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Capítulo III – Análises e Resultados

3.4 O Acompanhador

3.4.6 Alguns Apontamentos Sobre Aspectos Harmônicos

3.4.6.2 Intervalos de Quartas Justas em Acordes

Sobre o emprego do intervalo de quarta justa por instrumentistas de guitarra é importante notar que a própria anatomia do instrumento favorece seu uso, posto que é possível uma execução anatômica da mão esquerda através do uso de pestanas ou meias pestanas. Há, portanto, um favorecimento do uso da harmonia (ou melodia) quartal possibilitado pelos aspectos idiomáticos da guitarra afinada em quartas justas. O emprego das quartas por Galvão, em situações de acompanhamento, ocorre de forma recorrente junto ao recurso de paralelismo.

É importante mencionar que a ampla exploração da harmonia quartal (sobretudo com paralelismo) ocorreu no “impressionismo”85

, por compositores como Debussy e Ravel. Entretanto, no campo do jazz, pianistas como Bill Evans (o qual Lula diz ter escutado bastante), McoyTyner, entre outros também contribuíram para o desenvolvimento e uso

85

“Termo surgido no século XIX, referia-se inicialmente à pintura de franceses como Renoir e Monet. Chegou a ser usado na música de forma pejorativa, mas após o Prelúdio à tarde de um fauno, de Debussy, a ideia acabou associada à obra do compositor, estendendo-se igualmente a alguns de seus contemporâneos, como De Falla, Ravel e Dukas. Algumas das características do movimento foram o paralelismo, as escalas de tons inteiros, o modalismo, as dissonâncias e a não-resolução harmônica de sequências de acordes. (DOURADO, 2004: 165-166)

desse tipo de harmonização, de forma que uma das características muito presente no jazz modal86 é justamente o uso da harmonia quartal.

Exemplo 48a: trecho final de Luas de Subúrbio (02’:08” – 02’20”) (PINHEIRO, 1996)

No trecho acima, o instrumentista toca aberturas de acordes quartais para finalizar a canção (cuja formação é violão e voz), de maneira que essa progressão soa como uma cadenza87 final. Galvão faz uso do modo lídio, pela presença da 4ª aumentada em grande parte das aberturas, e toda sequência de blocos caminha de modo paralelo. Os acordes empregados são ricos em tensões e cabe destacar que o último bloco possui: 4ª aumentada, 6ª maior, 7ª maior e 9ª maior.88 É um acorde de sonoridade violonística “cheia”, pelo uso das tensões e por ter seis sons. Outro acorde emblemático contido no trecho (representado pelo terceiro bloco do primeiro compasso e segundo bloco do segundo compasso) constitui “... a clássica abertura por quartas com o intervalo de 3ª nas vozes agudas que se tornaram

86 O jazz modal foi uma vertente explorada por músicos como Miles Davis (principalmente através do álbum

Kind of Blue, de 1959), John Coltrane (na década de 1960) entre muitos outros músicos contemporâneos e

posteriores aos mencionados. Nessa estética, é muito comum a presença de acordes (modos) que permanecem estáticos por longos períodos, em oposição às progressões tonais de acordes que caminham para uma resolução. Dentre os principais exemplos, pode-se citar os standards So What (Miles Davis) e Impressions (John Coltrane).

87 “Trecho (...) em que o solista exibe sua virtuosidade. Geralmente desacompanhada, a cadenza passou a relacionar tematicamente com o movimento, desenvolvendo-se na dominante para ao final concluir na tônica.” (DOURADO, 2004: 63)

88 É nítida a preferência estética de Galvão por modos ricos em tensões, modos estes muitas vezes “dissociados” (TINÉ, 2011: 44) de suas funções harmônicas. Por exemplo, nessa passagem 48a ele emprega o modo lídio (fruto do 4ª grau da escala maior natural) em um acorde de função tônica (I grau, que diatonicamente corresponderia ao modo jônio).

antológicas em “So What” (Miles Davis)...” (TINÉ, 2011: 41) Tal acorde, nessa gravação do disco Kinf of Blue (1958), foi tocado pelo pianista Bill Evans.

Exemplo 48b: acompanhamento em Par Constante (01’:40” – 01’:48”) (GUINGA, 1999)

Mais uma passagem em que todas as aberturas (com a exceção da primeira, que é uma tríade de Si maior) são quartais, caminham através do paralelismo e configuram o emprego do modo lídio nos acordes maiores. Aqui novamente figura o acorde citado anteriormente, presente na gravação original de So What (Miles Davis).

Exemplo 48c: acompanhamento em A Ilha (01’:02” – 01’:12”) (PASSOS, 2002)

No trecho superior se destaca o uso de alguns procedimentos em relação ao emprego de acordes quartais: na abertura destacada em vermelho, a 3ª maior do acorde (no caso um Ré sustenido) é substituída pela 9ª aumentada (nota Ré natural, 3ª menor), o que lhe confere um colorido diferente em relação ao acorde tradicional (maior com sétima menor) de função dominante. Por conter apenas a 3ª menor, essa abertura pode se

configurar como oriunda do Vm7 (dominante menor), este derivado da escala menor natural.89

O uso dessa mesma abertura sobre acordes dominantes é costumeiro em práticas do músico Toninho Horta (com a diferença que Horta acrescenta, no trecho seguinte, a fundamental como nota mais aguda dos blocos):

Exemplo 48d: trecho do solo improvisado de Toninho Horta em Stella by Starlight (c. 13-16) (HORTA, 1992).

A respeito do exemplo 48c, a passagem grifada em azul contém a aplicação de acordes quartais paralelos com uma peculiaridade: o guitarrista realiza a técnica de tocar um bloco para logo em seguida ascender todas as notas em meio tom através de uma ligadura. É significativo notar que esse procedimento de ligaduras cromáticas (em acordes) é bastante idiomático e de relativa facilidade de execução ao violão ou à guitarra em comparação ao piano, visto que ele é obtido com um sucinto movimento ascendente da mão esquerda do guitarrista. É também amplamente explorado por guitarristas de jazz, como recurso para criar tensão.

Ainda sobre o trecho em azul, nota-se que ocorre um mecanismo harmônico similar ao destacado em vermelho nesse mesmo exemplo 48c e no exemplo 48d: no primeiro bloco do último compasso Galvão executa uma abertura quartal que contém a fundamental, 11ª

89 “...sim: o "Vm" tem função dominante. Mas uma dominante peculiar, desviante, uma dominante- contraventora que assimila a condição de exclusão e, sem deixar de contravir, quer ser aceita. Uma dominante que não atua sozinha (pura, autônoma, sem "conotações programáticas"), uma inflexão consideravelmente sutil, uma desobediência civil que só funciona em conjunto com uma série de outros expedientes musicais e extra-musicais contribuindo para matizar determinadas visões de mundo. Digamos, o "Vm" é uma "dominante" conveniente aos ideários que se apresentam como modernizadores (ou revigorizadores) apregoando um retorno (ainda que utópico e idealizado) de valores arcaicos.” (FREITAS, 2010: 116)

justa e 7ª menor, respectivamente (em relação ao acorde de F#¢), dessa forma, não há presença da 5ª diminuta (grau que define a natureza sonora da tipologia meio diminuta90) e o acorde soa de forma suspensa.