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3 CAPÍTULO 1 SUS: PARA ALÉM DOS PRINCIPIOS

3.1 Introdução

Este capítulo revisitou os chamados princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS) referenciados na Constituição Federal de 1988 e lei ordinária 8080/90, alcunhada por alguns de lei orgânica da saúde. Essências pelas quais não há sustentação ontológica, do ponto de vista da construção semiótica, para a existência do sistema de saúde brasileiro.

O SUS brasileiro é fruto de uma reflexão revolucionária no pensamento da construção social em saúde, iniciada em um período de grande efervescência política de luta pela redemocratização do País. Aliado ao desejo de práticas democráticas para o setor saúde, pode- se citar a evolução da comunicação e o intercâmbio entre pensadores brasileiros e de outros países, principalmente os de países com sistemas nacionais de saúde.

Desse modo, pode-se perfeitamente, também, conjecturar um SUS fruto de forçoso exilio à democracia imposto a alguns intelectuais do campo da saúde, materializado através do contato com os sistemas de cuidado em saúde de outros povos, que tiveram a oportunidade de trazer essa reflexão ao País e, através de um contagiante movimento solidário em direção do cuidado totalizante, viabilizaram a luta por uma política pública de saúde que, ao menos em fundamento, abarcaria a totalidade de pessoas que necessitassem de assistência em todo o território do Brasil.

Paim (2008, p.26), ao dissertar sobre a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) afirmou que

“em meados da década de 70”, surgiu “um movimento postulando a democratização da saúde,

justamente num período no qual novos sujeitos sociais emergiram nas lutas contra a ditadura”. Na visão de Costa (2014, p.810) foram de responsabilidade desse movimento a definição do

SUS e a proposta da “universalização da assistência à saúde” na Constituição promulgada em

1988.

Gohn (1995, p.118) quando tratou das Lutas Pela Redemocratização: 1975-82 não se

refere ao “Movimento da Reforma Sanitária” por esta denominação, mas quando se reporta ao “Movimento de Professores e Outros Profissionais da Área da Educação, da Saúde, e Outros

43 grande movimento popular de base, no âmbito dos bairros, principalmente nos postos de saúde”.

Essa observação, apesar de esparsa, evidencia que no setor saúde houve um grande movimento de luta, inserto dentro do desejo de redemocratização do País, que buscava a modificação do modelo assistencial vigente, pois este primava pela planificação centralizadora e concentração das ações de saúde. Esse movimento, que contava com a participação de “novos sujeitos sociais - estudantes, professores universitários, setores

populares e entidades de profissionais de saúde” – (PAIM, 2008, p.26) contrapôs-se ao

modelo de proteção social a saúde vigente.

Os novos sujeitos sociais emergentes desse processo de luta, não apenas por saúde, mas por democracia, entendiam que o modelo à época não atendia às necessidades da população brasileira em sua totalidade. Buscava-se a inclusão em dois sentidos: o primeiro era incluir o total da população brasileira sob a proteção estatal em relação ao processo de saúde-doença e o segundo a inclusão social dessa mesma população ao processo político.

Do epicentro dessa luta emergiu a criação do “Centro Brasileiro de Estudos de Saúde –

CEBES” (PAIM, 2008, p.27 Apud FLEURY, 1997), que na visão de Sophia e Teixeira (2014,

p.417) é definido como:

[...] uma entidade organizada, originalmente, por um grupo de alunos do I Curso de Especialização em Saúde Pública para Nível Local, da Universidade de São Paulo (USP). O curso destinava-se à formação de gestores para as unidades de saúde vinculadas à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, contudo, vários de seus egressos foram muito além, se tornando lideranças no campo da saúde pública brasileira. Os elementos agregadores de tal grupo eram o fato de irem de encontro à mercantilização da saúde e o de defenderem a responsabilidade do Estado na prestação dos serviços de saúde.

No advento da primeira assembleia do Centro, realizada em 1977, a linha de trabalho acordada entre os núcleos regionais teria em seu cerne a função de unificar as lutas

promovidas pelo “setor saúde por melhores condições de vida e saúde para o povo, àquelas pela democratização geral do país e pelas liberdades democráticas” (SOPHIA; TEIXEIRA,

2014, p. 419 Apud CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE, 1978, p.6).

Infere-se, que muito mais que as condições de saúde da população, o que incomodava àquelas pessoas participantes da assembleia era a falta de participação política nas decisões que incorriam em (des)assistência à saúde. As autoras nessa linha, ainda afirmam que:

44 A partir da dualidade entre os donos do capital e a força de trabalho, se reconhece que a busca das soluções para a melhoria das condições de saúde teria que passar pela transformação das relações sociais que determinam as condições de vida [...] Nesse entendimento, é sob tal bandeira que seriam organizadas as lutas no interior da sociedade civil que determinariam, por fim, o novo modelo da sociedade brasileira: a melhoria das condições de saúde só ocorreria pela participação que os diferentes grupos pudessem ter no processo de democratização (SOPHIA; TEIXEIRA, 2014, p.424 Apud MERHY, 1977).

A RSB, então, estaria no bojo do que Scherer-Warren (1987, p.49) denominou de novos movimentos sociais (NMS), “contestadores da realidade excludente gerada pelo modelo

capitalista que assumem uma participação mais igualitária e democrática” (QUARESMA,

2012, p.174). Nestes, exige-se para além de uma participação política de governo de maioria, equidade.

Quaresma (2012, p.174), quando se refere aos NMS, afirma que “esses movimentos sinalizam, em princípio, um distanciamento do caráter classista que se configurava nos

movimentos sindicais e operários em torno do mundo do trabalho.”. Ela passa a ver certa

homogeneização de interesses nesses novos movimentos. Isso não impede, em momento histórico posterior, que esses NMS se contraponham ao que ela denominou de “sistema

econômico e social vigente”.

A consequência previsível dessa ebulição de movimentos foi a Conquista da democracia em 1985, que “possibilitou a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde no ano

seguinte.”. Esse evento, que por suas consequências é substrato da grande maioria dos

trabalhos relativos ao SUS, reconheceu em seu relatório final “a saúde como um direito de

todos e dever do Estado”, e recomendou para o processo constituinte a “organização de um

Sistema Único de Saúde (SUS), descentralizado e democrático” (PAIM, 2008, p.27).

A ideia era a garantia da “participação social na formulação das políticas de saúde”, no “acompanhamento e avaliação” (Id., 2008, p.27) destas, ao nível mais próximo do usuário e,

que este pudesse opinar e intervir naquilo que lhe fosse mais prioritário, rompendo assim, com as políticas gestadas nos escritórios centrais e impostas nos mais diversos rincões do Brasil, sem a noção exata de que aqueles sujeitos fossem passíveis daquelas intervenções.

Os textos oficiais fundantes dessa política revolucionária, pois dali funda-se uma nova ordem, institucionalidade, em relação à assistência e o cuidado em saúde no País, estão basicamente contidos na Constituição Federal promulgada em 1988, lei federal nº 8080/90 e

45 lei federal 8142/90. Desses, advêm todos os fundamentos, princípios e diretrizes sob os quais é construído o SUS brasileiro.

Criou–se, assim, na Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988 – Título VIII, da Ordem Social; Capítulo II, da Seguridade Social; Seção II, da Saúde, artigos 196 a 200, o Sistema Único de Saúde (SUS)” [...] Como decorrência da Constituição Federal, elaborou–se no período de 1989–1990 a Lei n. 8.080, de setembro de 1990 – a chamada Lei Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, [...] uma intensa reação da sociedade civil organizada levou à Lei 8.142, de dezembro de 1990, que, no seu artigo 1º, regula a participação da comunidade no SUS, instituindo os Conselhos de Saúde e as Conferências de Saúde” (BRASIL, 2011a).

Há fortes evidências de que a construção do sistema brasileiro de saúde contou com a participação social, e a prova disso está na forte reação aos vetos de artigos da lei orgânica da saúde pelo então presidente Fernando Collor, que versavam sobre o assunto, e a promulgação no mesmo ano, pelo mesmo chefe do Estado brasileiro, pressionado pelo movimento popular,

da chamada “lei da participação social na saúde” (BRASIL, 1990b).

Entretanto, Costa (2014, p.810), quando aborda a importância da “comunidade

epistêmica” (COSTA, 2014 Apud HAAS, 1996) na formação da Reforma Sanitária, e ao

destacar o papel relevante da liderança dos chamados “sanitaristas” (COSTA, 2014 Apud

WEYLAND, 1996; ARRETCHE, 2010), nos brinda com uma visão diversa daquelas, as quais costumamos verificar nas publicações.

A formação, para esse autor, estaria no sentido de quem deu forma à reforma em questão. Para Costa, a gestação da reforma deu-se basicamente pelo trânsito desses atores sociais dentro, e a partir “do Aparelho do Estado e não da mobilização da sociedade civil ou do movimento social” (COSTA, 2014, p.810), como afirmou Paim (2008, p.173). Entre as premissas utilizadas para sustentar sua posição Costa (2014, p.812), admite que os

“argumentos dos sanitaristas na CF/1988 receberam o reforço favorável da elite política

democratizante, que defendia o resgate da “dívida social” brasileira.”.

Sokolowski (2012, p.17) em sua ‘Introdução a Fenomenologia’, quando nos expõe as

primeiras noções dessa tradição filosófica, afirma que “a doutrina nuclear em fenomenologia

é o ensinamento de que cada ato de consciência que nós realizamos, cada experiência que nós

temos é intencional: é essencialmente “consciência de”, ou uma “experiência de” algo, ou de outrem”. Não uma intenção prática, proposital, mas antes de tudo, implicação.

46 Dentro do processo democrático a maioria dos sujeitos: sanitaristas, políticos, movimentos sociais organizados e população leiga estavam implicados nesse processo de alguma forma. Diferiam em vontade prática (KANT, 1788, p.33), intencionalidade prática, propósitos, mas concertavam em estar implicados com o objeto da Reforma Sanitária do Brasil.

Mais que o resultado de um relatório, como no sistema inglês (BEVERIDGE, 1942), ou resultado de um movimento revolucionário como em Cuba, o sistema público de saúde brasileiro é fruto do pensamento intelectual aliado ao do movimento popular numa luta intensa por democratização e intersetorialidade ampla.

Compreender essa nuance é entender também o que nos fala Paim (2008, p.28), quando rebate com firmeza a ideia de que a reforma no setor saúde se traduza em reforma sanitária. Portanto, SUS é construção social e histórica da sociedade brasileira.