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“O centro de sua investigação é o problema da liberdade Sua obra é um desafio permanente”: a temática de Sartre (re)lida por Peixoto

No documento EIXOTO: NO PAL CO, (páginas 112-131)

O exercício que Fernando Peixoto fez, ao trazer à tona a visão de um crítico sobre o seu trabalho, já é importante por si mesmo, haja vista que evidencia a forma como seu passado está sendo (re)construído pelo presente e vice-versa. Todavia, a importância dessa retomada não se restringe a uma forma de compreender a correlação das duas temporalidades, mas é também significativo o que se delineia nas suas palavras: “[...] e ele [Sábato Magaldi] cita essa coisa que eu procurei trabalhar, deixando em segundo plano as digressões filosóficas, existenciais, essa coisa que para ele [Sartre] é essencial e ressaltando o lado social, político”.56

Dessa afirmação de Peixoto, algumas questões devem ser postas: o que afirmar da expressão “digressões filosóficas”? Será que é possível, tratando-se de uma construção sartreana, deixar as questões existenciais em “segundo plano”? Se a resposta for positiva, percebe-se uma aparente separação entre essas questões de um lado e o debate social e político de outro e, se isso for efetivado, não é todo o aparato artístico e intelectual proposto por Sartre que desaparece?

As palavras “filosóficas” e “existenciais”, quando acompanhadas do termo digressões, são postas em suspensão, pois em seu sentido literal as remete a um desvio de rumo ou assunto. Daí a necessidade de deixá-las em “segundo plano”. Essa visão é reafirmada em um outro momento: “[...] o existencialismo de Sartre complicava um pouco a objetividade da peça”.57

Percebe-se que Peixoto não aceita integralmente as questões existenciais que se materializam no pensamento de Sartre. Essas, em última instância, remetem

56 PEIXOTO, Fernando. Depoimento concedido aos professores: Dr. Alcides Freire Ramos e Dr.a Rosangela

Patriota Ramos em novembro de 2001. Não publicado.

57 PEIXOTO, Fernando. Uma trajetória em questão. In: ______. Teatro em movimento. São Paulo: Hucitec,

fundamentalmente ao indivíduo. À luz do que foi explicitado antes, sabe-se que o deslocamento que ele procura evidenciar tem como referência um campo de discussão preciso: o marxismo. Porém, se as instâncias filosóficas forem postas em segundo plano, é necessário indagar: o que prevalece? A particularidade do texto é reconhecida.

[...] era um mergulho de idéias, uma reflexão filosófica aprofundada sobre o que é o comportamento do homem diante da tortura, diante do torturador, o que é o comportamento do torturador diante do torturado, diante do fato de fazer a violência, e o outro sofrer a violência, enfim, todos os problemas que... dedurar ou não, enfim, abre a boca ou não abre, se cala, grita ou não grita, tudo isso é discutido na peça numa intensidade muito grande. [...] é uma reflexão de filósofo mesmo, embora com a estrutura muito bonita, a peça fascinava.58

A considerar a temporalidade temática em que o processo criativo que Mortos sem

Sepultura está inserido – conforme mostrado no capítulo anterior – ficam evidentes as nuanças dessa construção: os personagens vivem e sentem a tortura, situação limite que lhes foi imposta, mas, para além disso e, talvez, com uma prioridade maior, eles refletem intensamente sobre essa experiência. Em conseqüência, há um embate contínuo entre o que o projeto coletivo exige e a forma como este é concebido e vivenciado no âmbito individual. Será que é nesse exercício de reflexão que se encontram envoltos os “seres” de Sartre que Peixoto compreende como digressões filosóficas? Ora, se se relembrar, ainda que sucintamente, a materialidade do orgulho de Lucie, as dúvidas de Sorbier, a inquietação de Henri, etc., se torna complexo separar essas maneiras singulares de viver o processo do próprio processo que o texto apresenta. Assim, mais uma vez, a indagação fica sem resposta: se o ponto de partida não forem as questões existenciais, ou seja, o que tange ao indivíduo, o que prevalece?

É certo que Peixoto, como leitor e investigador dessa obra e do pensamento de Sartre, compreende a especificidade dessa construção e sabe igualmente que, se eliminar as instâncias filosóficas, é a estética de Sartre que se torna inconcebível. É sob este aspecto que deve ser avaliada a sua proposta59 de deixá-las em segundo plano.

58 PEIXOTO, Fernando. Depoimento concedido aos professores: Dr. Alcides Freire Ramos e Dr.a Rosangela

Patriota Ramos em novembro de 2001. Não publicado.

59 A considerar que forma e conteúdo não se dissociam, em verdade, a proposta de Peixoto para a obra de

Sartre se materializará efetivamente na encenação do texto – tema do próximo capítulo. Contudo, o “lugar” em que ele fundamenta as referências intelectuais que suscitam o seu investimento, ou seja, a maneira como ele se movimenta frente a esse objeto merece aqui ser avaliada. É nesse sentido que se justifica a utilização dos textos do próprio encenador.

Em verdade, a escolha60 de Peixoto por interpretar o texto dramático em referência a Questão de Método já explicita a sua intenção. Haja vista que o conteúdo que se apresenta nessa última obra tem a especificidade de fornecer subsídios ao campo em que ele deseja lançar a construção sartreana. A interpretação de Gerd Bornheim é, nesta perspectiva, cristalina:

Sartre está empenhado em estabelecer uma síntese ou uma complementação entre o marxismo e o existencialismo. Compreende-se que tal tentame alcançasse ampla repercussão; Sartre enfrenta resoluto uma das contradições mais radicais de nosso tempo: a inquietação social e as exigências da subjetividade humana.61 (destaque nosso)

Nesse sentido, acredita-se que fique mais evidente o motivo que direcionou a opção de Peixoto por Questão de Método. Assim, se seu intento pautou-se em fornecer um “espaço maior” para as questões sociais, nada mais viável do que utilizar-se de uma obra em que o próprio Sartre forneça subsídios para que esta abordagem seja concretizada frente ao seu pensamento.

[...] ninguém mais bem posicionado que o autor de O Ser e o Nada, para se envolver, assumindo sem reservas o marxismo, a título de horizonte filosófico “insuperável”, numa “crítica da razão dialética”, cujo duplo objetivo seria, essencialmente:

- definir um método reflexivo permitindo descrever, conceitualizar, em toda sua verdadeira complexidade, a relação entre os homens e a história;

- liberar as condições históricas de uma práticado mundo humanoque seja adequada a assumir a humanização progressiva retirando-a cada vez mais da dimensão da inércia de uma história em que não cessem de coisificar e de alienar (enquanto práxis individuais simultâneas, mas separadas) as próprias liberdades da qual ela é produto.62

Não é possível desconsiderar que o envolvimento, a aposta e a credibilidade que Sartre estabelece com o marxismo vêm acompanhadas, conforme bem colocado por Bornheim, da “exigência da subjetividade humana”.63 Essa, por sua vez, cumpre o papel de

60 O sentido desse termo deve ser aceito em sua compreensão histórica, pois os agentes não têm uma

existência apenas objetiva. Dessa maneira, as suas escolhas podem revelar aspectos de seu envolvimento no processo: as lutas, engendramentos e projeções postas no passado. (Cf. VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a Memória Histórica. São Paulo: Hucitec, 1997. 219 p.)

61 BORNHEIM, Gerd. A crítica da razão dialética. In: ______. Sartre: metafísica e existencialismo. São

Paulo: Perspectiva, 2005, p. 245.

62 JEANSON, Francis. Sartre. Tradução de Elisa Salles. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p. 170. 63 Cf. BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. 315 p.

singularizar todo seu empreendimento. Ainda que termos como “condições materiais”, “coisificar”, “alienar” sejam referenciadas em suas análises, essas condições são sentidas singularmente pelos indivíduos. São eles que lhes fornecem sentido. Até mesmo a “humanização progressiva”, descrita por Jeanson, certamente faz eco com a proposta de “emancipação dos sentidos humanos”64 que Terry Eagleton identifica como a narrativa que se delineia no marxismo. Mas, de acordo com o que fora posto antes, há uma diferença na forma de conceber o agente que a torna possível.

Considerando as colocações de Peixoto transcritas até o momento, percebe-se que ele tem a dimensão da diferença. E é justamente esta que lhe fornece embasamento para questionar e se contrapor às questões filosóficas e existenciais de Sartre. Todavia, é válido destacar a seguinte afirmação:

Sartre é um aliado não dispensável: porque muitas, inúmeras vezes, coloca a verdade, mesmo uma verdade que temos a ingênua tentação de recusar também nós em defensiva, porque nos coloca na parede como inúmeras vezes esconde a verdade objetiva, privilegiando um mundo carregado de condenável subjetivismo fechado, as chamadas “crises existenciais”, mas justamente nestes instantes nos obriga a revisar nossos conceitos e forjar respostas conseqüentes.65

Se, em momentos anteriores, foram feitas ressalvas à obra/pensamento de Sartre a partir da exigência de uma abordagem que priorize as instâncias coletivas e sociais, percebe-se, nessa passagem, a inserção de uma nova perspectiva: o reconhecimento das “crises existências”. Estas não estão aqui apenas asseguradas como componentes de uma construção, mas cumprem um papel, qual seja, “revisar nossos conceitos e forjar respostas conseqüentes”.

Acompanhando a maneira pela qual Peixoto debruça-se na “narrativa” sartreana, a partir das questões já explicitadas, é válido afirmar que suas asserções caminham em dois sentidos: de um lado, pelo viés de uma concepção marxista, ele procura (des)construir o próprio existencialismo e conseqüentemente indagar a escrita que se apresenta em Mortos

sem Sepultura; e, por outro lado, ao considerar a validade das “crises existenciais”, ele reconstrói o que havia posto em suspensão antes. Se, no primeiro caso, a forte presença do

64 Cf. EAGLETON, Terry. O sublime no marxismo. In: ______. A Ideologia da Estética. Tradução de Mauro

Sá Rego Costa. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993. p. 146-171.

65 PEIXOTO, Fernando. Porque, como e para que reviver os “Mortos”. In: ______. Teatro em Pedaços. São

aspecto individual marca a ultrapassagem que é proposta, no segundo, é possível dizer que essas “crises existenciais” trazem à tona o que havia sido contraposto antes, haja vista que elas só podem ser situadas nos próprios indivíduos.

Dessa forma, algumas questões surgem: é possível dizer que se alcançou um novo impasse? E ainda: a visualização desse impasse coloca em xeque a “linha de continuidade e coerência” que Peixoto procurou manter nessa sua leitura? Diante desses questionamentos, a resposta é duplamente negativa, e isso ocorre devido a um motivo específico: ao recuperar a importância dessas “crises”, o diretor solicita que seja evidenciado algo que é constante no pensamento de Sartre – a liberdade.

Contudo, é primordial situar esse conceito frente ao marxismo, haja vista que é neste campo que a temática está sendo retomada. Nessa perspectiva, a avaliação de Adam Schaff pode lançar luz a essa questão. De acordo com sua análise, a palavra tem três significados: o homem é livre quando sua vontade de agir não tem nenhuma determinação; o homem é livre quando sua atividade não é subordinada a nenhuma necessidade objetiva da vida social ou o homem é livre quando pode escolher entre várias possibilidades de ação. Partindo do pressuposto de que todo o estudo da atividade humana demonstra a existência de causas para o que os homens fazem e que as necessidades objetivas não são algo externo, mas ocorrem por meio dos atos humanos, o autor procura evidenciar a impossibilidade dos dois primeiros sentidos do termo.

A existência de leis objetivas que governam a evolução histórica, e necessárias aos processos sociais, não elimina a atividade criadora do homem nem a sua liberdade. Essas leis apenas determinam a base social sobre as quais se faz a atividade humana e através da qual encontra expressão sua liberdade. Certamente, as atividades do homem são limitadas pelos fatores sociais. A liberdade não significa a possibilidade de condicionar os processos sociais da forma que se deseja. Nesse sentido, não há liberdade “absoluta”, sendo o seu conceito uma simples fantasia especulativa.66

Toda a discussão empreendida por esse autor tem em vista a necessidade de se contrapor à concepção existencialista de liberdade, especialmente a sartreana. Para ele, essa acepção, ao rejeitar o “determinismo” e “necessidades históricas”, só poderia levar à resignação e ao desespero. Por isso, ele aposta no terceiro sentido:

66 SCHAFF, Adam. Marxismo e Existencialismo. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: J. Zahar,

Segue-se que sou livre sempre que posso escolher o que fazer, e quando essa escolha depende de mim. Ao fazer minha escolha, ajo como indivíduo – mas como indivíduo real, vivo, membro da sociedade, socialmente condicionado pelo “conjunto das relações sociais”, e não como abstração existencialista. Sou, portanto, livre à base do determinismo, dentro da moldura do determinismo.67

Para Schaff, o homem não pode ficar alheio às constantes históricas e devido a isso a liberdade em sentido absoluto, que, de acordo com sua interpretação, Sartre defende, não existe, é uma “falácia”. Assim, utiliza uma abordagem marxista de evolução social em contraposição à visão sartreana.

Faz-se necessário explicitar a leitura que Schaff faz da liberdade sartreana, haja vista que ele a concretiza na busca por (des)construí-la com base no marxismo. E esse exercício traz à tona a seguinte indagação: de que forma Peixoto, que também compartilha desse sistema de pensamento, principalmente no que tange à inevitabilidade de o indivíduo pertencer a uma classe social e ser por ela determinado, se fundamenta em meio ao termo? Porém, antes de partir para essa análise, é válido avaliar mais de perto esse sentido absoluto que a liberdade sartreana adquire com Schaff.

Certamente Schaff, ao concebê-la dessa maneira, não atentou para uma instância que a acompanha: a ação. Em verdade, é esta que concebe aquela. Sartre afirma que o homem é o que ele mesmo se faz, o que resulta no fato de que é o seu projeto que o determina. Assim, não há nada que anteceda “fazer-se a si mesmo”, ou seja, não existe algo

a priori que estabeleça o modo de o indivíduo ser e agir. Nesse sentido, torna-se difícil rejeitar a idéia de uma liberdade “ilimitada” a que essa abordagem pode remeter. Porém, esta não é a única. Há outro sentido que a complementa, qual seja, dizer ao homem que ele é livre não é o mesmo que afirmar que não existam fatores que o impeçam de sê-lo, isto é, a liberdade precisa realizar-se, tornar-se efetiva.68

Portanto, existem duas maneiras de compreendê-la. A primeira evidencia a liberdade como fato, é o que caracteriza o homem; a segunda a concebe num campo de possibilidades, precisa concretizar-se. Em última instância demonstra que o homem não é

67 SCHAFF, Adam. Marxismo e Existencialismo. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: J. Zahar,

1965, p. 70.

68 Esse assunto é um dos temas da mesa redonda intitulada “A Questão da Subjetividade no Pensamento

Contemporâneo”, realizada na XI Semana de Filosofia, I Colóquio de Ontologia e 1º Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Essa discussão foi um dos elementos centrais da exposição do Prof. Dr. Simeão Donizeti Sass.

sempre livre, mas precisa fazer-se livre. É neste aspecto que a ação cumpre um papel. A reflexão de Franklin Leopoldo explicita essas duas formas de compreender o mesmo termo: Há duas dimensões da liberdade: uma que constitui existencial e metafisicamente o sujeito. É aquela na qual “o homem está condenado a ser livre” porque sua consciência se identifica com a liberdade, e esse é o único absoluto real. Outra em que esta dimensão absoluta tem que se concretizar para realizar-se de fato na existência que é sempre histórica. É o plano em que a liberdade significa libertação, o esforço que cada um faz para tornar-se livre. A relação entre as duas dimensões é evidente. Só pode aspirar à liberdade aquele que já a traz dentro de si, ainda que vivendo a impossibilidade. O escravo luta pela liberdade porque, nele, o

homem é livre. Ao mesmo tempo, essa liberdade permaneceria abstrata se

fosse apenas atributo desse homem universal e indeterminado. Assim, muito embora o ser da consciência se defina como liberdade, isto é, a pluralidade indefinida das possibilidades de existir, a liberdade somente se realiza quando o sujeito assume, no redemoinho das vicissitudes históricas, a tarefa de tornar-se aquilo que já é.69

Essa passagem é importante por se contrapor ao sentido “absoluto” que Schaff fornece à liberdade sartreana. Em seu exercício de reflexão esse autor apontou este significado para estabelecer o sentido que acredita ser válido, o qual se resume no fato de que “o homem é livre quando pode escolher entre as várias possibilidades de ação”. Assim, a liberdade, para ele, não rejeita o “determinismo” e nem a “evolução histórica”, os dois primeiros sentidos que são negados em sua avaliação. Acreditando opor-se ao pensamento de Sartre, pondera:

Segue-se, ainda, que sou livre mesmo em situações em que a liberdade me é negada. Naturalmente, isso só parece paradoxal devido aos diferentes sentidos em que a palavra “liberdade” é usada. Mas o fato é real e significativo. Posso estar em cadeias e sob ameaça de morte, e, ainda assim, escolher – entre viver como traidor, ou morrer honradamente. Ainda sou livre.70

O autor utiliza-se dessa noção para contrapor-se ao que denomina “liberdade absoluta”. Contudo, o novo sentido almejado por ele se aproxima bastante da forma como Sartre o concebe. Ora, à luz da própria escrita de Mortos, se materializa essa idéia de que,

69 LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Metafísica e História no Romance de Sartre. Revista Cult, ano III, s/n, p.

61, maio 2000.

70 SCHAFF, Adam. Marxismo e Existencialismo. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: J. Zahar,

mesmo sob a iminência de morte, ainda há a possibilidade de escolher. Em verdade, esse impasse também é o que organiza as incertezas e inquietações dos resistentes de Mortos

sem Sepultura dentro do processo a que estavam submetidos.

Apesar de utilizar-se também de subsídios que perpassam uma abordagem marxista, inclusive toda a contraposição que é feita a Sartre se referencia nesse sistema, Fernando Peixoto, diferentemente de Schaff, fornece uma outra dimensão ao mesmo tema. Uma maneira de compreendê-la é evidenciar o sentido que a temática da liberdade assume em sua leitura.

[...] portanto, nada mais útil que a situação limite, considerada como momento histórico, no caso o confronto com a tortura e com a morte inevitável, o compromisso com a luta pela liberdade que não é apenas a realização ou a justificação de um projeto pessoal mas, principalmente a histórica tarefa da batalha pela libertação nacional.71

Nessa passagem, a liberdade é abordada de maneira semelhante à de Franklin Leopoldo, isto é, liberdade significando uma constituição do sujeito e ainda processo de libertação. Peixoto também a compreende de duas maneiras: como realização de um projeto pessoal e, principalmente, como batalha pela libertação nacional. No primeiro caso refere- se a um aspecto individual, já o segundo o ultrapassa. À luz das questões postas antes, certamente o último sentido é priorizado na interpretação de Peixoto.

Sabe-se que esses dois sentidos, para o próprio Sartre, não se dissociam, haja vista que há reciprocidade entre ambos. Peixoto, ao avaliá-los, tem consciência disso. Contudo, procura destacar a particularidade de cada aspecto. E o mais significativo na postura crítica que mantém é a valorização do que antecede a convergência dos dois sentidos. Considere- se o trecho que segue à sua leitura sobre a liberdade.

E nada mais útil que a reflexão sobre a maneira dos homens se relacionarem entre si, num tempo de guerra civil quando a sobrevivência impõe novos e inesperados conceitos (veja-se a difícil e trágica e talvez necessária terrível morte de “François”) e a moral da paz não encontra significado.72

Avaliadas em seu conjunto, essas últimas afirmações de Peixoto evidenciam que, entre a liberdade como projeto pessoal e a liberdade como luta em prol da libertação

71 PEIXOTO, Fernando. Porque, como e para que reviver os “Mortos”. In: ______. Teatro em Pedaços. São

Paulo: Hucitec, 1989, p. 212-213.

nacional, uma instância aparece em destaque: “a reflexão sobre a maneira dos homens se relacionarem entre si”, isto é, a passagem do individual para o coletivo, o “meio caminho”, ou o trajeto intermediário entre esses dois aspectos é posto em relevo. Grosso modo, parece que aqui os homens são “suspensos” ou “retirados” do projeto em que estão inseridos.

As aspas presentes nos termos suspensos e retirados servem para matizar a cautela que se deve ter ao usá-los, pois os personagens de Sartre, especialmente os resistentes de

Mortos sem Sepultura, ainda que o queiram, no caso do embate com a tortura, não conseguem ficar alheios às constantes históricas.73 Estas contribuem para materializá-los e vice-versa. Mas essas expressões devem ser compreendidas como a possibilidade e a conseqüência de os sujeitos refletirem sobre o processo vivido, recurso que é

73 De um ponto de vista teórico, considere-se a utilização deste termo: “[...] o cineasta fala a respeito das

‘constantes modernas da história’. Como entender isso? Na verdade, trata-se da própria estratégia

alegórica: fala-se de uma estratégia particular para significar algo mais geral. É como se o filme afirmasse:

No documento EIXOTO: NO PAL CO, (páginas 112-131)