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CAPÍTULO II – A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O

2.4 A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA FAMÍLIA

A judicialização das situações de violência doméstica e familiar deve ser entendida como uma forma de intervenção do Estado no espaço privado que, em princípio, visa a garantia de direitos e proteção, por exemplo, à criança e ao adolescente, à mulher, ao idoso, à pessoa com deficiência, dentre outros, que tenham seus direitos ameaçados ou violados. Contudo, há que considerar que:

A intervenção do Poder Judiciário junto aos indivíduos, famílias e grupos sociais, requer uma análise enquanto intervenção do Estado na família. Uma intervenção que apresenta riscos e dificuldades, especialmente no que se refere ao estabelecimento de limites entre o direito à proteção e o direito à privacidade, por exemplo (FÁVERO, 2009, p.18).

A contradição entre a intervenção do Estado na família e os direitos à privacidade e à proteção é também abordada por Mioto (2006), para quem o choque entre esses direitos “se constitui num dos pontos mais controversos e mais difíceis de serem enfrentados no cotidiano da intervenção com famílias” (p.50). No que tange à discussão proposta no presente estudo, a referida autora traz uma reflexão fundamental ao destacar que “mais complicado se torna quando se observa que a permeabilidade dos limites da privacidade familiar é diretamente proporcional à sua vulnerabilidade social” (MIOTO, 2006, p.50).

Mioto (2004) ressalta que hoje existe um consenso sobre as transformações da família, contudo, tal consenso restringe-se a aspectos de sua estrutura e composição, considerando que, de fato, “as expectativas sociais sobre suas tarefas e obrigações continuam preservadas” (p. 4). Nesse sentido, a autora observa a manutenção de um “padrão de funcionalidade das famílias”, “calcado em postulações culturais tradicionais referentes aos papéis paterno e materno, principalmente” (p. 4). Ao refletir sobre a concepção de família, considerando esta uma construção privada e também pública, a autora conclui que a família:

[...] tem um papel importante na estruturação da sociedade em seus aspectos sociais, políticos e econômicos. E, nesse contexto, pode-se dizer que é a família que “cobre as insuficiências das políticas públicas, ou seja, longe de

ser um “refúgio num mundo sem coração” é atravessada pela questão social (MIOTO, 2010, p.168).

Além de cobrir as insuficiências das políticas públicas, a família é apresentada hoje como uma importante referência para a execução de tais políticas. Esse contexto corrobora com uma perspectiva de política neoliberal e revela uma contraditória relação entre a família e o Estado :

O incremento da ideia da família como centro de proteção e com ela o amplo desenvolvimento do voluntariado, das entidades não-governamentais e o delineamento de “novas profissões” no interior das políticas sociais, inclusive nas públicas, vai favorecer não só a reativação exponencial da ideia liberal da responsabilidade da família em relação a provisão de bem estar, como também a reativação das práticas disciplinadoras tão comuns nos séculos anteriores, principalmente em relação as famílias pobres (MIOTO, 2008, p.141).

Nesse contexto, pode-se considerar que, se por um lado, permanece uma série de exigências e desafios impostos às famílias na atualidade, por outro, a família apresenta dificuldade em dar conta destes, diante da realidade concreta:

[...] as famílias vivem pressionadas entre a exigência de cumprimento dos deveres prescritos, que é o cuidado e proteção de seus membros, e a ausência de condições para tal; entre o fortalecimento da importância dos projetos individuais dos pais e a manutenção do projeto familiar de cuidado com os outros; entre um modelo familiar ideal que persiste no imaginário social e a realidade da diversidade dos arranjos familiares. Enfim, se debate entre duas lógicas, ou seja, a lógica societária hegemônica do individualismo liberal (eu quero mais é ser feliz, salve-se quem puder) onde inexiste a responsabilidade em relação ao outro e a lógica da solidariedade (MIOTO, 2001, p. 111 e 112).

Compreender os processos sociais, econômicos e históricos nos quais a família se constitui é fundamental para se pensar de que modo se dará as intervenções com essas famílias. Mioto (2001, p.116 e 117) destaca dois modelos de atenção a famílias, o “modelo psico-social/individualizante” e o “modelo de atenção integral vinculado à perspectiva do conflito/transformação”. A autora destaca que o primeiro modelo ressalta os aspectos disfuncionais ou patológicos das famílias, pouco privilegiando a interrelação com o contexto social. Já o segundo modelo:

[...] implica em reconhecer a família como um sujeito social e político e não apenas como objeto terapêutico. As ações são direcionadas para a transformação das relações, não apenas no interior da família, mas também da família com as instituições e com outras esferas da sociedade. Isso implica na integração das ações em diferentes níveis, ou seja, das políticas

sociais, da organização dos serviços e da atenção direta às famílias [...]. Na perspectiva da integralidade, a organização dos serviços deve estar centrada na idéia da família não apenas como lugar de cuidados mas também como um espaço a ser cuidado (MIOTO, 2001, p. 116 e 117).

A partir dessa breve discussão sobre família e suas configurações, bem como sobre as possibilidades de intervenção nesse âmbito, cabe ressaltar que, se por um lado busca-se superar a ideia de naturalização e sacralização da família, e, ainda, de existência de um tipo ideal de família, por outro, há que se considerar sua importância no desenvolvimento do afeto e da socialização, além de compreendê-la como espaço de luta, de construção de novos valores e novas relações sociais, sendo, portanto, um espaço passível de mudanças e construção de novas formas de convivência. Para tanto, é necessária a superação de percepções de família que a considerem como desfuncionais ou desestruturadas, para reconhecê-la como sujeito social e, conforme ressaltado pela autora acima citada, mais que um lugar de cuidado, a família deve ser compreendida como um espaço a ser cuidado, por meio da garantia de direitos a seus membros e de políticas sociais que permitam maior autonomia e a transformação das relações familiares.

2.5 PARA UMA COMPREENSÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA