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Isabel Cristina de M Carvalho* Gabriela Sampaio**

No artigo O conceito de história, antigo e moderno, Arendt discute as diferenças entre o conceito de história e natureza entre os antigos, particularmente os gregos, e os pensadores da época moderna. Como nos mostra a autora, para os gregos

daquela época não existe a idéia de natureza, tal como a entendemos hoje. O que compreende todas as coisas vivas no mundo grego é a physis. A physis abarca todas as coisas que vêm a existir por si mesmas, sem assistência dos humanos. Coisas que existem para sempre e por isso não necessitam da recordação humana para sua existência futura. Todas as criaturas vivas, inclusive a humanidade enquanto espécie (mas não as pessoas enquanto indivíduos mortais), pertencem a esse ser-para-sem- pre. A physis é o lugar da ordem e da regularidade, do movimento perpétuo e inte- ligente e se desvela como um fenômeno exterior ao humano, é auto-evidente. Neste sentido, pode-se dizer que o pensamento grego quer saber como as coisas vieram a existir, mas não duvida de sua existência.

Há duas palavras no mundo grego que nomeiam diferentes sentidos da pa- lavra vida: Zoe e Bios. Zoe designa o simples fato de viver, fato comum a todos os seres vivos. Nomeia a condição da vida biológica, que não é a vida do sujeito políti- co, mas apenas a vida reprodutiva. Bios, por sua vez, designa a forma ou maneira de viver própria de um grupo. Por exemplo, pode designar a vida contemplativa (bios

theoreticós), a vida de prazer (bios apolausticós) ou a vida política (bios politicós). Em

todo caso, é sempre uma vida qualificada. A existência biológica do ser humano, en- quanto animal de uma espécie (humana), partilha da condição da vida como Zoe. A existência do indivíduo humano, contudo, para além de sua condição de Zoe, parti- cipa também da dimensão da vida como Bios, na medida em que se constitui como uma história identificável do nascimento à morte, retilínea, irrepetível e mortal, que secciona transversalmente o ciclo repetitivo da vida biológica e do ser para sempre, e cujos feitos podem se tornar imortais.

O que pode tornar a ação humana um feito imortal ou memorável, isto é, que transcende a condição de acontecimento biológico, é a narrativa da poesia e/ou da história – que neste período do mundo grego se sobrepõem. A História se apre- senta, desta forma, como uma ponte entre a imortalidade da physis e a mortalidade do humano. É o modo próprio do humano acessar a condição de imortalidade. O exemplo emblemático é o do poeta e o historiador Heródoto, cuja tarefa é a da imortalização pela recordação dos grandes feitos humanos. Também Homero, na Odisséia, narra a cena de Ulisses escutando a própria história de seus feitos e sofri- mentos, como um objeto fora dele. Esta cena poderia ser considerada a matriz da

1 Arendt entende moderno como o período que se inicia com a Renascença, marcando as grandes mudanças em relação à antigüidade e ao período medieval, e segue até o final do séc. XVIII.

idéia de tragédia grega, na medida em que aponta para a imitação da ação (mimeses), a narração catártica de feitos e eventos singulares os transforma em “História”, pela via da memória, o que lhes confere duração após seu acontecimento no mundo da vida mortal. A imortalidade que confere valor ao feito humano somente pode ser obtida através do feito heróico que transforma o ato mortal em objeto da narrativa, ou seja, que o transforma em história. Assim, através da história os humanos têm acesso à condição de imortalidade.

Arendt nos mostra como a relação entre physis, existência humana e história se transforma na modernidade. Na passagem da antigüidade grega clássica, para o mundo romano e cristão, uma mudança importante acontece. Juntamente com a decadência do mundo clássico grego se perde em grande parte a noção de physis. Aparece então o conceito de natura, palavra romana aplicada à natureza que já não mais compartilha do sentido holístico da physis. O conceito de natureza moderno é herdeiro da concepção de natureza da civilização romano-cristã.

A natureza no sentido romano-cristão, cuja tradução latina natura está na origem etimológica e cultural do nosso conceito de natureza, diferentemente da noção grega de physis, é desprovida de inteligência e vida, incapaz de ordenar seus próprios movimentos. A natura está submetida às leis que lhe impõem uma re- gularidade desde o exterior, ou seja, as “leis da natureza”. Quem regula as leis da natureza é uma ordem divina que está fora do mundo. O mundo natural não é mais um grande organismo vivo, um ser, mas uma coordenação de organismos, impelidos e destinados para um fim determinado por um espírito inteligente que lhe é exte- rior: o Deus Criador e Senhor da natureza. Os seres humanos, enquanto criados por Deus, passam a ser imortais, enquanto a natureza é mortal. Inverte-se aqui o modelo grego, onde a physis era eterna e a vida do indivíduo humano era mortal. Segundo Arendt, a idéia de natureza romano-cristã prepara, através dos séculos, o contexto cultural para a Revolução Industrial e sua cosmogonia de um Deus como relojoeiro da natureza.

Diferentemente da experiência de contemplação da physis, na modernidade a relação com a natureza é marcada pela dúvida cartesiana. Está posto, para os modernos, a questão dos enganos dos sentidos2. Em Copérnico, por exemplo, a

terra, ao contrário da evidência dos sentidos, gira em torno do sol. A invenção do telescópio por Galileu desmente o olhar da experiência sensível, fonte de erro e ilusão. A ciência moderna baseia-se no Experimento, que é uma pergunta for-

2 Sobre a desconfiança dos sentidos e a busca de uma verdade sem enganos, ver neste livro o artigo de Mauro Grün sobre Descartes, um pensador fundamental na formulação filosófica do pensamento moderno.

mulada à natureza. As respostas da ciência serão sempre réplicas das perguntas formuladas pelos humanos. Há uma profunda revisão das noções de objetividade, de neutralidade e de não interferência que guiou a ciência natural clássica (aristo- télica) e medieval, que consistia na observação e catalogação dos fatos observados e pressupunha a existência de respostas sem questões e resultados independentes de um sujeito formulador.

A natureza, na visão romano-cristã, não é mais imutável, mas sujeita à mu- dança. A concepção histórica da mudança ou processo foi aplicada à natureza e resultou na noção de “evolução” do mundo natural. A experiência contemporânea confere grande centralidade aos estudos históricos e, nestes, aos conceitos de pro- cesso, evolução, mudança e progresso. A mudança já não é cíclica, mas progressiva. O que foi considerado no pensamento clássico um movimento de rotação ou cir- cular, por exemplo, passa a ser considerado na modernidade um movimento em espiral, em que o raio está constantemente a mudar ou o centro é incessantemente deslocado, ou ambas as coisas.

Todas estas mudanças, para Arendt, vão criar as condições para que na con- temporaneidade nos vejamos diante dos riscos e oportunidades do desenvolvimento da tecnologia, que instaura processos na natureza, que não ocorreriam sem a inter- ferência humana. Diferentemente do mundo grego, quando os humanos almejavam compartilhar do destino imortal da physis, na contemporaneidade é a natureza que, de certa forma, compartilha do destino imprevisível e irreversível da ação huma- na no mundo. Como afirma Arendt: “Fazemos natureza como fazemos história” (ARENDT, 2000b, p. 89).