• Nenhum resultado encontrado

Intimidade é uma coisa, exposição é outra

4. Entendendo a fotografia autorrepresentativa

4.4 Intimidade é uma coisa, exposição é outra

Os experimentos de encontrar interlocutores afeitos às fotos autorrepresentativas e o desenvolvimento de conversas sobre fotografia e exposição foram interessantes para desmistificar para mim mesmo a relação entre intimidade, público e privado. Como na rede social online, todos têm acesso ao que é publicado, salvo às medidas restritivas, que ainda assim não são garantias concretas de um domínio pleno sobre a própria imagem. O fato pode ser percebido no depoimento de Andreia, em 20 de maio de 2013:

“Eu já tinha visto de tudo aqui no Facebook, mas um cara vir aqui no meu perfil (que por sinal, é todo fechado), pegar a única foto que ele consegue visualizar, que é a minha foto de perfil e compartilhar na linha de tempo dele...É um pouco demais para mim. Aff! Tem muita gente sem noção. Espero que a foto seja retirada do perfil dele, já fiz a solicitação a ele e ao Facebook. Era só o que me faltava mesmo!Eu tenho o maior cuidado em não me expor, aí vem um estranho e quer tirar onda?”

Fonte: Linha do tempo da interlocutora no Facebook168.

A interlocutora expõe um conflito ao acesso e domínio direto sobre sua imagem. Os comentários (12 ao todo, naquele momento) foram solidários. No primeiro o usuário informa como restringir as fotos do perfil “kkkkkkkkk chega a ser engraçado..mas dá

pra vc fechar as portas do perfil Tb, tem q fazer em cada uma, deixar somente vc ou somente amigos, daí as únicas publicas são as da capa que não tem como mudar.” O comentário seguinte reforça o primeiro e Andreia indica que vai bloquear as fotos do perfil mostrando-se preocupada com a situação: “só espero que ele retire a foto.”

Dessa maneira, cada foto postada acaba, de certa forma, alargando o conceito de público/privado para público/íntimo onde cada um tem alguma consciência da própria exposição a terceiros e isso é configurado como uma das premissas de postar fotos pessoais em uma rede social online. Entretanto foi perceptível que cada usuário procura delimitar, de alguma forma, seus campos de ação quanto à exposição de si. Para Igor, uma vez que atua como modelo, quanto mais publicidade, melhor e apesar de alegar não aceitar desconhecidos, o faz desde que tenha amigos em comum, mas vê co m precisão os limites de ação do outro, não hesitando em excluir um ‘amigo’ caso seja necessário:

“Quanto a isso, não me importo em quem visita ate desbloqueei alguns

álbuns justamente pra quem visita ver; é mais publicidade pra mim, e a amigos no face é bem restrito em relação, não aceito desconhecidos, antes vejo os amigos em comum, dependendo de quem tiver eu aceito. Quanto a

excluir sou mais critico ainda, um comentário, uma curta conversa que abuse da intimidade, é excluído na hora, não gosto de quem confunde educação com liberdade!”

Fiquei curioso quanto a esses limites da intimidade, uma vez que o próprio interlocutor já publicou diversas fotos sem camisa, sensuais e até fotos de roupas íntimas. Embora tenha consciência da exposição e certo frenesi que causa em sua rede de amigos ao publicar fotos mais íntimas de seu corpo, o modelo diferencia essa exposição – que considera como fruto de seu trabalho, ou seja, fotos profissionais de modelo – de uma exposição de sua vida íntima. Em nossa conversa ele se mostrou aborrecido pelo fato de algumas pessoas acharem que tem liberdade para julgá-lo:

“A relação de abuso de intimidade é principalmente ligado para as propostas sexuais, família também, mais esse é o ponto principal, não aceito ser tipo nem confundido como um garoto pago, e muito menos acompanhante, uma pessoa que faz tudo por dinheiro, ninguém tem essa intimidade da minha parte, e isso é o tipo da coisa que não aceito mesmo, sou bem aberto não uso mensagens privadas pois não tenho o que esconder de ninguém!”

Tainá acredita que a intimidade é algo existente no próprio cotidiano, mas reflete que o excesso de exposição cotidiana e faz com que a intimidade seja aos poucos revelada e novamente demarca uma intencionalidade no fato de postar um comentá rio ou uma foto sobre algo mais íntimo instiga a curiosidade alheia:

“Expor intimidade pra mim é postar TUDO oq acontece com vc, fui ali, aconteceu isso, aconteceu, aquilo, to feliz, to triste, to c diarréia, to de tpm, acho q isso são coisas que pessoas que convivem com vc e realmente tem intimidade acabam sabendo... mas hj em dida é a coisa mais comum no face as pessoas querer expor suas intimidades para chamar a atenção, para as pessoas perguntarem oq aconteceu. Eu mesma já fiz isso... CONFESSO! hahahahahah E tem muita repercussão!”

Outros interlocutores foram, em nossas conversas, definindo essa relação entre intimidade e exposição. Andreia, por exemplo, acredita que o fato de uma foto estar em um ambiente íntimo não denota a exposição de intimidade uma vez que esse ambiente é apenas um recorte de um espaço físico ao qual o outro não tem acesso real.

“Eu não acho que ao tirar uma foto no espelho do banheiro ou do quarto exponha minha intimidade, porque o foco da foto está em mim e não no ambiente. Ninguém sabe necessariamente que ali é minha casa, porque não exponho isso na publicação das fotos e poucas pessoas tem acesso à minha casa, só os amigos mais íntimos mesmo, então ninguém vai identificar se ali

é minha casa, a não ser que eu diga... enfim. Não acho que isso expõe a minha intimidade.”

Durante a conversa, Andreia ainda acrescenta: “Normalmente as fotos que posto tem a ver com momentos de minha vida, mas dificilmente vão expor algo realmente íntimo... Pelo menos não pra mim.” Para Andreia a intimidade é algo guardado com ela,

uma consideração pessoal que não é revelada: “Muita gente julga q me exponho por causa das fotos e se engana redondamente. As fotos não me expõem. Quem me vê na rua sabe quem eu sou? Não. Quem vê só as fotos também não. Ta guardado em mim!”

A mesma linha de pensamento é compartilhado por Raphaella:

“Não creio que o facebook possa ser uma porta larga pra minha intimidade. Eu posso ter postado "Saindo pro cinema" .. mas o intimo dessa frase é "com quem", "com qual intenção".. e isso só quem sabe é quem me conhece de verdade, quem eu ligo e conto ou conversa cmg diariamente pessoalmente. Há uma série de coisas ocultas em uma simples postagem e se você tem dúvidas sobre o que é ou quem é .. você certamente ñ tem intimidade cmg.”

Os interlocutores possuem clareza ao dissociarem, para si, o campo do íntimo, do privado e do público, mas parecem não perceber que ao outro, no processo de recepção, cabe a missão de evocar a criação, a composição, o preenchimento, a percepção de ‘coisas dadas ou ocultas’ referentes a cada um. É justamente nessa criação de leituras múltiplas pelo outro que se vai além dessa autoimagem lançada. As audiências constroem o que escapa aos autores das fotos autorrepresentativas.

Ao conversar com Sávio Benevides sobre a questão da intimidade este também se mostrou bem resolvido com as próprias exposições no seu perfil. Sempre postando fotos de si com desenvoltura diante do dispositivo fotográfico nos mais diversos momentos do dia – em particular com uma série de fotos quando sai para o trabalho. O interlocutor aponta que a intimidade maior estaria relacionada com a própria nudez: “Bom, pelo menos pra mim não há preocupação em expor o ambiente, acho que na

verdade com esse boom das redes sociais todos nós estamos expostos, mesmo que indiretamente. Intimidade pra mim é nudez explícita, o resto é um livro aberto”. Tal

fato também foi confirmado em uma conversa anterior na qual ele falo u que jamais postaria uma foto despido. Aryanne sintetiza a questão da exposição do corpo: “exposição de intimidade pra mim de verdade seria mostrar o corpo....tipo um biquine

mais decotado..uma posição que expõe mais as partes q costumamos esconder...” e relata que mesmo em fotos no ambiente familiar onde é possível idealizar como uma

pessoa vive “...seus gostos..sua organização”, a exposição do corpo teria mais

importância nesse sentido.

Figura 65 - “Pro dia nascer feliz!”. Em 31 de janeiro de 2013.

Fonte: Linha do tempo da interlocutora no Facebook.169

Na foto, Raphaella coloca um leão de pelúcia em uma posição central que gerou comentários aludindo ao imaginário corporal/sexual. No primeiro comentário uma amiga escreve: “Já está um rapazinho, os filhos crescem rápido né?!” e Raphaella responde de forma bem humorada: “mtttto rápido, é um leãaozão já.”

No início da pesquisa me deparei com um conflito: a dificuldade em separar o que é privado do que é íntimo nas redes sociais online. As conversas levaram a esclarecimentos de que a exposição de fotos de si, mesmo que em um ambiente interno, não configura como intimidade de modo evidente. Muitas vezes algo é privado no sentido de pertencer momentaneamente à pessoa, às ações do dia a dia e não necessariamente carregue um teor de intimidade. Para os interlocutores, a intimidade configura algo muito particular. Sibilia (2013, p. 67) esmiúça as transformações do ambiente privado, reservado ao poucos, para uma situação ampliada, até mesmo sob o ponto de vista arquitetônico, e de como esses ambientes eram estritos para a intimidade e para as escrituras de cartas e diários tradicionais que configuravam o gênero autobiográfico, os escritos íntimos. Para a autora (id; p.71) : “la esfera de la privacidad

sólo ganó consistência en la Europa de los siglos XVIII y XIX, como una repercusión del desarrollo de las sociedades industriales modernas y su modo de vida urbano.”

Ramilla comentou que o ato de editar, de recortar de escolher o que se quer postar, talvez seja uma ação desmedida gerando um dilúvio de informações pessoais que pode possibilitar ao outro uma ideia de construção enganada da intimidade alheia.

Figura 66 - Sávio: “Bom dia! Aquela preguiça dominical que não te deixa levantar da cama...”

Fonte: Linha do tempo do interlocutor no Facebook.170

No próximo capítulo a abordagem foca a relação entre o consumo material e simbólico a partir das interlocuções sobre as fotos autorrepresentativas, compartilhamentos e legendas.

Documentos relacionados