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Introdução

No documento SUELMA DE SOUZA MORAES (páginas 90-92)

O presente trabalho recorre à concepção da memória137 para analisar o movimento da alma no discurso da interioridade à consciência desenvolvido na narrativa do livro X das Confissões. Utiliza a narração que Agostinho faz como recurso de passagem fundamental e de mediação do que vem a ser conhecer a si mesmo e conhecer a Deus. Como pano de fundo, a estrutura narrativa da memória combina os elementos da rememoração ao descrever, narrar e prescrever Confissões. Ora, Agostinho é autor, ora narrador e personagem em diálogo com a teoria e o campo prático subentendido na própria estrutura do ato de rememorar e narrar. Portanto, a narrativa das Confissões é a mediação, é o processo de conhecimento, de diálogo entre Agostinho e Deus, Agostinho e seus leitores.

A memória narrativa no livro X apresenta realidades temporais e intemporais da alma dentro de uma ordem ontológica e epistemológica que nos remete à natureza existencial e temporal do ser humano e para além se dirige aquilo que chamamos neste trabalho de cogito existencial.

A leitura que foca a questão filosófica e teológica está dentro de um corpus hermenêutico. As reflexões sobre o gênero literário e histórico trazem aspectos fundamentais do conteúdo filosófico e teológico. Esta leitura concentrar-se-á no livro X das Confissões, no qual se observa uma dialética de conhecimentos, de diálogos que Agostinho faz entre ele e Deus na busca do conhecimento de si e de Deus: a partir da dialética bíblica de interpelação e respostas entre ele e Deus, e da dialética do cogito

existencial, entre o “eu”, o outro e Deus, em relação com a semântica e a

interdiscursividade do si.

O desejo de conhecimento de Deus é a principal fonte do conhecimento do mais profundo “eu”. No livro X de suas Confissões, Agostinho faz imersão na complexidade de

137 MOURANT, 1980, p. 70. Mourant, em seu artigo, afirma que a memória pode estabelecer a unidade das

seu próprio espírito, em busca das fontes primordiais para compreensão mais profunda do conhecimento de si, na tentativa de revelar quem é.

Grande é o poder da memória, um não sei quê de horrendo, ó meu Deus, uma profunda e infinita multiplicidade; e isto é o meu espírito, isto sou eu mesmo, (ego ipse sum). Que sou eu então, meu Deus? (Quid ergo sum,

Deus meus?) Que natureza sou? (...) Percorro todas estas coisas, esvoaço

por aqui e por ali, e também entro nela até o fundo quanto posso, e em parte alguma está o limite: tão grande o poder da memória, tão grande é o poder da vida no homem que vive mortalmente! Que farei, pois, ó meu Deus, tu, minha verdadeira vida? Irei também além desta minha força que se chama memória, irei além dela a fim de chegar até ti, minha doce luz. Que me dizes? Eis que eu, subindo pelo meu espírito até junto de ti, que estás acima de mim, irei além dessa minha força que se chama memória, querendo alcançar-te pelo modo como podes ser alcançado, e prender-me a ti pelo modo como é possível prender-me a ti. Têm memória os animais e as aves: de outro modo não voltariam às suas tocas nem aos seus ninhos, nem às muitas outras coisas a que estão habituados; nem poderiam habituar-se a coisa alguma senão por meio da memória. Irei, portanto, além da memória para alcançar aquele que me distinguiu dos quadrúpedes e me fez mais sábio que as aves do céu; irei além da memória para te encontrar, ó verdadeiro bem, ó suavidade segura, para te encontrar? Se te encontrar fora da minha memória, estou esquecido de ti. E, se não estou lembrado de ti, como é que te encontrarei? (Confissões X, xvii, 26).

Quem, senão o próprio “eu” pode se interrogar pelo conflito no próprio espírito, da

própria vontade. É esse “eu” inquieto que, em primeiro plano, sai em busca de sua origem e se interroga pelo fruto de suas confissões.

O que tem em suas mãos, à sua disposição é: memória138 (ad manum posita in ipsa memória), “a mão do coração”139 (ab manu cordis), o pensamento140 (cogitare proprie) e o querer141 (quod volo).

Desse modo, o “eu” sai em busca da constituição do si por meio da consciência que tem da presença divina, o amor.142 O amor é o primeiro dado que revela sobre si mesmo a relação com Deus. Apresenta o próprio espírito143e a consciência de si144 para estruturar o

138 Confissões X, xi, 18. 139

Confissões X, viii, 12.

140 Confissões X, xi, 18. Lembrando que no capítulo 2 o “coração” já se apresentava como função da

linguagem para compreensão do texto, P. Johannes B. Lotz ilustra suas reflexões metafísicas valendo-se do “coração” em Santo Agostinho, embora notando que Agostinho atendia imediatamente a sua experiência empírica. Para Lotz, o “coração” em Agostinho equivaleria ao fundamento da alma, ou seja, ao núcleo metafísico da memória, que não era apenas uma potência operativa, mas a raiz indissolúvel unida às potências; portanto, “memória”, “intelectus” e “voluntas” estavam essencialmente unidas.

141 Confissões X, viii, 12. 142 Confissões X, ii, 2. 143

pensamento com a finalidade de alcançar a luz, que tem como lugar da prática o coração, que impõe, como necessidade, a prática da verdade, que está associada ao amor e ao querer: ecce enim veritatem dilexisti.145

3.2. A dialética entre a mesmidade e a ipseidade – O desejo de

No documento SUELMA DE SOUZA MORAES (páginas 90-92)