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Os quadros psiquiátricos puerperais foram registrados pela primeira vez por Hipócrates no século V a.C.; além de descrevê-los, Hipócrates [citado por Cox - 1988] ainda especulou sobre o papel patogenético da influência do leite e dos lóquios retidos sobre o cérebro. Ao longo dos sc.:culos, os observadores seguiram esta linha de raciocínio. Trótula [século XI d.C.] [ citada por Steiner - 1990], por exemplo, descreveu em seu

livro "As Doenças das Mulheres" a tristeza inexplicável experimentada por muitas parturientes e a atribuiu

ao excesso de umidade uterina que, ao atingir os olhos, os levaria a derramar lágrimas involuntárias. As primeiras observações clínicas conliáveis foram feitas no século XIX por 2 psiquiatras franceses, Esquirol e Marcé. O primeiro descreveu sua experiência em Salpêtriere com 92 mulheres internadas entre

1811 e 1814 com quadros psicóticos do pós-parto [Esquirol - 1976]. Marcé [ citado por Hamilton - 1989]

publicou em 1858, a partir de sua cxrcriência com 3 1 O pacientes acometidas de psicoses puerpcrais e internadas no hospital de Jv,y-.rnr Seine, o "Traité de la folie des fe111mes enceintes, des nouve/les acchouchées et des nourrices", descrevendo as peculiaridades clínicas destes quadros. Para Marcé, tais

transtornos seriam causados por uma "simpatia mórbida" entre os órgãos pélvicos e a mente, teoria esta que

antecipou as atuais "hipóteses psicoendocrinológicas". Estes trabalhos tiveram vasta repercussão e a existência de uma psicose puerperal autônoma tornou-se dogma inquestionável para a comunidade médica da segunda metade do século XIX. De certa forma, a descrição de uma insanidade puerperal ia de encontro

a expectativas sociais mais amplas. Era crença corrente que a civilização havia enfraquecido a mulher; enquanto uma selvagem podia parir sem grandes dificuldades ou complicações e retomar suas ocupações habituais quase que imediatamente, a mulher civilizada não podia dar à luz desassistida, e mesmo assim, estava exposta a complicações f1sicas e mentais [Loudon - 1988].

O advento do paradigma kracpcliniano, dividindo o campo das psicoses em 2 domínios, o da de111e111ia praecox e o da insanidade maníaco-depressiva, condenou a loucura puerperal a um limbo do qual alguns pesquisadores ainda hoje se esforçam para libertá-la. Como vimos acima, Kraepelin [1907], na segunda edição do seu tratado, negou autonomia nosológica à mania puerperal, preferindo .vinculá-la à insanidade 111a11iaco-dcprcssiv,1. <.'urios;1111c11lc, 11a scxla cdit,:,lo, Kracpcli11 1 (IJl)()j reviu a sua posi\·;\o e dividiu os transtornos psicóticos puerperais segundo fossem causados ou apenas precipitados pelo parto. Entre os apenas precipitados, estariam as manias puerperais. Os quadros puerperais induzidos pelo parto seriam as psicoses de exaustão, as psicoses tóxicas e "os estados ele excitação delirante violentos e súbitos" que, segundo Kraepelin [v. 1, p. 46]:

" ... podem se manifestar durante o parto e são de grande impo11ância do ponto de vista forense por estarem associados à grande tendência para a violência; eles geralmente duram apenas algumas horas. A dor, a perda de sangue e as alterações circulatórias rápidas, por um lado, e as influências psíquicas do parto e, possivelmente, de distúrbios deste processo, por outro, exercem um papel garantido neste processo. [Kraepelin observou] uma parturiente se atirar de uma janela e cair através do telhado de vidro ele uma estufa. Outras mulheres esganam seus filhos ou as deixam morrer desassistidas, sem alimentá-las ou delas cuidar. Em vista dos seus quadros clínicos, parece provável que estes sejam estados semiconscientes epilépticos ou histéricos que podem ser liberados pelas emoções violentas específicas do parto mesmo em pessoas que mostravam sintomas leves de predisposição patológica e que por isto mesmo passavam

despercebidos" [tradução do autor].

Esta descrição lembra muito as de Marcé; se Kraepelin pessoahnenle se curvou às concepções de seu antecessor, não foi este, contudo, o legado que ele nos deixou. Para Bicu ler [ 1924, p 159 (tradução do autor)], "a verdadeira psicose puerperal não existe, nem no sentido amplo, nem no sentido próprio da

palavra". Segundo sua experiência, a ocorrência de quadros psicóticos puerperais corresponderia a um surto esquizofrênico ou, mais raramente, a um "ataque maníaco-depressivo".

As classificações oficiais refletem a hegemonia das conccpçõt!s kraepelinianas. A VJIIº Revisão da Classificação Internacional das Doenças [CID V 11 1] [ 1965], recomendava qut: os quadros psiquiátricos fossem classificados com base nos sintomas apresentados, ficando a denominação de "psicose puerperal" reservada aos quadros psicóticos do pós-parto que não se enquadrassem em nenhuma categoria diagnóstica. Na IXº Revisão da Classificação Internacional das Doenças de 1975 [Cill IX] [ 1980], os quadros

psiquiátricos do pós-parto foram listados apenas no capítulo XI das "Complicações Jja Gravidez, do Paito e do Puerpério"; o termo "psicose puerperal" não foi empregado.

A 1 10 Revisão da Classificação da Associação Americana de Psiquiatria [DSM-11] [ 1968] apresentava concepção semelhante à da CID-VIII, atribuindo ao diagnóstico "Distúrbio do pós-parto" o papel de LUna categoria residual que abrigasse quadros puerperais irredutíveis às categorias diagnósticas clássicas. Na terceira revisão desta classificação [DSM-HI - 1980], os quadros psicóticos do pós-parto estão abrigados no

capítulo referente aos "Transtornos Psicóticos não classificados em outra parte".

A questão classificatória tornou-se mais complexa quando, na década de 70, surgiram as primeiras reforências consistentes a respeito dos transtornos psiquiátricos "menores" do pós-parto. Até então, a maior parte dos trabalhos científicos baseavam-se nos registros de internações psiquiátricas, incorrendo num viés que determinava a identificação quase que exclusiva dos casos mais graves. Embora não exijam hospitalização, os transtornos "menores" são muito mais freqüentes e podem causar prejuízos significativos

não só à mãe como também ao bebê [Mello - 1987]. A existência autônoma destes transtornos tampouco é reconhecida pelas classificações oficiais.

Alguns pesquisadores como Brockington [Brockington e Cox-Roper - 1988], Hamilton [ 1989] e lnwood [ 1989] têm pleiteado que os responsáveis pelos sistemas nosográficos oficiais restabeleçam a categoria dos transtornos psiquiátricos do pós-parto, senão como entidades de existência comprovada, ao menos como hipótese de trabalho. Sua reivindicação não foi atendida pelos criadores da ClD-X e na DSM-IV. Na primeira, o manual da Organização Mundial de Saúde [W.1-1.0. - 1992] recomenda que a categoria

"transtornos mentais e comportamentais associados com o puerpério" [F53) seja empregada somente para quadros mentais que se manifestem nas primeiras 6 semanas do puerpério e que não satisfaçam os critérios

para outros transtornos descritos no manual. Os autores justificam sua posição afirmando que a maior parte dos especialistas não crêem na necessidade da existência de uma categoria específica para os transtornos do pós-parto; já os profissionais que não compartilham deste ponto de vista têm a opção de recorrer a esta categoria residual. O manual da DSM-!V [ 1994) não faz referência aos transtornos psiquiátricos do pós­ parto; os quadros psicóticos do pós-parto que não possam nem ser classificados entre as psicoses funcionais nem ser atribuídos a condições médicas em geral, devem ser incluídos entre os "transtornos psicóticos não especificados" [Kaplan e cols. - 1994].

É contudo impossível sistematizar o conhecimento atual acerca destes transtornos sem recorrer aos esquemas classificatórios sugeridos por alguns destes pesquisadores. Jnwood [ 1989), por exemplo, recomendou que os diversos transtornos psiquiátricos do pós-parto fossem reunidos numa única síndrome, subdividida em 3 formas de apresentação:

Tipo 1: Psicose do pós-parto [também denominada de psicose puerpcral (denominação clássica) ou psicose reativa breve (segundo a DSM-II IR)].

Tipo I I : Transtorno de ajustamento com humor depressivo [também denominado de blue .�yndrome, tristeza da maternidade, síndrome da maternidade ou disforia do pós-parto].

Tipo Ili: Transtorno do humor maior ligado ao pós-parto [também referido como depressão maior, neurose do pós-parto e reação neurótica].

Esta classificação busca em última instância reunificar os quadros que a DSM-HIR implodiu e dispersou em categorias distintas.

V. 2. Etiologia dos transtornos psiquiátricos do pós-parto

Durante o puerpério, a mulher se vê exposta a profundas modificações biológicas, psicológicas e sociais que podem contribuir para ou mesmo determinar a ocorrência de transtornos psiquiátricos. Entre os fatores biológicos potencialmente implicados, os mais estudados são os de natureza endócrina. A alteração hormonal mais significativa que ocorre no puerpério é a queda brusca dos níveis de estrogênios e progesterona e a conseqüente elevação do nível de prolactina. Este fenômeno se dá habitualmente no quinto dia de puerpério, e coincide com o pico de ocorrência dos quadros psicóticos puerperais. Todavia, a raridade destes últimos impede a realização de estudos prospectivos. Ademais, as tentativas de tratamento de quadros depressivos puerperais com reposição hormonal produziram resultados contraditórios. Outros hormônios, como os corticosteróides, androgênios, T3, T4, TSH, f3-endorfinas, vasopressina, ocitocina e

hormônio do crescimento tiveram seus papéis no puerpério estudados sem que disso resultassem progressos significativos no conhecimento da etiopatogenia destes transtornos [ ver George e Sandler ( 1988) para uma revisão aprofundada do tema].

Entre os correlatos psicológicos dos transtornos psiquiátricos do pós-parto, os mais estudados são o estresse psíquico causado pelo parto, a estrutura obsessivo-compulsiva da personalidade, uma história de separação precoce dos pais, uma atitude ambivalente ou negativa diante da gravidez, a precariedade do relacionamento conjugal e a ocorrência de estresses emocionais recentes [Loreto - 1987]. Variáveis como baixo status socioeconómico, pobreza e ilegitimidade da prole também têm sido correlacionadas a ocorrência destes distúrbios [lnwood - 1989].

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