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Irrelevância do vocábulo usado para a determinação do instituto

5 DIFERIMENTO

5.4 Irrelevância do vocábulo usado para a determinação do instituto

Segundo visto até o presente momento, especialmente pelos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais citados, bem como se pretende comprovar por meio da análise de alguns dispositivos da legislação paulista do ICMS que a seguir serão tratados, sob o signo linguístico diferimento, na verdade, existe uma série de institutos jurídicos distintos, o que dificulta sua exata compreensão por parte dos destinatários da norma271. Não podemos esquecer

que o texto, o suporte físico, é “[...] o ponto de partida para a formação das significações e, ao mesmo tempo, para a referência aos entes significados, perfazendo aquela estrutura triádica ou trilateral que é própria das unidades sígnicas”272. Como reforço à assertiva acima, relevante a continuidade das lições de Paulo de Barros Carvalho:

Vê-se, desde agora, que não é correta a proposição segundo a qual, dos enunciados prescritivos do direito posto, extraímos o conteúdo, o sentido e o alcance dos comandos jurídicos. Impossível seria retirar conteúdos de significação de entidades meramente físicas. De tais enunciados partimos, isto sim, para a construção das significações, dos sentidos, no processo conhecido como interpretação273.

Geraldo Ataliba, em obra conjunta com Paulo de Barros Carvalho e Rubens Gomes de Souza, referindo-se aos problemas com a nomenclatura dada aos tributos, deixa claros os entraves que podem advir dessa falta de técnica e

271 “Prescrições normativas só podem guiar a conduta humana se os seus destinatários puderem compreender aquilo que elas prescrevem” (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no direito. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 320).

272 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009. p. 186.

273 Ibid., p. 188.

precisão legislativas, bem como o equívoco de se apegar somente à expressão linguística contida no suporte físico para chegar ao instituto jurídico:

[...] no Brasil – já por causa deste fato universal, do arbítrio absoluto do legislador no batizar os institutos jurídicos – as curiosidades mais fantásticas, não só no campo da confusão, consistente em designar por contribuição o que seja imposto; em designar taxa o que seja imposto, ou contribuição, e vice-versa, mas ainda a fantasia do legislador nas designações dadas a certos tributos, como salário-educação, depósito, empréstimo e outras que absolutamente não indicam como seria de rigor a natureza do instituto que estaria sendo batizado. [...] a persistência do vício, até mesmo da nossa magistratura, mesmo do Supremo Tribunal Federal, de ainda se apegar ao nomen juris, ao contrário de buscar no instituto a sua natureza específica, ou, em outras palavras, a determinação da espécie tributária da qual se cogita274.

Assim sendo, e na trilha epistemológica dos estudos sobre a linguagem e a semiótica275, afirmamos que não é com a mera análise da nomenclatura

presente no suporte físico diferimento que encontraremos o instituto jurídico, sua consequente natureza e o regime ao qual deve seguir no ordenamento jurídico. Até porque,

No direito, o que há é a interação. Interação entre normas, na medida em que o direito é constituído por normas; entre sujeitos de direito; entre regimes jurídicos; interação entre textos; entre contextos; entre enunciações; interações entre interações. O uso da língua do direito, assim, só pode ser em um universo em que

274 SOUSA, Rubens Gomes de; ATALIBA, Geraldo; CARVALHO, Paulo de Barros. Comentários ao código tributário nacional: parte geral. 2. ed São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 40.

275 Segundo Nicola Abbagnano, o termo semiótica foi inicialmente utilizado para indicar “a ciência dos sintomas em medicina […], foi proposto por Locke para indicar a doutrina dos signos, correspondente à lógica tradicional […] Na filosofia contemporânea, E. Morris utilizou o conceito de S. como teoria da semiose (v.), mais do que os signos, dividindo a S. em três partes, que correspondem às três dimensões da semiose: semântica, que considera a relação dos signos com os objetos a que se referem; pragmática, que considera a relação dos signos com os intérpretes; e sintática, que considera a relação formal dos signos entre si” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, s.v. semiótica).

um interage com o outro; e só há significação jurídica nesse contexto interativo276.

Ademais, não podemos olvidar que a clareza277 normativa, nem sempre

alcançada pelo poder legiferante, é imprescindível para que os administrados tenham segurança em suas relações. A falta de clareza sobre a conduta que a norma pretende disciplinar, como ocorre nos casos de diferimento em matéria de ICMS, não é benéfica à aplicação do direito. Na linha do quanto esposado por Humberto Ávila, acreditamos que a clareza poderia ser mais bem atingida nesta seara com o aumento das informações contidas no texto:

A clareza somente é obtida por meio de uma dose de informações. Falta de informação causa insegurança: sem especificação apropriada, na norma, da conduta a ser adotada o destinatário fica incapacitado de obedecer a ela, pela ausência da fixação do comportamento a seguir. O destinatário sabe que deve fazer algo, mas esse algo não está definido278.

De outro lado, também adverte o mesmo doutrinador sobre a prejudicialidade do excesso de informações:

Excesso de informações também causa insegurança: uma quantidade demasiada de especificações, que se entrecruzam e se contradizem, dependendo do ângulo por meio do qual sejam analisadas, igualmente impede o destinatário de obedecer a um comando, pela falta de fixação de qual comando deve ser

276 McNAUGHTON, Charles William. Hierarquia e sistema tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 38.

277 “Se o Direito serve para guiar as pessoas, elas devem ter condições de saber o que ele significa. Por isso o seu sentido deve ser claro, porquanto um Direito ambíguo, vago, obscuro ou impreciso termina por enganar ou por confundir pelo menos aqueles que desejam ser guiados por ele. Daí se afirmar que a inteligibilidade das normas requer clareza e precisão, sendo essa condição de existência daquela. Não por outro motivo a própria Lei Complementar n. 95/98 estabelece critérios para incrementar tanto a clareza quanto a precisão das normas (art. 11, I e II, respectivamente)” (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no direito. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 321-322).

278 Ibid., p. 321.

obedecido. O destinatário sabe que deve fazer algo, porém este comando é contraditoriamente definido279.

No caso ora analisado, acreditamos que o problema seja a falta de informações e, mais precisamente, a não estipulação do uso do vocábulo diferimento para se referir a somente um instituto jurídico, o que gera as discussões doutrinárias e jurisprudenciais em seu entorno, especialmente, pois não há, como dito, o uso da expressão linguística para se referir apenas a um instituto.

Mais claramente, não é porque o legislador usou o vocábulo diferimento ao elaborar o suporte físico em sua atividade legiferante que, realmente, estaremos diante de um instituto com esta natureza, ao menos, não na definição restrita proposta por este estudo, no tópico 5.5.1.

A cada uso da palavra diferimento nos textos legais, os quais servem de ponto de partida para que o intérprete possa construir as normas jurídicas, deverá ser feita uma análise apurada e sistemática, com a finalidade de identificar o real instituto jurídico e sua natureza jurídica, a fim de chegar ao regime jurídico que lhe deve ser aplicado e, somente depois disso, poder analisar a incidência ou não do princípio da não cumulatividade, bem como a necessidade de prévia aprovação pelo CONFAZ e, ainda, o respeito aos princípios da legalidade e da anterioridade.

Faz-se mister ressaltar que essa preocupação com a precisão linguística, além de ser imprescindível para o discurso científico280, é de sobressaltada

279 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no direito. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 321.

280 “De minha parte, limito-me a observar que a produção de um texto científico reivindica o desenvolvimento de forte processo de artificialização da linguagem, governado pelo objetivo da univocidade dos termos empregados. Muito certo que essa univocidade seja intangível, dada a vagueza que as palavras ostentam, além da tendência à ambiguidade, característica que aparece com bastante nitidez nos discursos das

relevância prática, pois, para que surja o direito ao crédito, o importante é o instituto jurídico encontrado e não o vocábulo usado, até porque, reafirmamos, sob o manto de um mesmo suporte físico, poderemos encontrar variados institutos jurídicos.

A ideia que defendemos é de que a legislação paulista usa o vocábulo diferimento para institutos jurídicos que devem ser alocados em grupos distintos dentro de um critério classificativo, especialmente relevando que

As classificações levam em consideração as semelhanças e dessemelhanças existentes entre diversos objetos componentes do conjunto analisado. A diferença é o atributo que distingue duas espécies entre si, enquanto a diferença específica é a característica que aparta a própria espécie, do gênero que a compreende. No âmbito da Ciência do Direito, as classificações são utilizadas como métodos para a apreensão de fenômenos normativos que se submetem a regimes jurídicos distintos281. E sobre a importância de encontrar o correto instituto jurídico inserido no ordenamento, são relevantes as palavras de Geraldo Ataliba, ainda que se referindo à classificação dos tributos:

Como, entretanto – conforme a espécie de tributo – diversos são os regimes tributários, deverá o exegeta determinar qual a espécie diante da qual se encontra, a fim de lhe aplicar o regime jurídico correto e adequado em face das normas constitucionais e à luz dos princípios que a Constituição prestigia ou adota282.

ciências não formais, sobremaneira instáveis no plano semântico, e ficando, desse modo, mais longe da meta proposta. Aquilo que se pode exigir, então, é a procura, a tendência, a inclinação do espírito ao uso unívoco dos termos científicos. Nesse traço residirá, penso, o teor da cientificidade do discurso” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência tributária. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 112).

281 MARQUES, Márcio Severo. Classificação constitucional dos tributos. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 145.

282 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 115.

As consequências desta assertiva ficarão deveras claras quando se analisar o direito ao crédito, consectário da não cumulatividade, relevando-se o real instituto jurídico contido na expressão diferimento, bem como quando se aferir a necessidade de prévia aprovação do CONFAZ ou a aplicação dos princípios da legalidade e anterioridade.