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CAPITULO 1 Loucura e Psiquiatria: condições históricas

1.2 Intervenções médicas no hospital

Algumas das pesquisas aqui abordadas mostraram que a loucura enveredou por caminhos diversos até ser transformada em doença. Seus percursos adentraram por cenários peculiares com formas diferentes de recepcioná-la. Alguns homogeneizando, outros enclausurando, outros liberando as pessoas.

Foram etapas também de legitimações e deslegitimações de espaços, destinados à cura de pessoas consideradas pelo saber “doentes”. Mas não é qualquer doença e sim uma específica: a loucura, que assim foi, em certo momento histórico, considerada.

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Como dito anteriormente, hospital se destinava inicialmente a caridade. Ao longo dos anos começou a adquirir outras funções sociais e políticas, outros saberes foram direcionados. Os médicos, nestas instituições, com o discurso de ‘humanizá-las’ e adequá-las aos preceitos modernos, principalmente com o advento da Revolução Francesa, colaboraram para as suas transformações, as quais passaram a ser palco para o exercício dos seus saberes.

Conforme Foucault (1979), este diretor poderia ser uma pessoa religiosa, encarregada da organização interna. Raramente estas tarefas se destinavam ao médico. Este seria convidado ao hospital apenas quando fosse necessário tratar do mais doente entre os doentes. Suas visitas se davam de forma rápida e para atender muitos doentes em um só dia. Mas quando realizava estas obrigações logo se retirava do recinto. Este profissional estaria naquele espaço a convite do pessoal religioso. Assim, diretor poderia ou não aceitá-lo se assim quisesse. Situação temporária, porque a partir do momento

Em que o hospital é concebido como um instrumento de cura e a distribuição do espaço torna-se um instrumento terapêutico de cura, o médico passa a ser o principal responsável pela organização hospitalar. A ele se pergunta como se deve construí-lo e organizá-lo (...) a partir de então, a forma do claustro, da comunidade religiosa, que tinha servido para organizar o hospital, é banida em proveito de um espaço que deve ser organizado medicamente.

(FOUCAULT, 1987 p: 127).

Se antes a presença do médico neste espaço se dava raramente, mais por conveniência, com a transferência de poder sobre a instituição a sua presença torna-se cotidiana. A sua permanência deveria durar. Não seria apenas uma passagem. Posteriormente, no fim do século XVIII, o médico passou a residir no hospital. Assim ele poderia a qualquer hora do dia fazer as devidas observações sobre as pessoas e os acontecimentos naquele cenário.

Reforçando as colocações de Foucault, Amarante se reporta ao assunto dizendo que o hospital foi medicalizado perdendo, assim, suas funções de caridade. A cura seria sua nova modalidade.

A intervenção médica no espaço hospitalar, que anteriormente era eventual e paroxística, passaria a ser regular e constante: o saber sobre o hospital permitiria ao médico agrupar as doenças e, assim, observá-las de uma forma diferente, no dia-a-dia, em seu curso de evolução. (AMARANTE, 2007 p: 25).

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Desta forma, para este autor, o processo denominado de medicalização hospitalar teve duas faces: uma em que o hospital se transforma em instituição médica, apropriado pela medicina, e a outra a própria medicina, convertida em saberes e práticas predominantemente hospitalares.

A disciplina foi para Foucault uma das ações de distribuição espacial das pessoas atuando com maior controle sobre seus comportamentos. Daí então,

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o compõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder, esta nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer. Mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis (FOUCAULT, 1987 p: 127).

Foucault ressalta que a docilidade, assunto de grande interesse no século XVIII, não é de todo novo. Não seria a primeira vez de transformação do corpo em objeto de investimento. Em outros tempos e espaços estaria preso no interior de poderes estreitos e submetido à imposições, fossem elas de limitações, de proibições ou mesmo de obrigações. Assim, no século XVIII a disciplina teria se tornado uma forma de dominação.

Destarte, as pessoas seriam monitoradas e teriam seus comportamentos vigiados, o espaço disciplinar saberia “onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um” (FOUCAULT, 1987 p: 131).

Tudo aquilo que deixava as pessoas “soltas” sem obedecer às ordens determinadas, deveria ser combatido. Direcionar um “olhar mais firme” à esta coletividade se fazia necessário.

Diz Foucault (1979) que a estrutura arquitetônica dos hospitais estava montada de acordo com duas lógicas: uma separando os espaços, para evitar os contágios das doenças, outra para vigiar as pessoas.

Conforme Renata Britto (2004), com a presença médica nestes espaços foi possível isolar, separar, observar e ainda classificar as doenças, dando margem assim, para o hospital se transformar em espaço de transmissão de saber, dando à medicina clínica a “oportunidade” de iniciar a sua atuação. Os médicos ficaram a frente da organização e das responsabilidades “tornando-se uma instituição médica por

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excelência, lugar privilegiado de produção e exercício do saber medico” (BRITO 2004, p: 23).

No Brasil, Yonissa Marmitt Wadi (2002) historiadora que realizou uma pesquisa no Rio Grande do Sul, sobre a constituição do discurso médico psiquiátrico no processo de conquista do espaço institucional destinado aos loucos. Deu ênfase a luta dos médicos para estarem à frente da organização e execução das atividades de um espaço assim. As disputas desses profissionais eram travadas junto a outras pessoas, tais como provedor, aquelas religiosas e também ligadas à caridade, até então responsáveis pela organização destes espaços. O saber médico precisava, naquele momento, de autoafirmação.

Assim, para a imposição do mesmo seria necessária

A definição clara por parte dos médicos de quem eles são e de quem devem ser para se confrontarem com outros atores sociais e demonstrarem sua “autoridade” perante a sociedade; contra quem lutam ou contra o que lutam; o que querem; quem são seus alvos preferenciais; quais são os instrumentos de seu saber/poder; quem são seus aliados; como devem interpelar o social. Precisam se nomear, nomear seu saber, nomear o outro que deve ser atingido por esse saber (WADI, 2002 p: 111).

Nesta passagem é possível perceber a busca da legitimação do saber pelos médicos. Além da urgência em provar a capacidade de poder, os médicos teriam que se responsabilizar por um espaço hospitalar e disputar o poder com outros poderes existentes na gerência do espaço e nos cuidados com a doença das pessoas internas.

De acordo com Amarante (2007) ao chegar nestas instituições, em nome de um novo saber sobre as doenças, o médico retira da filantropia e do clero o poder sobre a administração. Os médicos tornaram-se personagens fundamentais para o desenvolvimento da trama psiquiátrica nestes cenários.

Dentre estes alguns marcaram o processo de medicalização do hospital, a exemplo de Philippe Pinel (1745-1826)8, em Paris, nas últimas décadas do século XVIII, quando ficou na organizaçao dos hospitais de Bicêtre e La Salpêtrière, na França. Sintonizado com os ideais franceses de liberdade, igualdade e fraternidade, preconizou o tratamento moral para os alienados e propôs a liberdade aos loucos acorrentados em Paris.

8 Philippe Pinel foi um médico francês, considerado o pai da psiquiatria. De acordo com este médico, os

seres humanos sofriam de perturbações mentais eram doentes e por isto, deveriam ser tratados como doentes, mas, não de forma violenta. Foi o primeiro médico a tentar descrever e classificar o que considerava perturbações mentais.

37 A ideia de curar a loucura - como também a organização de toda uma estratégia terapêutica em torno do louco - fundada no princípio de que a loucura subsiste um núcleo de razão, de natureza, de verdade, que é alienado, mas não destruído, significa que a psiquiatria pretende realizar, de modo mais perfeito, pelo sistema da recuperação, aquilo que, no final do século XVIII, o sistema da exclusão clássica se mostrou incapaz de realizar: o controle social do louco (MACHADO, 1981 p: 90).

Neste espaço de reclusão, a loucura tornou-se objeto de conhecimento, transformando-se em doença. Mas não em qualquer uma e sim em doença mental. A psiquiatria passou a ser uma ciência apta a classificá-la.

Conhecer a loucura significaria ter mais um mecanismo de controle no internamento. O hospital, enquanto espaço de reclusão e disciplina, foi aos poucos tomando forma de instituição médica. As pessoas compositoras do seu cenário, tais como os médicos, foram legitimando os seus saberes.

Amarante (2007), em suas reflexões sobre as compreensões referentes à loucura, discute a condição de ser considerado um alienado. A pessoa assim seria aquele ser que está fora. Dessa forma abre-se espaço para subentender que seria alguém por fora da realidade, sem capacidade de gerir suas próprias vontades e desejos. Estaria assim, envolvida em outras razões, divergentes das estabelecidas por aqueles considerados

normais.

Mas, o que seria ser normal? Seria alguém com razão? São interrogações complexas e talvez de difíceis respostas. Pois as sociedades mudam e as pessoas também. Aceitam ou descartam as regras estabelecidas. Portanto, a ideia de normalidade é histórica e relacionada à configurações sociais, econômicas, políticas e religiosas. Essa condição envolve outras discussões que levem em consideração a cultura e a compreensão das pessoas sobre. “Ao longo de todos estes anos, o conceito de alienação mental contribuiu para produzir (...) uma atitude social de medo e discriminação para com as pessoas identificadas como tais” (AMARANTE, 2007 p: 31).

Houve mudanças na nomenclatura: louco, alienado, doente mental, ou mesmo pessoa em sofrimento psíquico. Mas são atributos ainda presentes principalmente em espaços onde o estigma ainda é bastante forte.

O que levou a sociedade mudar seus conceitos sobre a loucura? Seria a instauração de um novo espírito de benevolência, na tentativa de aproximar as pessoas internadas em hospitais psiquiátricos às suas famílias, transferindo a outras técnicas a confiança de cuidar, as quais suas práticas não recorrem aos grandes muros e nem a um único saber, mas, a espaços alternativos, onde seja possível a interdisciplinaridade,

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assim como se apresentam os novos serviços substitutivos tais como os CAPS, as ESF. Espaços merecedores de amplas discussões.