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CAPÍTULO 2 – A DÚIICA E A RACIONALIDADE DUIICAL

2.1. INTRODUÇÃO DO CAPÍTULO

Peste capítulo trataremos do tema musical em específico e da sua relação com a racionalidade, através de uma concepção de racionalidade hegeliana, expressa essencialmente através da Ideia e do Geist. Levaremos em consideração os aspectos principais da filosofia da arte e do lugar da arte na Enciclopédia. Dividiremos esta seção em três partes, a saber: (1) a música nas Lições sobre Filosofia da Arte de Hegel; (2) a música enquanto sistema tonal, figurada aqui na forma de racionalidade musical tonal; (3) a música dodecafônica de Schoenberg, assim como também a sua fase do atonalismo livre, como uma forma de ruptura com a racionalidade tonal, inaugurando o que chamaremos de racionalidade musical atonal. Apesar do termo que utilizamos no terceiro subcapítulo, compreendemos que a concepção harmônica de Schoenberg supera a antinomia tonal-atonal, estando ela em uma posição de

Aufhebung diante da antinomia que sua própria música gerou inicialmente224.

224 Apesar de Schoenberg não aprovar o uso do termo “atonal”, visto que toda música é, em certo sentido “tonal” (pois toda música trabalha com “tons”, isto é, sons, notas, etc.), podemos considerar sua música uma música que quebra com a sintaxe (vamos chamar informalmente assim) da tonalidade, no sentido de tonalidade enquanto um sistema musical que gira em torno de um centro tonal. Desta forma, optamos por usar o termo “racionalidade atonal” para demarcar a diferença desta forma de pensar musical com relação aos modelos modais, tonais e politonais. Poderíamos ficar, assim, com “pantonal”, como prefere o próprio Schoenberg (SCHOEPBERG, A. Harmonielehre. 3ª ed. Wien: Universal-Edition, 1922, pp. 487 – 488; MEPEZES, Flo. Apoteose de Ichoenberg: tratado sobre as entidades harmônicas. 2ª ed. Cotia: Ateliê, 2002, p. 97), também de acordo com as distinções de Fétis (Cf. ETTER, Brian K. From Classicism to Dodernism: Western Musical Culture and the Metaphysics of Order. Aldershot: Ashgate, 2001, pp. 26 – 27; HIPDRICHS, Gunnar. Die Autonomie des Klangs. Berlin : Suhrkamp, 2014. pp. 198 – 199), que trata da possibilidade de um omnitonalismo, de acordo também com o que defende Flo Menezes (Cf. MEPEZES, Flo. Apoteose de Ichoenberg: tratado sobre as entidades harmônicas. 2ª ed. Cotia: Ateliê, 2002, pp. 96 – 99 – apesar disto, Menezes permanece usando o termo “atonal” em seu livro, ainda que com aspas ou ressalvas). O termo omni, porém, designaria “todos” e, desta forma (seguindo também um raciocínio dialético hegeliano) seria o mesmo que nenhum. Uma vez que não há relação hierárquica (ao menos enquanto esquema pré-determinado) nem centro de gravitação na direcionalidade musical, não há também tom central. E, se usarmos aqui “tonalidade” não no sentido de som ou nota, mas no sentido de um centro de gravitação do discurso musical e de uma função de direcionamento do desenvolvimento musical e da compreensão, então parece-nos justificado que possamos compreender atonal como um termo válido, ao menos para nossa abordagem filosófica. Poderíamos, ainda, utilizar o termo “pós-tonal”.

O sistema tonal na música pode ser compreendido através de Hegel justamente como um modelo de relações do conjunto da música que tende ao retorno ao tom, em um movimento de consonância (ponto de partida, identidade abstrata), caminho para dissonâncias (diferença) e retorno reflexivo para o tom através da resolução (identidade reflexiva)225. Há, na nossa leitura, um esquema racional que regula certos modelos musicais, e que regulou a música ocidental desde o renascimento até hoje – com variações. Este modelo depende de articulações em diversos níveis, mas toma a ideia de (1) identidade de oitava; (2) divisão desta em doze partes – através da identificação de certos intervalos consonantes importantes; (3) modelo de afinação de igual temperamento; (4) um sistema de relações entre as notas de acordo com hierarquização destas notas em um sistema “circular” que centraliza seu movimento no centro tonal (tonalidade – sistema tonal)226.

Este modelo, como um todo, expressa um modo de racionalidade que se insere em um modelo mais geral de racionalidade. Dentro de seus níveis, é possível certa variação, que também acompanha (ou acaba, por si como modelo particular, gerando) a racionalidade geral.

Temos então o caso da música atonal como um modelo que se desenvolve dentro deste sistema geral de afinação, mas que questiona o nível (4). Cria-se, assim, um modelo de racionalidade musical que questiona o paradigma do sistema musical no nível (4), através de uma relação de negação determinada com ele. Esta mudança de paradigma pode servir de modelo para repensar o modelo de razão geral dominante na modernidade, que se impõe ou pelo fundamento geral ou pelo sistema circular-hierárquico centrado em um ponto. O modelo atonal horizontaliza as relações e, com isso, também fragmenta a totalidade das relações, dando autonomia maior às partes e separando-se da totalidade227.

Um sistema musical envolve muito mais do que sua mera formalização. Ele envolve sua realização (seguindo o preceito hegeliano). Assim, tratar de um sistema de pensamento ou de um sistema musical envolve tratar não apenas de um método ou de normas para realizar algo, mas envolve tratar da própria efetividade do tema abordado. Por isso a abordagem dos sistemas musicais, enquanto prática social humana (aqui entendido como manifestação do

225 Cf. A III, pp. 131 – 234; ESPIÑA, Y. La Musica en el Sistema Filosófico de Hegel. In: Anuario Filosófico, nº 29, 1996, pp. 53 – 69.

226 Cf. GROUT, D.; PALISCA, C. História da Dúsica Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007; CAPDÉ, R. História Universal da Música. 2 volumes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

227 Cf. LIAP, A. H. Do Cubismo Dusical: Uma investigação em estética comparada. 2008. 189 f. Tese (Doutorado em Filosofia) –Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008.

Geist absoluto), envolve não apenas tratar da lógica formal ou da sintaxe do discurso musical,

como se ela pudesse ser criada e realizada simplesmente a partir de construções lógico- matemáticas ou sintáticas. A realização (e assim, os próprios “sistemas”, ou “subsistemas”) envolve a mediação intersubjetiva, social ou, em outros termos, a relação com o Geist absoluto: é um processo onde não apenas a construção de normas para a composição musical, ou mesmo a realização de obras musicais (como exemplares de sistemas normativos ou meramente casuais) é suficiente, mas onde a recepção e a prática comum (ou seja, através da comunicação e do reconhecimento mútuo) tomam parte como elementos realizadores.

Por isso devemos compreender os elementos condicionantes envolvidos nesta relação: as normas de composição, assim como suas justificações, dependem de uma cadeia de expetativas e de leituras sobre como funciona a percepção e as expectativas perceptivas das pessoas em geral. O fato de isso diferir de época para época (e, assim, de que a própria percepção estética é uma composição histórica também, ainda que possamos pensar que não

somente) é expresso pela própria história da música. Compreender a história da música é

compreender o desenvolvimento da compreensão tanto perceptiva quanto lógico-racional da(s) sociedade(s) humanas. E o fato de que algo de uma determinada época fosse considerado impossível ou “errado” em uma época anterior mostra que apenas historicamente tomamos consciência da nossa capacidade de colocar e transpor nossos próprios limites (ou seja, justamente a concepção de liberdade e de “bom” infinito na filosofia de Hegel). Também o fato de que em épocas posteriores nós sejamos (ainda que isto dependa de estudo e de abertura cultural) capazes de compreender músicas e paradigmas do passado (ainda que de uma outra perspectiva), e que nossas concepções tendam a abarcar (em vez de excluir) estas concepções passadas, mostra que o Aufhebung é um processo histórico. Este processo não ocorre pela mera soma, nem é um processo puramente negativo de exclusão e recriação, mas é justamente este processo dialético-especulativo se manifestando no processo histórico e fenomenológico. E, nesse ponto, a música serve como bom exemplar para uma espécie de história de desenvolvimento da racionalidade humana – compreendendo aqui racionalidade de acordo com o modelo hegeliano, isto é, aquilo que envolve sensações, sentimentos, percepções, intuições, representações, conceitos e linguagem, assim como práticas e coordenação social de ações e expectativas.

Sendo assim, as expectativas diante do tempo (aqui diante do próprio movimento plástico do tempo expresso pelo som na música) depende do fator da configuração racional-

perceptiva de um determinado grupo histórico-social. A composição de teorias e mesmo de obras singulares tanto expressa uma configuração de compreensão e expectativas como também a modifica. Por isto o jogo entre manutenção e transformação é constante na arte: a obra artística é destituída de sentido quando totalmente desligada das formas de compreensão e intuição presentes historicamente, mas também é destituída de interesse quando apenas reproduz algo que já está plenamente instituído. A obra de arte é, portanto, imanentemente dialética.

E a configuração de sistemas de racionalidade musical, como o sistema tonal e o dodecafônico (e todas as suas variações, e assim como outros como o modal e outros possíveis), é dada tendo a expectativa racional-perceptiva como imanente à sua normatividade. E muito embora possam haver justificativas naturalistas para fenômenos musicais, como por exemplo a “atração” que a sensível (a sétima nota da escala jônica, ou do modo maior, que se encontra meio tom abaixo da tônica) sofre para se resolver na tônica, assim como a conjunção disto com a dissonância criando uma tensão que espera pela sua resolução em uma consonância forte (ou seja, na tríade da tônica), isto envolve já uma cadeia de expectativas, que está relacionada também com hábitos, que por sua vez são reforçados por práticas. A arte, no seu processo de singularizar as expectativas universais, ao mesmo tempo que busca se renovar criando surpresas diante destas expectativas (surpresas essas que não podem renegar a necessidade de satisfação de alguma expectativa), colabora com o desenvolvimento e ampliação da própria racionalidade. E é por isto que as próprias justificações teóricas do sistema tonal envolvem já justificações a partir de expectativas, e não se sustentam sem elas.

O que acontece no decorrer do século XIX, e que finalmente se concretiza no século XX, é a tomada de consciência geral (portanto, do Geist absoluto) sobre essa capacidade de moldar e transformar as expectativas, a compreensão e a percepção, ainda que progressivamente (ainda que esta progressão envolva certa negatividade, e não apenas positividade somatória). E isso envolve também uma ampliação da compreensão sobre a própria expectativa: isto é, através do processo de ampliação das modulações e das suspensões nas ampliações do modelo tonal, até a supressão da tonalidade no dodecafonismo, o que acontece é uma mudança de expectativa. A expectativa pela resolução aceita a sua demora, até o ponto que a reconciliação [Versöhnung] ou a resolução é aceita como não mais

necessária228.

É neste sentido que compreender a racionalidade musical, enquanto exemplar de uma racionalidade geral (a espelhando e também a influenciando) nos é útil para compreender as transformações históricas (e também a manifestação da liberdade) do Geist, ao mesmo tempo que isto pode nos trazer as questões das limitações e os acertos da racionalidade hegeliana.

Pa nossa abordagem sobre a música devemos deixar claro que tratamos como música apenas aquele som que pode ser separado da palavra. Portanto a parte poética ou declamada, que algumas vezes acompanha a música, é algo externo, somado a ela. Quando usamos os termos “razão tonal” e “razão atonal” enquanto formas de manifestação de uma razão musical, o que estamos colocando como elemento de expressão racional é apenas aquilo que se relaciona imanentemente à música e as concepções que a orientam (como noções de dissonância e consonância, formas de percepção e afetos estéticos).

A ampliação do uso do que se consideraria “dissonância” demonstraria, seguindo a concepção de Schoenberg, uma ampliação da audição, uma vez que o que é mais ou menos consonante (e, consequentemente, mais ou menos dissonante) depende da “distância” (ou, diríamos também, da intensidade) de uma nota com relação à fundamental na série harmônica. O fato de que notas mais “distantes” sejam compreendidas envolve uma ampliação da compreensão. De outro lado, também o caráter da composição lógica entra em cena: a disposição simultânea ou sucessiva das notas está sempre envolvida em um contexto, e assim sua compreensão depende das expectativas com relação à função e ao desenvolvimento destas relações intervalares dentro do desenvolvimento musical (ou sua direcionalidade).

Mas a compreensão da lógica deste desenvolvimento também depende da maneira como esses intervalos são compreendidos: se a lógica estiver baseada em um processo de tensão e relaxamento, e determinados intervalos forem esperados como “tensos” ou “relaxados” (o que também apenas se determina na relação), então ele estará compreendido de uma maneira diferente de um modelo onde estes intervalos sejam percebidos de outra maneira e também compreendidos em outra estrutura lógica. Isto envolve dizer que a expectativa envolve também um caráter de sistematização prévia dos elementos musicais: um framework musical opera na percepção (aquilo que podemos chamar de Weltanschauung, em um nível que extrapola a imanência musical, mas também um framework imanente à compreensão musical mesma). Mudanças e desafios trazidos por obras singulares diante deste framework também pode transformar este framework mesmo. E aí encontramos a relação dialética entre

pensar e intuir – levando em consideração, aqui, a representação [Vorstellung] enquanto um

mediador importante (novamente, de acordo com o pensamento de Hegel na Enciclopédia). A relação entre expectativa horizontal de resolução melódica entre a sensível e a tônica, somado com a perspectiva harmônica (em termos de ressonância simultânea) de resolução enquanto relação entre tensão dissonante e consonância fazem com que a sétima menor seja elemento fundamental no V grau harmônico, que possui, assim, a sensível (o sétimo grau da escala diatônica) do ponto de vista horizontal ou melódico e uma dissonância sincrônica no acorde (um intervalo de quinta diminuta entre a sétima menor e a terça maior), o que gera a tensão conjuntamente com a expectativa melódica de resolução por conta do semi- tom presente na escala (que é, junto com o semi-tom entre a terça maior e a quarta, a “exceção” na relação entre tons inteiros, o que o caracteriza e o faz uma “aproximação” da tônica).

Pão havia, na época de Hegel, o uso do termo “sistema tonal”, e a primeira aparição deste termo encontra-se no livro de história da harmonia de Fétis229. Até então, muito embora houvessem modelos de sistematização da harmonia e da afinação, é muito provável que o que se compreendesse por harmonia fosse simplesmente algo naturalizado, e que a consciência da diferença de modelos de harmonia na história e também entre diferentes culturas não fosse algo levado em consideração quando se tratava sobre música. Pão havia, portanto, uma visão historicista da harmonia, seja este historicismo progressista ou relativista. E muito embora Hegel seja um dos principais responsáveis pela consciência historicista quanto ao desenvolvimento racional e social, este não aplicou seu pensamento historicista à música em específico.

Pos próximos capítulos veremos, respectivamente: a música como arte singular em Hegel e a relação da sua concepção com o que chamamos aqui de razão tonal; o sistema tonal na música enquanto representante da razão musical tonal; e finalmente a música dodecafônica enquanto representante da razão musical atonal, enquanto um modelo primeiramente de ruptura e depois de Aufhebung do sistema tonal.

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