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Memória e esquecimento

No documento SUELMA DE SOUZA MORAES (páginas 144-147)

CAPÍTULO 4 – APORIA DA MEMÓRIA EM VIRTUDE DO ‘COGITO

4.2 Memória e esquecimento

Agostinho abre outra aporia e passa da ausência para o esquecimento por analogias. E, quando nomeio o esquecimento e, do mesmo modo, reconheço o que nomeio,

como o reconheceria, se não me lembrasse dele?

Nesse campo, já não se pergunta mais se a própria coisa está presente, mas é o significado da coisa que revela o conhecimento. E Agostinho afirma que, se de fato ele tivesse se esquecido do significado da coisa, não poderia reconhecer a que ele seria equivalente.

Desse modo, Agostinho entra no plano da analogia e passa por equivalências de significados, que algo se remeta a outra coisa semelhante, por equivalências de significados.

Retorna à memória de si mesma e por analogia diz: quando se lembra da memória, é a própria memória que por si mesma está presente, e quando, porém, se lembra do esquecimento, não só a memória está presente, mas também o esquecimento: a memória com que se lembra; o esquecimento de que se lembra.

A memória é o espaço da lembrança, o esquecimento é a coisa a ser lembrada. A memória é o depositário do esquecimento.

Agostinho passa a descrever uma lembrança da memória que está presente por si mesma a si mesma e de uma relação de simultaneidade de acontecimentos da lembrança e do esquecimento, de presença e de ausência, de interioridade e de transcendência. O esquecimento (oblivionen) é nomeado, e ao mesmo tempo em que o esquecimento é nomeado, ele é reconhecido (agnosceren) por meio da lembrança (memini), ambos presentes na memória. Esse desenvolvimento abre a aporia presente na memória:

Por conseguinte, quando me lembro da memória, é a própria memória que por si mesma a si mesma está presente; quando, porém, me lembro do esquecimento, não só a memória está presente, mas também o esquecimento: a memória, com que me lembro; o esquecimento, de que me lembro (Confissões X, xvi, 24).264

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Quid, cum oblivionem nomino atque itidem agnosco quod nomino, unde agnoscerem, nisi meminissem? Non eumdem sonum nominis dico, sed rem, quam significat; quam si oblitus essem, quid ille valeret sonus, agnoscere utique non valerem. Ergo cum memoriam memini, per se ipsam sibi praesto est ipsa memoria; cum vero memini oblivionem, et memoria praesto est et oblivio, memoria, qua meminerim, oblivio, quam meminerim. Sed quid est oblivio nisi privatio memoriae? Quomodo ergo adest, ut eam meminerim, quando cum adest meminisse non possum? At si quod meminimus memoria retinemus, oblivionem autem nisi meminissemus, nequaquam possemus audito isto nomine rem quae illo significatur, agnoscere, memoria

Nesse caso, a memória teria conservado uma lembrança (memini) que está presente nos dois termos: na memoriam memini e memini oblivionem. Entretanto, quando se lembra da memória, é a própria memória que, por si mesma, a si mesma está presente, e quando se lembra do esquecimento, não só a memória está presente, mas também o esquecimento.

Agostinho abre o paradoxo sobre a lembrança do esquecimento ao afirmar a memória presente no esquecimento. Primeiro, a memória, com que me lembro; pede relação de movimento ou dependência, e o esquecimento, de que me lembro; identificação ou reconhecimento do objeto, de algo.

Segunda informação a considerar é a memória presente, ou seja, a presença da memória, de uma memória presente no tempo presente, que se trata de uma lembrança no presente. De um lado, o esquecimento é o esquecimento de uma memória e lembrança presente; por outro, a memória do esquecimento é algo que transcende a memória. Agostinho constata a simultaneidade da interioridade e da transcendência na memória. Como então Agostinho, ao constatar a existência dessas duas memórias de presença e ausência, poderia se comunicar?

Agostinho passa a indagar sobre o papel da memória no esquecimento. Se é com a memória que me lembro do esquecimento, e o esquecimento de algo pode ser lembrado, ou seja, existe a lembrança do esquecimento; e por sua vez, se o esquecimento é a ausência da memória, como então pode ser lembrado? Mas que é o esquecimento senão a privação da

memória?

Se o esquecimento é a ausência da memória, o esquecimento pode ser reconhecido na própria memória. Esta teria sido sua última afirmação antes de entrar no campo do esquecimento, mas que teve como indagação se era a presença a si mesma por meio da imagem ou por si mesma. E nessa sequência, o que retoma está novamente marcado pela própria aporia aberta, porque o jogo de analogias está sobre o caráter do esquecimento e não da memória.

retinetur oblivio. Adest ergo, ne obliviscamur, quae cum adest, obliviscimur. An ex hoc intellegitur non per

se ipsam inesse memoriae, cum eam meminimus, sed per imaginem suam, quia, si per se ipsam praesto esset oblivio, non ut meminissemus, sed ut oblivisceremur, efficeret? Et hoc quis tandem indagabit? Quis

Se o esquecimento é a ausência da memória, como é que ele está presente, a ponto de eu me lembrar dele, quando não sou capaz de me lembrar dele, quando está presente? (Confissões X, xvi, 24).

Em outras palavras, como posso lembrar-me de algo esquecido, pois se ele está esquecido, não há lembrança? Ao entrar no palácio da memória, Agostinho já havia estabelecido, em Confissões X, viii, 12, que o que havia na memória era somente aquilo que o esquecimento não havia absorvido, nem sepultado. Se neste momento Agostinho afirmasse o contrário, estaria entrando na própria contradição de sua afirmação. Portanto, sua conclusão é plausível. Aquilo que está esquecido ainda está presente na memória. Mas a questão paradoxal é: de que modo (quae quomodo)?

Entretanto, Agostinho conclui:

Logo, como é que ele está presente, a ponto de eu me lembrar dele, quando não sou capaz de me lembrar dele, quando está presente? (...) Mas, se conservarmos na memória aquilo de que nos lembramos, e se não nos lembrássemos do esquecimento, de nenhum modo poderíamos, ao ouvir a palavra esquecimento, reconhecer a coisa que ela significa: então, o esquecimento está conservado na memória (Confissões X, xvi, 24).

Uma vez confirmado o esquecimento presente na memória, como é que se dá a lembrança do esquecimento na memória? Qual o modo de iluminação presente na memória, para que possa lembrar-se do esquecimento?

Acaso se deve entender a partir disso que o esquecimento, quando nos lembramos dele, não está na memória por si mesmo, mas por meio da sua imagem, uma vez que, se estivesse presente por si mesmo, não faria com que nos lembrássemos, mas sim com que nos esquecêssemos? (Confissões X, xvi, 24).

Para ambos, apresenta-se o mesmo problema sobre a imagem, isto é, se ela é necessária para a explicação do esquecimento. Para que o esquecimento esteja completamente ausente no sentido de privação (anamnesia) ou esquecimento (oblivio), não haveria uma presença para que a mente pudesse lembrar.

Desse modo, o esquecimento, quando nos lembramos, está na memória por si mesmo ou por meio de uma imagem? Segundo, como lembrar algo que está ausente? O que seria a privação da memória?

4.3. A linguagem utilizada para desenvolver os termos memória e

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