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Ionesco; uma ideia do teatro

No documento A herança do absurdo (páginas 80-84)

Quando meu tenente e meu chefe estão de volta às suas casas, sozinhos em seus quartos, eles poderiam, por exemplo, assim como eu, estar fora da ordem social, ter medo da morte, como eu, ter os mesmos sonhos e pesadelos, e tendo despido sua personalidade social, de repente se encontrarem nus, como um corpo estendido na areia, espantados por estarem ali e espantados com seu próprio espanto, espantados com a sua própria consciência sendo eles confrontados com o imenso oceano do infinito, sozinhos na brilhante, inconcebível e incontestável luz solar da existência. E é então que o meu general ou o meu patrão podem ser identificados comigo. É na nossa solidão que todos nós podemos ser reunidos. E é por isso que a verdadeira sociedade transcende a nossa máquina social.

Eugène Ionesco. 39

Eugène Ionesco foi, dentre os grandes autores do Absurdo, o que mais discu- tiu, debateu, polemizou e questionou ideias sobre o próprio Absurdo, seu teatro, o teatro dos outros, sobre críticos, sobre si mesmo.

Acessando seus diários, suas entrevistas em uma notável compilação de seus textos que, numa tradução literal para o português, se chamariam “Notas e con- tra-notas” (1964), infelizmente ainda sem tradução, podemos captar ideias fun- damentais do Absurdo. Percebemos – por trás de suas defesas, análises e críticas

39 When my lieutenant and my boss are back in their homes, alone in their rooms, they could, for ex-

ample, just like me, being outside the social order, be afraid of death as I am, have the same dreams and nightmares, and having stripped off their social personality, suddenly find themselves naked, like a body stretched out on the sand, amazed to be there and amazed at their own amazement, amazed at their own awareness as they are confronted with the immense ocean of the infinity, alone in the brilliant, inconceivable and indisputable sunlight of existence. And it is then that my general or my boss can be identified with me. It is in our solitude that we can all be reunited. And that is why true society transcends our social machinery. (IONESCO, 1964, p. 108) Note-se que a palavra “amazed” tem significados comuns a “astonished”.

– o zeitgeist pós-Segunda Guerra refletindo as vanguardas do entreguerras e os precursores, ou fundadores, de uma ideia da arte no século XX.

Sua primeira peça, A cantora careca (1997), estreou em 1950, em Paris, e cau- sou certo espanto na sociedade. Ao invés da experiência radical das encenações da vanguarda que, em sua espetacularidade, afastavam o espectador daquele universo, Ionesco trazia seu drama para um “interior burguês inglês, com pol- tronas inglesas. Uma noitada inglesa”. (IONESCO, 1997, p. 9) Era estranho ver, num ambiente aparentemente comum, diálogos estranhos, situações inusita- das, uma lógica invertida em que o drama era movido por uma ação, mas uma ação que não levava a desfecho algum.

Personagens aparentemente comuns dialogavam sobre futilidades, em meio a jogos de linguagem e uma grande ironia com a estrutura da peça realista, onde os coups de théâtre tinham contornos inusitados, levando assim a peça a nenhum conflito aparente, nenhuma história com princípio, meio e fim. A peça simples- mente começava na hora que começava e terminava na hora que terminava, sem que nenhuma revelação, peripécia ou reviravolta motivasse os personagens e evoluísse e desenvolvesse a ação da cena para um final.

Os personagens não tinham uma profundidade, no sentido realista/natura- lista de vida pregressa, psicologismo, contradições, nem tampouco eram rasos, personagens-tipo. Diferentemente do Expressionismo, por exemplo, onde as funções sociais e alegóricas delineavam o caráter do personagem, ou como nas comédias ao longo da história, em que os estereótipos funcionavam como arti- fícios do jogo dramático, os personagens de Ionesco ficavam no limiar de exis- tência, pareciam mais amálgamas de existência, arquétipos de mediocridade. Ao contrário de se criar um “rei”, um “mendigo” ou um “funcionário público”, Ionesco reduzia seus personagens ao mínimo, para que eles fossem todo mundo. Assim como a profissão de agrimensor é um mero pretexto de Kafka para jogar

seu personagem no Absurdo d’O castelo, era desimportante a profissão ou status social dos personagens de Ionesco. K., em O castelo, não tem relação alguma com sua profissão, não se utiliza dela em momento algum como escape ou solução, muito pelo contrário; a insignificância da profissão do personagem bordejava a insignificância daquela existência de um “tanto faz”. Neste ponto, podemos frisar o quão desimportante são, na existência ficcional, os personagens de Kafka, de Tchekhov, de Ionesco, de Beckett. Enquanto os personagens de Shakespeare ten- tam grandes gestos por um reino, enquanto os personagens de Ibsen tentam pe- quenos gestos para vencer a sociedade burguesa, trazendo para si a importância de seres necessários e instigantes, vemos agora personagens paralisados sem ao menos saber que grande ou pequeno tentar. Como bem dizia Ionesco, é na soli- dão que todos nós encontraríamos a nós mesmos, e esses personagens solitários, perdidos no mundo, vagando a ermo, eram talvez reflexos muito mais profundos de nós mesmos do que aqueles personagens bem delineados, reais, palpáveis e cheios de existência das peças elisabetanas ou realistas, por exemplo.

O teatro de Ionesco foi uma tentativa de implosão do teatro burguês, uma transformação para dentro, mais profunda – apesar de superficial na aparência – pois Ionesco buscava o conflito universal do homem. E para isso se desligava de uma trama matematicamente elaborada para se chegar de um ponto a outro da vida. A vida, na obra de Ionesco, pretendia ser toda a vida, todo o mundo, todo o tempo.

Num curto, mas valiosíssimo estudo de Gerd Bornheim (1975), “Ionesco e o teatro puro”, o autor vai tocar em dois pontos fundamentais da obra de Ionesco: o teatro puro e o conceito de trans-historicidade; criado a partir de uma ideia de Ionesco sobre o caráter metafísico e atemporal que o teatro deve ter. A partir destes dois conceitos, uma breve análise do pensamento de Ionesco será feita, partindo, principalmente, de suas próprias ideias.

A linha histórica [Tchekhov → Kafka → Beckett/Ionesco = Absurdo] que tra- çamos aqui será – dentro do conceito de teatro puro – fundamental para se en- tender a modificação que a literatura teve na primeira metade do século.

Com este primeiro conceito, podemos começar a definir uma ideia do Ab- surdo e suas características principais. Os franceses do século XVII que, a partir da Poética, de Aristóteles, criaram a regra das três unidades para o drama: lugar, tempo e ação. Diz Nicolas Boileau-Despréaux:

Que o lugar da cena esteja lá indicado, uma vez por todas. Um versificador, sem perigo, para além dos Pirineus, encerra, no te- atro, muitos anos em um dia: lá, com frequência, o herói de um espetáculo grosseiro é criança no primeiro ato e velho no último. Mas nós, que a razão engaja às suas regras, queremos que a ação se desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato, acabado, mantenha até o fim o teatro repleto. (BOILEAU-DES- PRÉAUX, 1979, p. 42)

Este texto, escrito em 1674, traduz toda a preocupação que se tinha com as três unidades. Boileau, como comumente é chamado, preocupa-se com que a fábula se passe num dia, num único lugar e que haja apenas uma ação principal, um único fato. Essas regras valeram por muito tempo e foram motivo de polê- micas acaloradas entre teóricos e dramaturgos. O mínimo que se chegou a dizer, durante um período, foi que Shakespeare era um bárbaro, pois não respeitava essas leis tão essenciais ao funcionamento do bom drama – e só depois Goethe e Schiller resgataram o bardo inglês como o maior autor teatral existente até aque- la época.

Assim, podemos ver como seria uma análise destas três unidades no que concerne ao Absurdo.

AS TRÊS UNIDADES E O ABSURDO

Ironicamente, podemos analisar uma peça absurda a partir das referências que os próprios autores tentaram implodir. Justo por ser uma implosão, há uma he- catombe interna, estruturas são abaladas, mas a base, o esqueleto da obra, man- têm-se em pé. Abaixo, podemos ver mais especificamente com as três unidades – regra básica dos dramas domésticos.

No documento A herança do absurdo (páginas 80-84)