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CAPÍTULO 1 – Introdução geral e objetivos

1.1 Introdução geral

Estima-se que nas próximas três décadas ocorra um aumento da procura de alimentos de origem animal (Tabela 1.1) motivado, em grande parte, pelo crescimento da população mundial, que se prevê poder atingir valores de 9,15 mil milhões em 2050, mas também pelo aumento do rendimento familiar e pela crescente urbanização (Thornton, 2010). A satisfação do aumento substancial na procura de alimentos terá, contudo, profundas implicações nos sistemas de produção animal nas próximas décadas. Historicamente, a resposta produtiva tem sido caracterizada por diferenças regionais nos sistemas de produção. Nos países industrializados, os sistemas de produção animal intensivos estão na origem da maioria da carne produzida, principalmente de aves e suínos, e tais sistemas têm sido implementados também nos países em desenvolvimento, particularmente na Ásia, de modo a satisfazer o aumento da procura. Deste modo, prevê-se que, pelo menos, 75% do aumento total da produção animal até 2030 seja realizado com base em sistemas de produção intensivos(Alexandratos and Bruinsma, 2012).

Globalmente, os aumentos na produtividade animal no passado recente foram conseguidos pela aplicação da ciência e tecnologia animal pelo que os desenvolvimentos científicos e tecnológicos nas áreas da genética, reprodução, nutrição e sanidade animal irão continuar a contribuir para aumentar o potencial de produção, proporcionando novos ganhos genéticos e de eficiência (Thornton, 2010). Contudo, a procura de produtos de origem animal, em particular nos países desenvolvidos, irá ser cada vez mais moderada por fatores socioeconómicos, tais como preocupações com a saúde e alterações nos valores socioculturais(Hocquette and Chatellier, 2011; Pethick et al., 2010; Thornton, 2010).

No que se refere à União Europeia, a capacidade de consumo de produtos de origem Tabela 1.1– Consumo anual per capita de carne (kg/pessoa/ano) em diversas regiões do globo nos períodos de 1969-1971, 1989-1991, 2005-2007 e estimativas para 2030 e 2050.

1969/71 1989/91 2005/07 2030 2050

Mundo 26 33 39 45 49

Países em desenvolvimento 11 18 28 36 42

Próximo Oriente e Norte de África 12,3 19 23,7 31,6 38,5

África subsaariana 9,9 9,4 10,1 12,4 16

América Latina e Caribe 33 42 61 74,6 84

Ásia Oriental 9,3 22,8 44,3 61,2 71,1

Sul da Ásia 3,9 4,6 4,4 9,6 18

Países desenvolvidos 63 80 80 87 91

animaltende para a saturação. Este fenómeno está ligado ao elevado grau de satisfação das necessidades primárias e ao fraco crescimento demográfico na maioria dos países europeus (Alexandratos and Bruinsma, 2012). Está também ligado igualmente à relação estabelecida, pelos consumidores, entre o consumo excessivo de proteínas de origem animal e o aumento da ingestão alimentar de gorduras, particularmente gorduras saturadas, e a possíveis relações com certas patologias frequentes nas sociedades industriais (cancro, distúrbios metabólicos, diabetes ou obesidade). Por fim, as sucessivas crises relacionadas com a segurança dos alimentos, quer em termos químicos quer biológicos (BSE, gripe aviária, dioxinas, nitrofuranos), fortemente mediatizadas, tornaram o consumidor mais atento relativamente à segurança dos alimentos de origem animal(Gondret and Hocquette, 2006). Deste modo, a garantia de qualidade sanitária, em primeiro lugar, mas também a garantia de homogeneidade dos produtos e a melhoria das suas qualidades organoléticas e dietéticas são fundamentais e necessárias para a manutenção do consumo de produtos de origem animal e, em particular, de carne (Pethick et al., 2010). Neste contexto, a incidência crescente de várias doenças crónicas, como as doenças cardiovasculares e o cancro, têm motivado uma extensa investigação sobre os alimentos que aumentam o seu risco, nomeadamente no que se refere às gorduras de origem animal (Barendse, 2014; Salter, 2013).

Apesar da sua riqueza nutricional, o consumo de carne tem sido considerado como promotor de doença (FAO, 2010; Mouratidou et al., 2014; Salter, 2013). Contudo, a comunidade científica tem contribuído para desmistificar esta imagem negativa sobre a saúde humana (Barendse, 2014; Binnie et al., 2014; Lawrence, 2013; McAfee et al., 2010; Pereira and Vicente, 2013; Wang et al., 2012) e tem ajudado a salientar o papel crucialda

carne na evolução humana, especialmente as carnes vermelhas 1(Pereira and Vicente,

2013). É hoje reconhecido o papel da carne ao longo da evolução humana no desenvolvimento do sistema gastrointestinal bem como das características crânio-dentárias e da postura ereta, bípede, contribuindo para a distinção do homem em relação a outros hominídeos. Na atualidade, a carne continua a fornecer nutrientes fundamentais e tem um papel vital na vida humana devido às suas proteínas de elevado valor biológico e aos níveis

de ferro, zinco, selénio e vitamina B12(Binnie et al., 2014; EFSA, 2012; Pereira and Vicente,

2013; Williams, 2007; Wyness et al., 2011). A maioria destes nutrientes estão presentes em quantidades adequadas numa dieta equilibrada, não existindo por isso deficiências. Contudo, sabe-se que determinados oligoelementos e vitaminas são deficientes em alguns

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– Carnes vermelhas – A definição de carne vermelha varia com o país. No presente trabalho, e de acordo com Williamson et al. (2005), considera-se carne vermelha toda a carne de bovino, ovino e suíno (fresca, picada ou congelada). Em Portugal, não existe uma definição oficial para carne vermelha, contudo, a tabela de composição dos alimentos portuguesa (INSA, 2015) diferencia dois grupos: (1) a carne e (2) a carne de criação e caça. O primeiro, que pode ser considerado o grupo das carnes vermelhas, inclui a carne de borrego, de cabrito, de carneiro, de porco, de vaca e de vitela; o segundo inclui a carne de codorniz, de coelho, de frango, de pato, de perdiz e de peru.

grupos populacionais [por exemplo, Vitamina B12(EFSA, 2015; O’Leary and Samman, 2010);

Vitamina D (Schmid and Walther, 2013); Ferro e Zinco (Lim et al., 2013; Wyness, 2015)]. Em relação a alguns destes micronutrientes, a carne é definida como uma “fonte de” ou como

“fonte rica em” de acordo com a regulamentação europeia(UE, 2010, 2006) 2. Na Tabela 1.2

apresentam-se algumas das alegações que legalmente podem ser utilizadas em diferentes tipos de carne.

O teor de gordura, fator de preocupação no que se refere ao consumo de carne, é variável dependendo da espécie animal, genótipo, alimentação, idade de abate, sistema de produção e localização anatómica da peça (Gondret and Hocquette, 2006; Webb and O’Neill, 2008). Peças magras, como o lombo de porco ou de novilho, não diferem de forma significativa do peito de frango ou peru sem pele, pelo que a sua riqueza nutricional justifica a sua inclusão numa dieta equilibrada (McNeill, 2014; Pereira and Vicente, 2013). Para além disso, é importante não esquecer que as matérias gordas adicionadas durante a confeção dos alimentos contribuem, em muito, para o teor em lípidos das carnes cozinhadas (Gondret and Hocquette, 2006). Assim, um conjunto crescente de evidências apontam para a necessidade de mudança de paradigma no que se refere às recomendações sobre o consumo de carnes vermelhas (Binnie et al., 2014) como forma de reduzir o risco de cancro, obesidade e síndrome metabólico (Biesalski, 2005). Remover totalmente a carne da dieta pode aumentar o risco de várias deficiências nutricionais e condicionar a saúde humana e o balanço nutricional (Pereira and Vicente, 2013; Williamson et al., 2005).

Nas últimas décadas as recomendações nutricionais têm aconselhado evitar o consumo de

2– De acordo com a legislação europeia um alimento pode ser definido como “fonte de” se contiver ≥15% da dose diária

recomendada (DDR) de uma determinada vitamina ou mineral por 100 g ou como “fonte rica em” se contiver ≥30% da DDR(UE, 2010, 2006).

Tabela 1.2– Classificação das carnes vermelhas de acordo com as alegações nutricionais prevista na legislação europeia.

Nutriente DDR* Novilho Vitela Borrego Porco

Tiamina – vitamina B1 (mg) 1,1 - - - Fonte rica

Niacina – vitamina B3 (mg) 16 Fonte rica Fonte rica Fonte rica Fonte rica

Cobalamina – vitamina B12 (µg) 2,5 Fonte rica Fonte rica Fonte rica Fonte rica

Vitamina D (µg) 5 - Fonte - -

Ferro (mg) 14 Fonte - - -

Zinco (mg) 10 Fonte rica Fonte Fonte rica Fonte

Selénio (mg) 55 - - - Fonte

Potássio (mg) 2000 Fonte Fonte Fonte Fonte

gorduras saturadas de modo a prevenir doenças cardiovasculares (Barendse, 2014; Lawrence, 2013; Salter, 2013) levando a uma significativa diminuição do consumo de produtos de origem animal, em particular de carne, mesmo quando os dados mais recentes apontam para um consumo dentro dos limites nutricionais estabelecidos nos países desenvolvidos (Binnie et al., 2014; Wyness et al., 2011). Contudo, as recomendações nutricionais mais recentes (Tabela 1.3) salientam a importância de manter uma dieta equilibrada (McNeill, 2014) como forma de reduzir a incidência de doenças como a obesidade, diabetes tipo-2, cancro e doenças cardiovasculares (EFSA, 2010; FAO, 2010).

Em muitos países desenvolvidos, o consumo de ácidos gordos saturados (SFA) está associado com o consumo de produtos derivados dos ruminantes (carne e leite) o que tem contribuído para uma imagem negativa destes produtos (McAfee et al., 2010; Valsta et al., 2005). Os produtos dos ruminantes tipicamente contêm proporções relativamente elevadas de SFA (devido ao processo de bioidrogenação que ocorre no rúmen destes animais) bem como ácidos gordos monoinsaturados (MUFA) e pequenas quantidades de ácidos gordos polinsaturados (PUFA). Os SFA 12:0, 14:0 e 16:0, que representam a maior parte dos SFA presentes em muitos dos produtos dos ruminantes, têm sido implicados no aumento do colesterol total e do colesterol associado às LDL (Salter, 2013; Williams, 2000). Contudo, segundoMensink et al. (2003) o rácio colesterol total:colesterol associado às HDL (CT:C-HDL) será um marcador mais específico do risco de doença coronária. Segundo o mesmo autor, por exemplo, o 16:0, um dos principais SFA presente na carne, nomeadamente na de animais ruminantes, aumenta simultaneamente o colesterol associado Tabela 1.3– Recomendações nutricionais relativas à ingestão total de gorduras e de ácidos gordos em humanos adultos.

Organização

FAO* EFSA**

Total de lípidos 20-35% E 20-35% E

SFA <10% E O mais baixo possível

AG trans <1% E O mais baixo possível

MUFA Por diferença Sem valor de referência

PUFA 6-11% E Sem valor de referência

n-3 PUFA 0,5-2% E Sem valor de referência

18:3n-3 >0,5% E 0,5% E

EPA+DHA 0,250 a 2g/d 250 mg/d

n-6 PUFA 2,5-9% E 18:2n-6 = 4% E

às LDL (C-LDL) e às HDL (C-HDL), pelo que que tem pouco efeito no rácio CT:C-HDL. A este respeito o 18:0, presente nos produtos edíveis de animais ruminantes em resultado do processo de BH ruminal, apresenta um efeito favorável.

O c9-18:1 é o principal MUFA presente na carne de animais ruminantes, sendo que os restantes MUFA se apresentam, geralmente, sob a forma de isómeros t-18:1. O 18:2n-6 e o 18:3n-3 são os principais PUFA presentes na carne de ruminantes, conjuntamente com proporções significativas dos seus produtos de dessaturação e elongação,ácido eicosapentaenóico (EPA; 20:5n−3), ácido docosahexaenóico (DHA; 22:6n−3) e ácido araquidónico (20:4n-6) (Schmid, 2011).

De um modo geral, os PUFA e os MUFA são vistos como benéficos para a saúde humana (Mensink et al., 2003; Salter, 2013), existindo evidências, em modelos animais e em culturas de células, que suportam o efeito benéfico do t11-18:1 (frequentemente o principal AG trans presente na carne de animais ruminantes) (Lim et al., 2014), embora relativamente a este último o assunto seja controverso e permaneça em debate (Aldai et al., 2013; Mapiye et al., 2015; McAfee et al., 2010). Para além disso, a gordura presente nos produtos dos ruminantes é também uma importante fonte de isómeros conjugados do ácido linoleico (CLA) (Bessa et al., 2015; Mapiye et al., 2015) em relação aos quais têm sido identificadas, em modelos biológicos, diversas propriedades potencialmente benéficas para a saúde humana (Crumb, 2011; Park, 2009; Singh and Sachan, 2011). Neste contexto, a investigação tem procurado desenvolver estratégias que permitam alterar a composição em AG dos produtos de origem animal, diminuindo o seu teor em SFA e aumentando o teor em c9-18:1, n-3 PUFA e CLA, compatibilizando-os com as atuais recomendações nutricionais para humanos (Scollan et al., 2014; Shingfield et al., 2013).

É também um objetivo importante evitar o aumento dos isómeros trans, em particular o t10-18:1 (frequentemente o principal isómero t-18:1 presente com dietas à base de alimento concentrado, ricas em amido),que ocorre quando se procura reduzir o teor em SFA e aumentar os PUFA ou os CLA nos produtos dos ruminantes. O consumo de AG trans tem sido associado com o aumento das concentrações plasmáticas de colesterol total e colesterol associados às LDL. Contudo, existem indícios que sugerem que os isómeros t9-18:1 e t10-18:1 são mais potentes no aumento das concentrações plasmáticas de colesterol associado às LDL, do que o t11-18:1. Será, por isso, também necessário esclarecer os efeitos específicos de cada isómero e de que forma variam entre alimentos (Aldai et al., 2013; Mapiye et al., 2015) de modo a definir estratégias que permitam produzir alimentos de origem animal com um perfil adequado de AG. Para além disso, ao contrário dos SFA, os AG trans quando substituem os c-UFA da dieta também diminuem o colesterol associados às HDL(Filip and Vidrih, 2012; Williams, 2000). Em resposta às preocupações com os impactos do consumo de AG trans no risco de doenças cardiovasculares, vários

países implementaram (Áustria, Canadá, Dinamarca, EUA, Hungria, Islândia, Noruega, Suíça) ou planeiam introduzir legislação que contemple este risco para a saúde pública (Filip and Vidrih, 2012; Mouratidou et al., 2014).

No que se refere à modificação do teor e composição em AG da carne de ruminantes, esta tem sido conseguida por manipulação da alimentação dos animais e, em menor extensão, pela genética (Vahmani et al., 2015). Diversas revisões sobre o impacto da nutrição, incluindo o papel do rúmen, ao nível do metabolismo lipídico têm sido publicadas nos últimos anos (por exemplo, (Bessa et al., 2015, 2000; Doreau et al., 2012; Palmquist et al., 2005; Shingfield et al., 2013; Sinclair, 2007).