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3.4 A MAQUINAÇÃO DO MISTÉRIO: BASE DO OLHAR FORA DE CAMPO

3.4.1 A investigação em curso

Pode-se notar, tanto em Caché (2005) quanto em A Fita Branca (2009), que há a construção da caçada, pela busca do “culpado”, dentro da qual a investigação é utiliza como pretexto para o tema do mistério que é autorreflexivo e faz parte da lógica do universo diegético. O lugar do mocinho e do bandido, do culpado e do

inocente é posto à prova quando a câmera sugere uma espécie de ameaça: as personagens, por um lado, são apresentadas em situações nas quais aparentemente há um conflito a ser resolvido, mas a trama acontece de forma a que se proponha a ambiguidade: não fica claro se a personagem se defende ou acusa.

Há uma referência a filmes que buscam um estereótipo pela dualidade do herói e os “bandidos”, ou seja, que utilizam o campo moral para rotular a ameaça externa e formulam uma série de características para simbolizar o “oponente”. Existe, nessa produção de dualidade (como no caso da Guerra Fria, em que o cinema foi utilizado por filmes de Hollywood no sentido de amplificar a atribuição do bandido aos russos) uma dimensão claramente política, essencialmente de procurar um bandido externo, criar medo pela retórica do perigo, fomentar estereótipos, ressaltar traços considerados perigosos por parte do “estrangeiro”.

Ou seja, é por causa desse jogo identificatório, proposto na construção dos filmes, que eles podem ser usados como propaganda. O lugar do mocinho pode ser também edificante, usado como modelo para as ações e os comportamentos que são também produtos de uma coletividade. É nesse lugar que incide a complexidade pela qual são construídas as representações de Haneke de forma a ressaltar a ambiguidade: em momentos, é sugerido ao espectador se identificar com a personagem principal que aparenta ser uma vítima; em outros momentos, há uma perpetuação de uma violência por parte da mesma, o que relativiza tanto o lugar da vítima quanto o lugar do “bandido”.

Sendo assim, o tema da acusação e o desenvolvimento da trama investigativa implicam diretamente numa confiança e no ponto de vista de George: esse sujeito que parece egoísta e preocupado com sua imagem. Em muitos sentidos, sua imagem está ligada a uma figura midiática, mas também a certo egocentrismo e indiferença que, como se percebe, serve para tratar sobre a responsabilidade da França com relação à Argélia e a situação das periferias de Paris.

O tema da investigação alia-se ao problema da confiança na personagem principal, que não é conquistada pela própria mulher. É assim que a personagem, com o decorrer da trama, e sua perseguição, ficam cada vez mais ambíguas, pois

ela é relativizada em função dessas características próprias de alguém preocupado apenas com sua imagem midiática.

Similar, mas ao mesmo tempo diferentemente de Violência Gratuita (2007),

Caché (2005) parece complexificar essa relação entre o torturador-perpetuador,

acusado-acusador. Como observa Rancière (2014) sobre Lang10, que todas as

pessoas que perseguem o assassino são tão antipáticas quanto ele, ou mesmo mais (p. 78). Essa relação de empatia está no cerne das representações de Haneke, como uma relação dual entre a figura do herói e a dimensão de certo ou errado, vítima ou perpetuador.

Em A Fita Branca (2009), da mesma forma, o problema da confiança está posto na investigação, que implica na atribuição de responsabilidade. Similarmente a

Caché (2005), a figura do professor, mesmo apresentando características que

possam ser atribuídas ao “mocinho”, entra na mesma lógica punitiva e moralista que faz parte das relações do povoado. Toda a investigação, nesse sentido, está implicada no ponto de vista do narrador-personagem.

Assim, tendo em vista o problema da investigação presente no desenvolvimento da trama e as lacunas deixadas na narrativa que constituem a base do relato, cabe trabalhar como os filmes de Haneke trazem a desconfiança como referência extradiegética, que está implicada na sua proposta autorreflexiva. A desconfiança ocorre apenas numa suspensão entre o narrador e a matéria ficcional, mas é reelaborada pelo olhar fora de campo em função da questão política que está posta nos filmes de Haneke.

3.4.2 “Você não pode ter confiança em mim?”

Em uma cena emblemática de Caché (2005), Georges e Anne conversam na sala quando o primeiro manifesta a sua desconfiança sobre a proveniência das correspondências com as fitas. Até o momento, nem Anne nem o espectador têm

10 Fritz Lang, diretor nascido na Áustria, considerado um dos mais importantes expoentes do expressionismo.

Dividiu sua carreira entre Alemanha e Estados Unidos, este segundo país onde realizou o filme No silêncio de uma cidade.

ideia de hipóteses sobre o caso. Na sequência, Georges afirma a Anne que não pode contá-la até que suas suspeitas estejam sejam confirmadas, e fala: “Você não pode ter confiança em mim?”, apela ele. Anne, por outro lado, reverte a situação: “É você que não tem confiança em mim”.

Figura 25 – Sequência de Caché sobre confiança

Fonte: CACHÉ (2005).

A discussão do casal é uma referência ao método de construção da narrativa que busca esconder e jogar com a confiança do espectador.

Tal jogo posto pelo casal é exatamente o que se estabelece com a narrativa fílmica. Propõe-se, desde o início, que a relação entre observadores e observados está no cerne da caçada, do mistério do filme. No meio, entretanto, algumas lacunas depõem exatamente pela relação de confiança que se estabelece entre a personagem com o seu cotidiano e do espectador com o relato.

A história do filme leva a duas camadas estabelecidas pelas fitas que chegam, estão no ponto de vista de Georges e se referem diretamente ao universo

dele, a casas que ele habita ou habitou, e também a outro lugar: o caminho para o apartamento de Majid. Essas representações propõem o mistério, pois nunca sabemos de onde vêm, mas anunciam o que está por vir.

Elas só ganham sentido depois da fala das personagens. Ou seja, só sabemos que é a fachada da casa depois de ouvi-los, da mesma forma só sabemos que é a casa de infância de Georges depois que ele fala. Há uma relação direta entre o que elas dizem e a significação dessas imagens para a história do filme.

A confiança nas imagens é então estabelecida por essa relação: elas exigem confiança sem que transpareçam essa relação. As imagens que surgem pelo processo de construção desse discurso estão na estratégia centrada no cotidiano: a produção da desconfiança com relação ao que está no ecrã e da posição daquelas personagens.

Ao contrário da personagem shakespeariana que manifesta uma crise de identidade, um conflito consigo, as de Haneke, ao contrário, não manifestam hesitação. A identidade, nesse caso, ocorre de forma inequívoca, sua certeza nas suas crenças e nos seus atos é tão grande que ele guia esse mascaramento que se propõe com relação à história da França.

A confiança que a personagem pede a Anne representa uma analogia aos filmes de Haneke. O mistério é assim construído sem que seja possível confiar nas pistas deixadas sobre os possíveis culpados. Georges reage ao contrário, indo investigar ele mesmo os acontecimentos.

Por uma espécie de metanarrativa, o narrador apresenta uma reflexão sobre os artifícios, se concentra mais no telling do que no story, mais especificamente nas estratégias do cinema. A dimensão autorreflexiva dos filmes tratada em Haneke fica clara ao se analisarem algumas representações como a do corte: esse que pode ser tanto uma referência interna quanto externa à diegese.

Em A Fita Branca (2009), o recurso da tentativa de reconstruir os fatos de forma imprecisa põe em suspensão o artifício. Por outro lado, além da não confiabilidade do narrador, o fora de campo, ou seja, o que não aparece, a motivação da personagem para a narrativa atua como extradiegética.

A Fita Branca (2009) contém também essa relação com a aparição do distante e a investigação. Na produção do ato narrativo, os acontecimentos são fruto de uma suspeita por parte do narrador-personagem. Eles pretendem alertar sobre uma forma particular de violência que seria então transmitida para uma geração, e que resultaria na Segunda Guerra Mundial.

A desconfiança que podemos constatar na condução do filme, ou seja, que é motivo para acusação de Majid, no caso de Caché (2005), e das crianças, em A Fita

Branca (2009), deve traduzir-se em uma desconfiança por parte do espectador. No

entanto, o que essas imagens chamam atenção para uma ética da injustiça, uma ética da representação que inclua essa supressão do rastro e, além disso, que o enigma sirva como uma forma de mistério para desconstruir uma lógica detetivesca que resulta em revelação.

No caso de A Fita Branca (2009), a personagem é alguém que também já adquiriu distância no tempo e agora procura relatar os acontecimentos que considera relevantes. Nesse sentido, mais uma vez, a distância temporal e a transmissão cumprem um papel determinante para o filme, numa tentativa de achar o culpado pelo que acontecia.

No que se refere a esse jogo com as crenças, o ceticismo com relação à busca de uma verdade pode ser comparado ao que Deleuze (1990) chama de narrativa orgânica e que consistiria nessa pretensão do verdadeiro; já a narração cristalina se manifestaria em uma ruptura com a lógica da ação-reação, da resposta a estímulos e resolução das tensões.

Há uma construção que desestabiliza o universo das personagens. Esse mistério, que deixa o filme sem esclarecimentos, joga com a curiosidade do espectador, que fica na expectativa do desfecho com a revelação sobre culpados e inocentes. A própria construção da mise-en-scène tem esse sentido de sugerir uma ameaça ao universo da personagem, que é essencial para a manutenção do suspense.

Ao não deixar evidenciadas as respostas, a câmera parece jogar com o que está visível na construção da história, buscando não revelar, e nada parece apresentado para uma simples conclusão. Assim, o fora de campo nos filmes de

Haneke faz parte de uma investigação que nos remete a questões histórico-políticas. Tal construção procura reverter a dinâmica inocente-culpado pela confusão da conclusão sobre acusador, culpado, ameaçado e real ameaça.