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Cidade de For t aleza :

1. Introdução: Não é possível tentar o pneumotórax?

“Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire. - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Pneumotórax, Manuel Bandeira

Ao curso do ano passado (2013) vieram a tona na internet e nas redes sociais dois vídeos de caráter muito semelhante. O primeiro, uma produção brasileira independente intitulada “Ainda dá tempo”, lançava a seguinte pergunta a um grupo

de pais: “como você imagina o futuro do mundo?”. As respostas dos entrevistados anunciavam uma visão essencialmente pessimista de futuro e uma inclinação à decadência das instituições postas, entre outros motivos, porque não se enxergava um amadurecimento político quanto à escolha de representantes; porque o horizonte próximo anunciava o acirramento de mais conflitos e guerras; ou porque se percebia uma deterioração das condições de vida num nível de dano impingido ao planeta que se interpretava como irreversível. Em seguida, os entrevistados são convidados a ouvir os relatos de seus filhos sobre esse mesmo futuro e comovem-se ao sobrepor as projeções das crianças (pretensos ginasta, artista, estilista, professora, skatista, veterinária e médica) ao cenário que haviam desenhado no momento anterior. O filme arremata, pondo-nos em xeque sobre como se daria a realização daqueles sonhos se não houvesse quem se dispusesse a acreditar e apostar na possibilidade de um mundo melhor.

O segundo vídeo trata-se de uma produção bancada pelo grupo anglo-holandês Unilever, uma corporação internacional instalada no Brasil há mais de 80 anos, fabricante de produtos de higiene pessoal e limpeza, alimentos e sorvetes. Em “Por

que trazer uma criança a este mundo?” casais em período pré-natal, tomados pelas

angústias e dúvidas associadas à responsabilidade de se ter um filho, são convidados a assistir uma sequência de imagens de conflitos armados, trabalho escravo, cenários de poluição e desastres naturais. Em seguida, a pergunta que dá nome ao filme é lançada e surge um narrador que diz trazer algo de que aqueles pais precisavam saber. Na fala aveludada do narrador, uma mensagem de acalanto: soluções para parte desses problemas já são palpáveis e reais. Diz que tecnologias revolucionárias já são capazes de produzir alimento e água potável para centenas de milhões de pessoas – enquanto ri-se da chamada Guerra da Água – e que doenças que hoje afetam milhões de crianças logo serão prevenidas com simples produtos do dia-a-dia. O narrador nos tranquiliza e também aos pais de que essas crianças terão corações mais saudáveis e que provavelmente gozarão de maior longevidade, mas que, seguramente, quando a vida lhes trouxer um dessabor de desamor – o que, garante, há de acontecer – para eles também há de haver o colo frondoso de uma árvore onde possam prantear seus pensamentos.

É curioso como o vídeo da Unilever quase soa como uma campanha para o incremento das taxas de natalidade, mas, evitando ingressar na polêmica demográfica,

para se desfazer o desencantamento do mundo. Parece difícil acreditar que o

século 20 tenha passado, para quem o tenha bem vivido e para alguém que agora o contemple, com um sentido menos que, digamos, traumático. O compositor argentino Enrique Discépolo não teve os nervos de pagar pra ver o desenrolar da trama e, em meio à chamada Década Infame, num país sedado pela corrupção generalizada, em 1934, condenou sem dó suas décadas seguintes: “Siglo veinte, cambalache, /

Problematico y febril / El que no llora, no mama, / Y el que no afana es un gil. / Dale nomás, dale que vá, / Que allá en el horno nos vamo a encontrar”. Como o autor do

tango, pergunto-me, cético, se a história não se presta a reservar a cada nova geração um bom punhado de fatos e fardos que os formalmente apresente à desesperança.

Em todo caso, o debute do século 21, agrilhoado por problemas não equacionados no século anterior dá sentido ao apelo e à sensibilização ensaiados nos dois vídeos. Esse estado de desencantamento do mundo diz respeito, não diretamente a uma decepção da humanidade para com os percursos civilizatórios, mas a um processo de secularização da racionalidade por que passa o sujeito moderno ao longo do século 19 e princípio do 20, ainda que o desvencilhar dos mitos tradicionais o tenha posto a mercê de novos mitos (BENEVIDES, 2009, p. 147). Entre os novos mitos, está a crença na salvação pelo progresso científico-tecnológico e é interessante confrontar as narrativas dos vídeos e ver que o que fica em aberto para reflexão na produção independente, faz-se questão de amarrar na produção corporativa (vale dizer, associada a um projeto de responsabilidade socioambiental do grupo, o Project

Sunlight): se há resposta, está na tecnologia.

Neste artigo, faremos um esforço de localização de uma parcela estratégica desses problemas no cenário urbano brasileiro ao caracterizarmos o estado da arte do município de Fortaleza (CE, Brasil), com foco sobre os desrespeitos flagrantes às vocações ambientais do sítio urbano e a direitos historicamente negados a uma massa de cidadãos invisibilizados. A compreensão dos processos formadores de uma estrutura urbana marcada por fortes traços acirradores de vulnerabilidades sociais e de fragilidades ambientais deverão revelar elos fundamentais de difícil percepção que frequentemente minam as opções de desenvolvimento para as cidades, posicionando- as dicotomicamente ora como uma questão de urgência em minimização de riscos (agenda negativa) ora como um debate seletivo sobre qualidade de vida, visando

um leque de futuros seguros e desejáveis possíveis (agenda positiva), mas não necessariamente justos. Com isso, acreditamos que seremos capazes de dirimir, com uma postura consequente, esta frágil polarização entre otimistas e pessimistas, pessoas de fé e catastrofistas. Afinal, dentre outros legados, o século 20 tornou ou, pelo menos, forneceu elementos mais que suficientes para tornar em muitos sentidos constrangedor o posicionamento público de caráter maniqueísta, mutilador do pensamento complexo.