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CAPÍTULO 3 – A RAZÃO ATONAL NA HIITÓRIA DO GEIST E DA ARTE

3.2. LÓGICA, INFERENCIALIIDO E DÚIICA

O ponto que nos guia neste subcapítulo é o seguinte: como justificar que pode haver inferencialismo na música? Ora, uma vez que a arte é orientada pelo processo do aparecer

379 Cf. A I, p. 28; POCAI, Romano. Philosophie, Kunst und Doderne: Überlegungen mit Hegel und Adorno. Berlin: Xenomoi, 2014, p. 108.

sensível da Ideia, podemos dizer que há a estrutura toda da Ideia presente nesta manifestação sensível – uma vez, também, que esta manifestação sensível é uma atividade do Geist, e esta sua atividade também é de acordo com a estrutura da Ideia. Os processos inferenciais são parte integrante e essencial do processo da Ideia, devendo também serem incluídos no processo fenomenológico-histórico. Ainda, Hegel compreende que a razão toda está presente já na intuição, mas (é apercebida) de modo imediato. Como a arte se encontra no nível do

Geist absoluto, podemos dizer que no absoluto se encontra já a Ideia e, manifesta no modo da

arte, esta Ideia é como a estrutura ainda não mediada conceitualmente, mas mediada de acordo com os materiais (espaciais e temporais) sensíveis na intuição pela atividade do Geist. Temos aqui condições suficientes de conceber um inferencialismo na música, uma vez que a música é uma forma de arte.

Para além disto, uma vez que (como vimos acima) é permitido conceber um processo inferencial como parte da manifestação da razão na história, e como a arte mesma possui sua historicidade imanente, podemos conceber que a música também pode conter uma historicidade imanente (ainda que Hegel não trate deste aspecto em específico). Mesmo que a música esteja restrita à forma particular de arte romântica, esta forma particular contém também um processo histórico. Para além de Hegel, porém, podemos conceber que o processo histórico da arte não se reduz a elevar o Geist ao nível da sua autorrepresentação e revelação (ou seja, a religião), para depois chegar à filosofia, mas que este processo de relação entre intuição e conceito, entre arte e pensar, são constantes culturais e históricas que ocorrem no interior da configuração livre do Geist.

A abordagem da arte de Hegel, segundo Pocai380, é uma perspectiva que privilegia o conteúdo [Gehalt] diante da forma [Gestalt], ao contrário da perspectiva kantiana. Desta forma, podemos considerar a perspectiva hegeliana como voltada àquilo que a arte (desde a sua perspectiva geral, passando por suas escolas até as obras de arte singulares) expressa sensivelmente enquanto conteúdo (e como ela o faz) no decorrer da história, e que relação isto tem com uma espécie de forma social (ou transindividual) de consciência (que é basicamente o que compreendemos aqui por Geist absoluto). A obra de arte é uma manifestação sensível da Ideia, e enquanto tal, possui em si idealidade, ao mesmo tempo que deve estar singularizada, e, portanto, sensibilizada. Dito isto, segue-se que, muito embora a forma sensível em si não manifeste diretamente um conceito (apesar de manifestar alguma forma de

380 POCAI, Romano. Philosophie, Kunst und Doderne: Überlegungen mit Hegel und Adorno. Berlin: Xenomoi, 2014, p. 85.

significado, ou conteúdo), por ser um conteúdo ideal deve poder ser compreendida também

conceitualmente, isto é, além de experimentada como arte na forma da intuição, também deve poder ser pensada.

Hegel considera o pensar sob três perspectivas: sob a perspectiva da categorização e classificação, sob a perspectiva do raciocínio silogístico e sob a perspectiva da unidade deste movimento silogístico e das classificações em um conceito. O entendimento coloca a classificação e a categorização ao postular termos universais que se referem a objetos ou características, sendo que o conceito está relacionado com os particulares que ele denota. Mas neste nível mantém-se a diferença entre o objeto/característica/evento denotado e o conceito. Essa diferença apresenta-se como algo imediato, algo que não vai além desta mera relação entre um universal e um singular. A solução deste paradoxo encontra-se no movimento de julgar: através do movimento silogístico a separação entre os conceitos e seus diversos níveis (o universal, o particular e o singular) são mediados. A conclusão de um silogismo não é apenas uma consequência a ser vista isoladamente ou meramente implícita ao raciocínio, mas o conjunto do silogismo (ou dos silogismos) é uma estrutura de mediação que, ao mesmo tempo que envolve uma relação entre elementos que são postos como separados nas proposições, estão mediados de maneira lógica a compor uma unidade. O resultado destes silogismos, quando vistos sob a perspectiva da razão especulativa, é a unidade composta (termo que designa de maneira adequada o que Hegel chamou de “identidade da identidade e da diferença”). O conceito é visto como este conjunto ou estrutura que envolve o silogismo e suas inferências, explícitas ou implícitas381.

O inferencialismo em Hegel é manifesto também concretamente, isto é, através da sua concretização e manifestação fenomenológica. E isto envolve, portanto, um desenvolvimento histórico/intuitivo das inferências (ou seja, das relações entre os elementos até então tomados como não relacionados ou relacionados em uma relação exteriorizada, como no caso das classificações do entendimento).

Segundo Hegel:

O juízo fora tomado geralmente no sentido subjetivo, como uma operação e forma, que ocorre puramente em um pensar consciente de si. Essa diferença é, porém, no lógico, ainda não apresentado. O juízo é para ser tomado como completamente uni- 381 O juízo (Urteil): “As verdadeiras diferenças do conceito, o universal, particular e singular, constituem espécies de conceitos, e ainda somente na medida em que são mantidas fora umas das outras por uma reflexão exterior. A diferenciação e o determinar, imanentes do conceito, estão presentes no juízo, pois o julgar é o determinar do conceito.”Enz., §165. Grifos do autor. O juízo é o momento dialético, onde há a diferenciação daquilo que inicialmente era dado como imediato. O processo de conexão e mediação desta primeira cisão é dado pelo silogismo.

versal: todas as coisas são um juízo – isto é, elas são singulares, os quais contém em si uma universalidade ou natureza interna, ou um universal que é singularizado; a universalidade e a singularidade se diferenciam entre si, mas são da mesma forma idênticos382

.

O processo de desenvolvimento histórico da música poderia ser considerado, de acordo com esta ideia, como uma inferência histórica. Desta forma, a distinção entre consonância e dissonância é parte do processo de desenvolvimento histórico da música que mostra, ao fim, que esta distinção é imanente ao processo de inferência (e muda historicamente), mas que do ponto de vista da razão especulativa consonância e dissonância são aspectos arbitrariamente distinguidos de um mesmo elemento posto em autorrelação inferencial. Podemos fazer uma relação entre “cadência” (Schoenberg utiliza o termo Schlüss) e inferência (onde Schlüss também pode ser utilizado, como resultado da inferência ou como conclusão, denotando, de certa forma, a própria atividade de inferir). Vejamos este trecho de Schoenberg (trecho onde trata dos Harmoniefremde Töne):

O tratamento dessas notas-que-soam-juntas [Zusammenklänge] ocasionais nas obras de arte se diferenciam daquele dos acordes reconhecidos pelo que segue: os acordes reconhecidos são ou consonâncias ou dissonâncias. Enquanto consonâncias são eles completamente livres, sujeitos no máximo às necessidades dos passos fundamentais. Enquanto dissonância eles devem ser preparados e resolvidos, mas o desenvolvimento trouxe consigo a ampliação do tensionamento. Mas tome-se as condições de resolução efetivamente, e a não resolução mostra-se apenas aparente ou uma picanteria estilística, cuja premissa básica é a resolução. Então seria factual constatar a seguinte diferença: acordes dissonantes se resolvem, isto é, segue-se deles um caráter dissonante e a etapa necessária de um novo acorde correspondente; mas a construção harmônica ocasional mostra-se diferente através da resolução. A nota ‘ré’, por exemplo, posta no acorde dó-mi-sol, ocorre como suspensão ou nota de passagem, e se resolve; mas o acorde dó-mi-sol se mantém, não muda. Parece assim que o som dó-mi-sol é efetivamente o principal, o imutável, e a nota ré como um adendo não essencial, ocasional, mutável. Pode até ser, que na harmonia nenhum caso paralelo seja dado e, não obstante, isso não deva ainda provar que dó-mi-sol-ré não é um acorde. Eu penso: isso é apenas a formação histórica desse soar-junto-

das-notas, e isso comprova apenas que essas foram suas primeiras ocorrências e seus primeiros métodos de tratamento. E que se esse método de tratamento mudou

para casos singulares que se tornaram gerais e familiares, isso eu já mostrei várias vezes. Eu preciso apenas agora lembrar do caso, para o qual a regra diz que ao mesmo tempo que uma suspensão é resolvida, a harmonia também pode mudar, de uma forma que o novo acorde apanha o tom da resolução. E isso mostra-se como não sendo uma característica incondicional para o tratamento de um tom estranho à harmonia [Harmoniefremden Tons]383.

Hegel nos dá abertura para pensar um inferencialismo aplicado à música, uma vez que “em tudo há inferência [Schlüss]”. Vejamos o seguinte trecho:

O silogismo é o fundamento essencial de todo o verdadeiro; e a definição do absolu-

to é, de agora em diante, que ele é o silogismo, ou, exprimindo essa determinação

como proposição: ‘tudo é um silogismo’. Tudo é conceito, e seu ser-aí é a diferença dos momentos do conceito, de modo que a natureza universal de tudo, mediante a 382 Enz. §167. Grifos do autor.

particularidade, se confere realidade exterior, e assim, enquanto reflexão-sobre-si

negativa, se faz algo singular. Ou, inversamente, o efetivo é um singular, que pela particularidade se eleva à universalidade, e se faz idêntico a si mesmo. O efetivo é uno, mas é igualmente o dissociar-se dos momentos do conceito, e o silogismo é o percurso completo da mediação de seus momentos, pelos quais se põe como uno384

.

Embora a música seja uma manifestação artística, e esteja assim no nível da intuição, ela contém (como o próprio Hegel reconhece) estruturas lógicas nas relações harmônicas e rítmicas (que ele associa, apesar disto, com o entendimento e com o quantitativo). Podemos, porém, compreender que a ideia de encadeamentos ou de funcionalidade harmônica envolve um processo lógico, que se assemelha, guardadas suas devidas especificidades e em latu

sensu, com inferências. Se compreendermos, como acreditamos que é o caso de Hegel, que

“inferência” não se reduz ao silogismo formal, mas à estrutura imanente do pensamento nas próprias coisas e atividades, então podemos também crer que há a possibilidade de compreender conceitualmente aquilo que ainda não está no nível do conceito. Assim, a própria música pode ser vista do ponto de vista conceitual, e assim possui uma estrutura conceitual e inferencial (pois tudo é inferência, a mediação mesma que, enquanto mediação, unifica os elementos mediados em uma unidade imediata pós-mediação). O conceito, porém, encontra-se no nível do eterno, do além do tempo. Apesar disto, as manifestações fenomênicas que o compõe no seu percurso de efetividade se dão no tempo, e têm também, em si (e esta consciência também se torna para si quando chegamos na filosofia e, neste caso específico, na filosofia da arte), a estrutura conceitual, que é desvelada na música na forma intuitiva do tempo.

Podemos diferenciar, assim, entre inferências formais, que lidam com proposições ou com a mera forma do pensamento subjetivo, e inferências materiais, no sentido que estas inferências não apenas tem uma forma subjetiva do pensar, mas se realizam materialmente e, assim, através dos fenômenos. Desta forma, a inferência material ocorre também na história e em fenômenos como a música (que por sua vez também contém historicidade). Uma obra musical se desenvolve, assim, através de inferências musicais, que constituem a sua identidade enquanto obra, enquanto singularidade que, para ser compreendida, deve ter relação inferencial com o particular e com o universal. O processo histórico da música envolve o desenvolvimento e a exploração de diferentes formas de configuração e de inferência musical, e a mudança dos padrões de inferência envolve uma nova redelimitação do modelo musical – sendo esta redelimitação entendida enquanto expressão da liberdade do

Geist na efetivação, da forma mais ampla e coerente possível, da Ideia. As regras pressupostas

em certas práticas específicas (como a música) nunca dão conta plenamente das possibilidades abertas pela própria materialidade conceitual, que se irrompe para além dos limites estabelecidos. Eis aí o elemento da transcendência constante – o processo de pôr e superar o limite, o que é justamente o que Hegel, ao fim, chama de liberdade, tendo o

Aufhebung como sua ferramenta lógica – em um processo inferencial que, enquanto tal,

envolve a necessidade imanente.

Levando em consideração que a música tem como conteúdo os sentimentos [Empfindungen] (que é uma forma imediata e que se dá na forma da intuição), podemos avaliar a seguinte afirmação de Hegel:

Po sentimento [Empfindung] está presente a razão toda – o material completo do

Geist. A partir de nossa inteligência que sente se desenvolvem todas as nossas repre-

sentações, pensamentos e conceitos sobre a natureza externa, o jurídico, o ético, e o conteúdo da religião; como também inversamente, depois que tiveram sua plena ex- plicitação, se concentram na forma simples do sentimento. Por isso um antigo disse, com razão, que os homens formaram para si os seus deuses a partir de seus senti- mentos e paixões. Mas esse desenvolvimento do Geist que parte do sentimento cos- tuma entender-se como se a inteligência estivesse de todo vazia, e portanto recebesse todo o conteúdo de fora, como se ele fosse totalmente estranho. Isso é um erro. Com efeito, no que a inteligência parece acolher de fora, na verdade, não é outra coisa que o racional; por conseguinte, é idêntico ao Geist e imanente ao mesmo. A atividade do Geist, portanto, não tem outro fim que refutar, pela superação do aparente ser-

exterior-a-si-mesmo do objeto [Objekt] em si racional, a aparência de que o objeto

[Gegenstand] é algo de exterior ao Geist385.

Aqui pode-se perceber como, no pensamento hegeliano, há já uma estrutura racional, porém não desenrolada (sem mediação), na intuição. Sendo a arte a forma de autorrelação e autoexpressão intuitiva do Geist absoluto, podemos dizer que há na arte também uma estrutura racional que é apresentada de maneira não mediada. Através da história e da filosofia da arte, porém, é possível (defendemos aqui) trazer ao conceito (ao nível do pensar) esta racionalidade da arte, muito embora esta transposição seja, como o próprio nome já diz, uma transposição. Pão queremos dizer, com isso, nem que a intuição possa ser plenamente realizada pelo pensar, nem que a arte possa ser realizada pela filosofia – muito antes, os primeiros (a intuição e a arte) são condições fenomenológicas para os segundos (o pensar e a filosofia). Hegel nos dá abertura para tratarmos de uma intuição pós-mediação do pensar, quando trata da possibilidade de uma intuição intelectual, mas não como algo dado imediatamente, mas como um retorno do pensar à intuição após a mediação conceitual386:

385 Enz. §447, Zusatz. Grifos do autor.

386 Podemos ainda pensar a música como contendo uma espécie de pensamento sem conceito, como propõe Hindrichs na seguinte passagem: “Da mesma maneira, porém, existem duas tradições de teorias musicais que,

Mas a necessidade [Notwendigkeit] de sair da simples intuição [Anschauung] reside em que a inteligência atinge seu conceito através da cognição [Erkennen], e a intui- ção, ao contrário, não é ainda um conhecer cognoscitivo, pois como tal não atinge o

desenvolvimento imanente da substância do objeto [Gegenstand], mas antes se limita

ao apreender da substância não-desdobrada, ainda com o acessório do exterior e do

contingente. A intuição [Anschauung] é assim apenas o começo da cognição

[Erkennen].[…] A cognição completa pertence apenas ao puro pensar da razão con-

ceituante, e apenas aqueles que se elevaram a este pensar possuem uma intuição

completamente determinada e verdadeira; nele a intuição constitui simplesmente a forma genuína em que seu conhecimento, plenamente desenvolvido, de novo se con- centra. Pa intuição imediata eu tenho a coisa completa diante de mim; mas apenas na forma da simples intuição que a si retorna eu tenho diante do meu Geist a cogni- ção desdobrada por todos os lados da coisa posta enquanto uma totalidade em si

mesma articulada e sistemática387

.

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