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Irresponsabilidade estatal pela edição de atos legislativos Insuficiência de

4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO LEGISLATIVO

4.1 Irresponsabilidade estatal pela edição de atos legislativos Insuficiência de

A responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, em termos cronológicos, foi a última a se firmar, consolidando-se em momento posterior às responsabilidades por atos administrativos e judiciais. Tal circunstância é também constada por Octávio de Barros, quando afirma que “a responsabilidade do Estado por dano resultante da aplicação da lei é que no direito público surge cronologicamente em último lugar, tanto que inúmeras nações não a afirmaram”51.

Tal fato se deve às peculiaridades que a função legislativa encerra. A função administrativa, que consiste na consecução de medidas destinadas ao atendimento das necessidades coletivas, e a função judicante, destinada a efetivar a ordem jurídica nos casos concretos, são determinadas pela ordem legal vigente, ao passo em que a função legislativa não se condiciona a tais limites, possuindo o poder de alterar a ordem jurídica estabelecida. A cada edição de um ato legislativo é inovada a ordem jurídica até então vigente.

Após a consolidação do modelo de tripartição dos poderes, conforme sistematizado e idealizado por Montesquieu, a função legislativa constituiu um relevante mecanismo de limitação do poder do Estado, configurando forma de atuação primária do ente estatal, já que a lei, como seu produto, condiciona o exercício das demais funções estatais.

Essa aparente preponderância da função legislativa sobre as demais (administrativa e judicial) levou inúmeros juristas a, embora admitindo a responsabilidade civil estatal, negar veementemente a responsabilização do Estado quando se tratar de danos ocasionados por um ato legislativo.

Inúmeros foram os argumentos utilizados para defender a tese da irresponsabilidade estatal pela prática de atos legislativos. Em específico e profundo estudo sobre o tema, Maria Emília Mendes Alcântara52 compila os mais correntes argumentos utilizados, que seriam: a) soberania do Poder Legislativo; b) consistir a lei em norma geral, impessoal e abstrata, do que decorre ser incapaz de acarretar lesões a terceiros; c) a lei não violar direitos anteriores, porquanto, a contar de sua vigência, modifica a disciplina da lei revogada; d) responsabilidade estatal pela edição de normas legais entrava a evolução legislativa; e) o particular atingido é de ser tido como autor da lei, tendo em vista que, na qualidade de cidadão, elege os representantes incumbidos de elaborar o diploma legal.

Como se vê, os defensores da irresponsabilidade do Estado por danos causados por atos legislativos aduzem diversos argumentos para sustentar tal posicionamento. Muitas das justificativas são, prima facie, convincentes. Entretanto, uma análise mais aprofundada e detalhada das mesmas leva a se verificar que são frágeis os fundamentos e que não possuem sustentação diante do regime constitucional a que estamos submetidos.

Um dos primeiros argumentos em prol da irresponsabilidade do Estado por atos judiciais é a soberania do Poder Legislativo.

Sobre a soberania, Araújo Castro, citando Willoughby (1938, p. 37 apud CRETELLA JÚNIOR, 1970, p. 21) informa :

Citando WILLOUGHBY,o nosso Araújo Castro diz que “a soberania reside no Estado como um atributo inerente à sua personalidade, e não em qualquer dos órgãos do Governo, nem mesmo no conjunto desses órgãos, aos quais compete unicamente o exercício da soberania, dentro dos limites traçados na Constituição (A Constituição de 1937, Rio, 1938; p.37) porque a “idéia de soberania tem, como notas características, a unidade e a totalidade”[...]

52 ALCÂNTARA, Maria Emília Mendes. Responsabilidade do Estado por Atos Legislativos e Jurisdicionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p.54-56.

Destarte, resta claro que a suposta soberania do Poder Legislativo não é um argumento válido para se defender a irresponsabilidade do Estado por atos legislativos. A soberania não é do Poder Legislativo, e sim do Estado. O Poder Legislativo exerce precipuamente uma das funções do Estado, este sim possuindo a denominada soberania.

Ademais, ainda que se considerasse que o Poder Legislativo, por ser o detentor de uma das funções do Estado, tivesse soberania, seria forçoso reconhecer que o Poder Executivo, que também exercita precipuamente uma função do Estado, também detivesse a dita soberania. Considerando-se que os atos da Administração Pública podem ser responsabilizados de forma objetiva, conforme examinado acima, levar-se-ia, por conseguinte, a conclusão de que os atos legislativos também o poderiam ser. Assim sendo, a tese de que a soberania eximiria o Poder Legislativo de responsabilização por atos de natureza legislativa não teria sustentação.

Examinemos agora o argumento que sustenta a irresponsabilidade estatal com fundamento na abstração e generalidade do ato legislativo. A princípio, não se pode duvidar que, em emitindo comandos gerais e abstratos, a lei se impõe de forma igual para todos, de sorte a não poder cogitar-se de danos de sua aplicação. O argumento, entretanto, apresenta lacunas. Isto porque não se pode desconhecer que a crescente intervenção estatal tem acarretado o fenômeno pelo qual a lei, visando a tutelar o interesse coletivo, culmina por impor sacrifícios especiais e anormais à determinada parcela de administrados. Ademais, o mito, tributado a Rousseau, de que a lei não pode conter injustiça, em virtude de representar a decisão de todo um povo (vontade geral), deliberando para a coletividade inteira, por intermédio de normas gerais e comuns, não mais resiste aos tempos contemporâneos, sendo prova insofismável disto a supremacia da Constituição, justificativa para a invalidação judicial dos comandos de uma lei que se revele incompatível com os ditames da Carta Magna.

Quanto ao argumento de que a lei não viola direitos anteriores, porquanto, a contar de sua vigência, modifica a disciplina da lei revogada, pontua-se, primeiramente, que não se duvida que a lei nova, quando ingressa no mundo jurídico, traz inovações frente ao direito preexistente, até porque é sabido que o legislador constitui instrumento do progresso social, devendo sua ação acompanhar o ciclo evolutivo da coletividade. Contudo, com isso querer afirmar que se afasta a possibilidade do ato legislativo conduzir à responsabilização estatal porque os direitos antigos perdem a existência com a entrada em vigor de nova ordem é, indubitavelmente, aniquilar a proteção dos direitos adquiridos que, no caso brasileiro, possui

status de garantia constitucional. Esta circunstância, por si só, afasta a incidência desse raciocínio no ordenamento jurídico pátrio.

A alegação de que a admissão da responsabilidade civil poder conduzir à estagnação da atividade legislativa não merece, igualmente, ser aceita. Ora, não mais se debate, na atualidade, sobre a possibilidade de o Estado indenizar danos que a sua atividade administrativa pode acarretar a terceiros, e tal ponto de vista, em momento algum, chegou a eliminar a dinâmica necessária ao proceder da Administração.

A circunstância de o cidadão, nas democracias representativas, participar da feitura das leis mediante a escolha de seus representantes não exclui a responsabilidade aqui enfocada. Isso porque também nas democracias o cidadão escolhe os dirigentes máximos da Administração, através da eleição dos chefes do Poder Executivo, e nem por isso se chega a cogitar da exclusão da responsabilidade pela atividade dos funcionários públicos, os quais, quase sempre, atuam em obediência às determinações hierárquicas daqueles.

Finalmente, conforme visto no capítulo anterior, a norma consubstanciada no art. 37, § 6º não faz qualquer distinção, para fins de configuração da responsabilidade estatal, acerca da espécie de agente público que venha a praticar o ato danoso. Em verdade, todos os agentes

públicos, possuam eles com o Estado vínculo de natureza institucional ou profissional, permanente ou temporária, todos estão contemplados no aludido dispositivo constitucional, inclusive, como é óbvio, os membros do Poder Legislativo, de tal sorte que, à luz do texto constitucional, os atos praticados por tais agentes podem perfeitamente gerar o dever estatal de reparar o dano.

A doutrina do Professor José Joaquim Gomes Canotilho53 prevê a plena possibilidade de responsabilidade estatal por atos legislativos, senão vejamos:

A ‘responsabilidade do Estado legislador’ por actos ilícitos cabe também no âmbito de protecção do art. 2º- da CRP. Embora se costume argumentar a favor da irresponsabilidade do Estado por facto das leis com a idéia de a disciplina da lei ser geral e abstracta, deve ponderar-se que: (1) algumas leis ‘declaradas’ou ‘julgadas’

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