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Capítulo 4. A honra através da dádiva

4.1. Intervalo para entendimento do direito de propriedade

Para entender melhor o raciocínio, é importante discorrer sobre a relação entre propriedade e posse, conceitos jurídicos intimamente ligados. A inovação no pensamento de Godelier se centra especialmente em uma característica do Direito de propriedade.

Pode-se entender a propriedade a partir do tratamento que lhe é dado pelo Código Civil Brasileiro, no Título III:506

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o

direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.507

505 As garantias fundamentais são os direitos humanos, previstas na Constituição. Direitos humanos são aqueles conferidos a qualquer ser humano, pela sua condição de pertencer à humanidade. Uma das características dessas garantias, presentes em qualquer manual de direito constitucional, é a sua inalienabilidade e sua

irrevogabilidade.

506 Não há nenhum risco de anacronismo. Os conceitos atuais de propriedade, a partir do Código Civil Brasileiro, são aqui trazidos para facilitar a compreensão do argumento de Godelier.

507 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em 10 out. 2013.

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A propriedade faz parte dos chamados direitos reais que, classicamente, são poderes jurídicos diretos da pessoa sobre uma coisa, em que o sujeito passivo (devedor) é indeterminado, ou, se se adota a teoria personalista, o sujeito passivo é composto de todas as pessoas, através de uma obrigação passiva universal, consistente no dever geral de abstenção da prática de qualquer ato que os atinja. Por isso, diz-se que são direitos oponíveis erga omnes, ou seja, contra todos, tendo como consectária a inerência508 pela qual o direito adere à coisa, acompanhando-a ininterruptamente. É um direito imediato e direto, já que não é necessário um outro sujeito para que o titular possa exercer seu poder sobre o bem.509

Da definição indireta trazida pelo Código Civil, é possível perceber que a propriedade é um direito formado de várias faculdades.510 Ele se compõe das faculdades de usar, gozar, dispor do bem e de persegui-lo de quem a possua ou a detenha injustamente (direito de sequela). Esta última faculdade surge no debate entre Francisco Xavier da Fonseca e Rosa Bernardes Soares. Esta conseguiu um mandado de busca para procurar sua escrava fugida que, por notícias, poderia estar na casa de Francisco. O autor se sentiu injuriado por ter sido dada busca em sua casa. Entretanto, o procurador da ré adiantou, na contrariedade ao libelo: “porque a ré, por ter notícia que a dita sua crioula estava em casa do autor, é que obrou o referido, e não com ânimo de injuriar a este, pois sendo a dita crioula sua escrava lhe era licito procurá-la em qualquer parte,(grifo nosso) muito mais precedendo despacho do julgador.”511 Esta tese foi acolhida ao final da ação e a ré não foi condenada.

A posse, segundo definição do Código Civil Brasileiro é:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno

ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.512

Como se vê, a propriedade se desdobra em vários poderes e quem exerce qualquer um deles pratica a posse do bem, que pode ser oposta mesmo contra o proprietário. O exemplo mais comum é o aluguel. O locatário pode exigir o respeito à sua posse, inclusive contra o

508 “Para significá-lo em toda a sua intensidade, diz-se que o direito real adere à coisa como a lepra ao corpo (uti

lepra cuti).” GOMES, O. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 8. 509 BESSONE, D. Direitos Reais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 4-6.

510 Concordo com Orlando Gomes ao inadmitir que a propriedade seja a soma de faculdades, mas como um direito único, embora complexo. Dessa forma, ele pode se desdobrar e ser limitado em suas diferentes faculdades. Essa característica é o que se chama de elasticidade dos direitos reais. GOMES, O. op.cit. p. 15. 511 ACSM – 2º Ofício. Cód. 210. Autos 5245.

512 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em 03 mai. 2013.

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proprietário/locador. Quando todos os poderes estão unidos no proprietário, fala-se que a propriedade é plena, quando não, fala-se em propriedade limitada.

A posse passou a ter uma análise mais acurada a partir da teoria subjetiva, de Friedrich Carl von Savigny, que tentou, na obra Tratado da Posse, de 1803, reconstruir as noções atinentes ao instituto, trazidas do direito romano. Para ele, a posse resulta da junção de um elemento material, corpus; a um elemento intelectual, animus. Para a posse, era necessário o poder de fato sobre a coisa (apreensão) junto à vontade de tê-la como própria.513 O acento no animus domini como necessária à posse é que deu à teoria a alcunha de subjetivista.514

A teoria subjetivista sofreu crítica principalmente de Rudolf vonIhering, em meados do século XIX. O estudioso ressaltou que é comum a confusão entre propriedade e posse, já que os institutos, em geral, estão concentrados nas mãos de uma mesma pessoa. Na sua visão, a posse é poder de fato sobre a coisa, enquanto a propriedade é poder de direito. O poder de fato pode ser vislumbrado nos casos de subtração do bem, contra a vontade do proprietário, onde se manifesta sua posse injusta. Mas a posse também pode ser por direito, onde ocorre a posse justa. O exemplo do locatário pode ser mais uma vez trazido para ilustrar esta última forma de posse. Ihering combate a posse como corpus e animus. Ele entende que o animus domini não lhe é necessário, já que posso ter posse sem exercê-la como se fosse o dono.

Não se pretende aqui, esmiuçar as discussões sobre propriedade e posse, desnecessárias para o objeto deste estudo. Desde os romanos e ainda hoje, o tema é polêmico na teoria e mesmo nas adoções feitas pelos diversos ordenamentos jurídicos. Contudo, é uma pauta de suma importância nos dias atuais, quando o paradigma grava a propriedade com uma função social e a posse ganha relevância decisiva para o Estado Democrático de Direito. Mas, para este trabalho, o que importa é conhecer as características da propriedade, sua relação com a posse e o direito de sequela (faculdade de buscar a propriedade de quem injustamente a detenha). Isso é essencial para o pensamento de Godelier.

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