• Nenhum resultado encontrado

Unidade de ação

No documento A herança do absurdo (páginas 87-90)

Aristóteles dizia, em sua Poética (1996, p. 39), que “é preciso que a fábula, vis- to ser imitação de uma ação, o seja única e inteira”. O filósofo grego defendia que, para que a fábula de fato fosse contada de forma perfeita numa tragédia, era necessário fazê-lo a partir de uma única ação. Os teóricos posteriores, que caricaturaram Aristóteles, chegaram ao radicalismo de dizer que qualquer outra ação seria nociva à trama, pois o gênero dramático trazia em si essa univocida- de fundamental para que fosse puro, efetivo e perfeito. Neste ponto, a obra de Tchekhov vai diferir totalmente das obras absurdas.

Tchekhov representa o apogeu e a decadência do Realismo/Naturalismo. Sua dramaturgia serviu tanto ao método de Stanislávski como à ideia de um teatro de alma, lírico, preconizado por Meyerhold. Estão nele o princípio e o fim do Realismo.

Ao tratar de assuntos cotidianos, o autor russo acaba criando situações mui- to mais próximas do que Zola (1982) talvez pensasse ser um tranche de vie; um pedaço de vida. As cenas de Tchekhov são situações cotidianas, mínimas, mini- malistas até, em que os sentimentos, na maioria das vezes, não afloram. Suas pe- ças tratam das frustrações de seres atordoados por uma existência de fracassos, e Tchekhov inspira-se nas pequenas ações dos personagens para tratar disso. Ele vai à filigrana dos sentimentos de cada um para, no íntimo, tocar o infinito da alma humana.

Para isso, há uma clara necessidade de criar histórias paralelas, conflitos diversos, juntamente com uma construção de personagens minuciosa e sensí- vel. E nesse outro ponto ele se afasta do que preconizavam os radicais franceses

presos às regras das três unidades; há, na obra de Tchekhov, um “desrespeito” à unidade de ação.

Que ação única e inteira poderíamos encontrar numa peça como Tio Vânia ou A gaivota, peças onde a inação e o despedaçar de sentimentos é que com- põem a cena? O criador de alguns dos mais belos personagens da história do teatro – não à toa um dos dramaturgos prediletos dos atores – teve, em sua cria- ção, a necessidade de aprofundar conflitos mínimos de personagens, enriquecer desejos vários na cena, dissolvendo a ação em pequenas tramas irresolutas.

A dramaturgia seguia um caminho quase que natural, inevitável. A procura por uma riqueza de detalhes e sentimentos, pela criação de personagens com- plexos e densos, tudo isso acabaria por acarretar uma cisão com as regras do passado. O teatro, para ser mais real, fugia do Realismo.

Com o Absurdo, ao contrário, essa ideia de uma unidade de ação é funda- mental. E o esvaziamento da linguagem no Absurdo garante que haja uma única e sólida ação, por mais que essa ação seja algo próximo de uma inação.

Martin Esslin (1968), analisando a peça O novo inquilino, de Ionesco, diz:

O novo inquilino é um espetáculo de apavorante simplicidade. O diálogo (entre o inquilino e o porteiro resmungão e avarento; entre o inquilino e os carregadores) é reduzido a um papel secun- dário. Primordialmente trata-se de uma peça sobre objetos que se movem, objetos que dominam o homem, sufocando-o num mar de matéria inerte. Uma única imagem poética é paulatinamente elaborada ante nossos olhos, a princípio com uma certa surpre- sa, depois com inexorável inevitabilidade. É uma demonstração das possibilidades do teatro puro: os conceitos de personagens, conflito, construção de enredo, foram abandonados; e no entanto O novo inquilino permanece um drama com ‘suspense’ crescente, excitação e força poética. (ESSLIN, 1968, p. 148)

Percebe-se, nesta citação, a ideia precisa de uma dramaturgia voltada para uma única e inteira ação, como queria Aristóteles. Dissociada das ideias de sen- timentos profundos, questões psicológicas, traumas passados e ações equívocas das personagens, a dramaturgia Absurda acaba por se concentrar ainda mais no essencial e, assim, dar à ação um caráter único e preciso. Vê-se, na análise de Esslin, que essa ação aparentemente vazia de um sentido profundo do drama é talvez mais ação do que as perpetuadas pelo Realismo/Naturalismo, pois é uma ação real, uma ação prática, objetiva, portanto teatral.

Com a necessidade de traduzir num único conflito, de caráter existencial e até mesmo metafísico – travestido numa superficialidade e num humor muitas vezes beirando o circense – uma ideia de mundo, o Absurdo concentra sua his- tória numa questão essencial.

As peças absurdas dilatam uma ideia central e confundem a ideia com a ação. Os personagens criam a ação no exato momento em que começam a atuar, e todo o decorrer da peça será em função do que está sendo feito para que esse tempo passe. É o conflito do momento que vai alavancar a peça. Com isso, a ideia de subjetividade se torna relativa, pois a partir do momento em que é confiden- ciado ao espectador o estado de alma do personagem, naturalmente esse confli- to é gerado e uma ação imediata acontece. Os vagabundos de Esperando Godot e os velhos de As cadeiras agem conforme o grande conflito da peça. Esperam. E preenchem esse tempo com “teatro”.

Percebe-se que, mesmo pela via negativa ou desloucada, o Absurdo curiosa- mente acaba por espelhar (em imagens distorcidas?) as regras que tão radical- mente foram estabelecidas como modelos de uma peça bem-feita. O Absurdo, assim, acaba por se aproximar de um teatro puro. Ação, tempo e lugar concentra- dos numa única ideia que gira em torno de si. Pretende ser o teatro em sua forma mais pura e imediata de apreciação. Uma sequência de acontecimentos que, por

estarem desprovidos de soluções, desejos, conflitos e tramas, jamais se desviam do tema central que oprime e condensa a cena.

Um espetáculo que aconteça num único ambiente, concentrado em apenas uma ação, e onde o tempo transcorra tal qual como se fosse o tempo da plateia, talvez seja a armadilha perfeita para, através dos desloucamentos, tirar do eixo o espectador acostumado à cena tradicional to teatro burguês.

No documento A herança do absurdo (páginas 87-90)