Miller e são datados da década de 1920.

O primeiro deles (95.103.38 A/B) é um vestido de organdi de seda creme com bordado em motivo floral, feito a mão, apesar de imitar uma laise (Figura 55 A-C).100 A barra, com três babados, e o cinto são de organdi de seda azul,

sendo que há um pequeno buquê de rosas em cetim de seda, ícone da maison e presente em quase todos seus vestidos. Um segundo vestido também feito em organdi funciona como forro e é preso ao primeiro por botão de pressão localizado nas duas alças internas dos ombros, acabamento bastante comum em vestidos de alta-costura da época e que encontramos também naquele do Museu Paulista. A barra interna do vestido tem acabamento de tecido de seda duplo, aparentemente um crepe Georgette, e não há sinal de renda aplicada à barra. O vestido foi inteiramente confeccionado em variedades de tecidos de seda e não há uso de tecido ou passamanaria de algodão.

99 Minha primeira visita aos acervos do Museu do Fashion Institute of Technology em Nova

Iorque (com bolsa de estudo do Passold Research Fund, UK) aconteceu entre 21 de outubro e 3 de novembro de 1999, com a finalidade de levantamento de fontes de pesquisa para a elaboração de minha dissertação de mestrado, um estudo sobre a maison francesa, fundada em 1923, Louiseboulanger. Pude, então, listar vestidos daquele acervo confeccionados por casas de alta- costura francesa datados das décadas de 1920 e 1930, dos quais pude ver e analisar alguns, entre eles: dois vestidos Chanel, cinco Louiseboulanger, um Augustabernard, um Mainbocher, dois Boué Souers (em visita de 19 de fevereiro de 2004) e outros três sem autoria confirmada. Em fevereiro de 2004 voltei ao museu para analisar especificamente os vestidos Boué Soeurs.

100 Os verbetes de tipos

de tecido estão no Glossário.

FIGURA 55 A-C.

— Vestido (95.103.38 A/B) etiqueta Boué Soeurs datado de c.1923. Fotografia: Rita Andrade, com permissão do museu (2004). Acervo: Fashion Institute of Technology, Nova Iorque, EUA. Detalhes: A. vestido (frente); B. avesso da barra dupla, sem adição de renda; C. buquê de flores de seda, característico da maison, aqui usado como decoração no cinto de tecido.

FIGURA 55A.

FIGURA 55C.

FIGURAS 56 AEB

— Vestido (95.103.37) etiqueta Boué Soeurs datado da década de 1920. Fotografia: Rita Andrade, com permissão do museu (2004). Acervo: Fashion Institute of Technology, Nova Iorque, EUA. Detalhes:

A. Vestido (frente). Pelos recortes feitos na barra assimétrica e pela adição de uma parte de buquê de flores numa das pontas, é visível que foi feita uma alteração no modelo original da peça. Como já discutido, essa era uma prática comum daqueles que vestiam couture, especialmente antes da década de 1930. B. peso costurado a uma das pontas da barra, acabamento típico dos vestidos da década de 1920 encontrado também no modelo que está no Museu Paulista.

101 Além desses dois, há ainda um terceiro vestido do acervo

do FIT que, apesar de não ter etiqueta da Maison, é atribuído a Boué Souers pelos curadores. O vestido (83.219.6) doado por Elizabeth Hadsworth e datado de 1929 é longo, confeccionado em cetim de seda perolado, com barra de tule de seda no mesmo tom, e saia em forma de envelope. O cinto do mesmo cetim de seda possui uma fivela de cristal e metal prateados. O acabamento da barra interna é muito semelhante aos outros dois vestidos, mas a ausência da etiqueta e do buquê de rosas

não permite uma identificação precisa. Aparentemente, há uma sobreposição de costura manual e feita à máquina (esta em tom ferrugem, não oxidado) que aponta para uma possível alteração do modelo original, o que poderia explicar a ausência do característico buquê de rosa. Em termos de design, ele está mais próximo a criações da Maison Augustabernard, apesar do acabamento interno ser mais próximo dos modelos da Maison Boué Souers.

O segundo vestido (95.103.37)

foi igualmente confeccionado em organdi de seda creme, com barra assimétrica e em camadas com aplicações de veludo e renda de seda pre- tos (Figura 56 A e B). Apesar de não acompanhar vestido- forro, há sinal de que haveria um original, visto que há o gancho com botão de pres- são localizado nas duas al- ças internas dos ombros. O pequeno buquê de rosas em cetim de seda, característico de Boué Soeurs, é costurado à cintura e à barra do vestido. Na barra interna, há peque- nas bolsas com areia para dar peso à saia, similares às de chumbo do vestido do Mu- seu Paulista, mas mais male- áveis. O acabamento interno na barra é duplo, não haven- do sinal de renda costurada ali. Este vestido, assim como o primeiro, fora inteiramente confeccionado em variedades de tecidos de seda e não há uso de tecido ou passamana- ria de algodão.101

Nesses dois vestidos, portanto, o acabamento feito na barra é o mesmo, isto é, dobrando uma parte do tecido para o avesso e costurando-o a cerca de 10 cm acima da dobra. Esse estilo de acabamento confere à roupa uma superfície mais limpa e lisa, sem relevos, uma prática que ficava cada vez mais comum em roupas de alta-costura a partir da década de 1920.102 Em nenhum outro

vestido confeccionado naquele período em Paris (entre eles estudamos pe- ças de Chanel, Louiseboulanger, Augustabernard, Mainbocher e Vionnet), encontramos acabamento semelhante ao vestido do Museu Paulista, que é mais comum em roupas do século anterior. É muito provável, portanto, que a renda da barra do vestido Boué Soeurs do Museu Paulista tenha sido cos- turada ali depois da sua confecção original. Acreditamos que essa alteração no projeto original tenha sido feita no Brasil por razões que discutiremos a seguir. Sendo este nosso pressuposto, o que isso nos informa sobre possí- veis práticas e mentalidades locais diferentes das práticas da alta-costura, um tipo de confecção particularmente francesa? A análise dos avessos das roupas informam escolhas de acabamentos e marcas do tempo que nos permitem investigar modos de pensar e vestir.

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Avessos e acabamentos:

No documento DOUTORADO EM HISTÓRIA SÃO PAULO 2008 (páginas 82-85)