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O uso industrial do chumbo teve impacto direto nos níveis de chumbo no sangue da população em geral. Em 1960, essa dose foi estimada acima de 20 µg/dL, mas foi caindo até 13 µg/dL, no final dos anos 70 e 3,5 µg/dL na última década.(51) Um estudo populacional brasileiro, publicado neste ano,(24) encontrou uma média de 1,97 µg/dL (IC 95%; 1,9 - 2,04 µg/dL). Ambos os estudos identificaram o gênero, a raça e a idade como fatores de risco para os níveis de chumbo no sangue. De acordo com a literatura, o nosso grupo controle apresentou a média de 2,17 ± 1,53 µg/dL. Neste estudo, os grupos foram pareados em gênero, raça e idade para minimizar os efeitos desses fatores de confusão.

Farrell e col.(5) publicaram o primeiro estudo que descreveu associações entre feridas por armas de fogo e os níveis de chumbo no sangue. Eles encontraram médias de 17 ± 9,78 µg/dL nos casos e 7 ± 3,77 µg/dL nos controles, com significância estatís- tica. Ambas as médias foram mais elevadas do que no nosso estudo, o que sugere uma exposição ambiental mais elevada. Deve-se considerar que o trabalho foi publi- cado na década de 90, não definiu o período da coleta dos dados, nem o local e não registrou a profissão de mais da metade dos pacientes. Todos esses fatores podem ter contribuído para essa diferença nas médias entre os trabalhos.

McQuirter e col.(6) estudaram prospectivamente uma amostra de 451 indiví- duos com projéteis alojados. Houve uma tendência no aumento dos níveis de chum- bo no sangue durante os primeiros 6 meses depois do trauma e a estabilização após esse tempo. Em razão disso, no nosso estudo transversal, incluímos somente os indi- víduos cujos traumas já haviam ocorrido há mais de 6 meses. Eles consideraram três fatores como preditivos dessa elevação: número de fragmentos, fraturas em ossos do tronco e fragmentos de projéteis no úmero. No nosso trabalho, nem o número de fragmentos e nem a localização mostraram-se correlacionados com a intoxicação. As- sim como nós, eles recomendaram o monitoramento anual do chumbo no sangue, desde a admissão hospitalar. Estudos prospectivos permitem as conclusões de rela-

ções causais com um controle mais adequado dos fatores de confundimento. No en- tanto, no nosso meio, os indivíduos com projéteis alojados têm preocupações com a segurança pessoal e dificilmente submetem-se a esse modelo de estudo. Apesar des- sas diferenças metodológicas, eles observaram que, aos 12 meses, a prevalência de indivíduos com mais de 10 µg/dL foi de 20,1% e 2,6% para aqueles com mais de 20 µg/dL. No nosso trabalho essa prevalência no grupo caso foi de 31,11% e 6,66%, res- pectivamente. No grupo controle não houve indivíduos com valores acima desses limites.

Um estudo tipo caso-controle(7) com 120 pacientes que possuíam projéteis de arma de fogo alojados fora das articulações, encontrou médias de 6,71 (IC 95%, 5,68 - 7,74) µg/dL e 3,16 (2,79 - 3,53) µg/dL, nos casos e nos controles, respectivamente, com diferença significativa pelo teste t pareado (p = 0,0001). Eles também mostraram a associação entre fraturas recentes e a elevação dos níveis de chumbo. Esses autores sugeriram que o monitoramento das doses de chumbo no sangue poderia beneficiar os pacientes, especialmente aqueles que passarem por episódios que aumentassem o estresse metabólico. Esse foi o trabalho que mais se assemelhou com o nosso, tanto pelo método utilizado, quanto pelos resultados obtidos. Eles também não encontra- ram relação entre o número de fragmentos e a elevação do chumbo no sangue. Po- rém, ao contrário, o estudo deles não verificou uma elevação dos sintomas no grupo de casos.

Em 2014, Moazeni et al.(67) compararam 25 pacientes com projéteis alojados no corpo e o mesmo número de voluntários sem a exposição ao chumbo. Os resulta- dos foram médias de 29 (± 12,8) µg/dL e 25,3 (± 6,4) µg/dL nos grupos casos e con- troles, respectivamente, sem significância estatística para a diferença (p = 0,3). No en- tanto, eles confirmaram os estudos prévios que mostraram que não há associação en- tre períodos longos de alojamento dos projéteis e a elevação dos níveis de chumbo. Mas eles verificaram que os indivíduos com maior número de fragmentos no corpo tinham doses maiores de chumbo no sangue (p = 0,025). O nosso estudo encontrou níveis de chumbo no sangue do Grupo A (casos) entre 1,1 µg/dL e 61,8 µg/dL, com

médias e desvio padrão de 9,01 ±9,8. No Grupo B (controle) a média foi de 2.1 ±1.53 µg/dL. A análise estatística mostrou a diferença significativa entre os níveis de chumbo dos dois grupos (p < 0,001). Essa diferença sugere que os indivíduos incluí- dos no grupo controle no estudo deles estava mais exposta ao chumbo do que a nos- sa população geral. Isso pode ocorrer devido a um fator ambiental ou ocupacional de exposição que não foi controlado, podendo, pois, ter influenciado na diferença entre as médias e, consequentemente, nesse resultado discrepante com a literatura.

A Norma Reguladora número 7, publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego,(68) estabelece que 40 µg/dL é o valor aceitável de chumbo no sangue de in- divíduos não expostos. Essa diretriz considera que o índice biológico máximo permi- tido para trabalhadores expostos é de 60 µg/dL. Apesar das nossas médias terem fi- cado abaixo do valor da referência laboratorial usado no Brasil, vários estudos têm associado níveis baixos de chumbo ao aumento da morbidade e da mortalidade. Nessa linha, a Organização Mundial da Saúde considera que “Não há um nível co- nhecido de exposição ao chumbo que seja considerado seguro”.

Sanders et al.(35) publicaram uma ampla revisão da literatura sobre os efeitos neurotóxicos da exposição ao chumbo. O metal pode facilmente perfundir por prati- camente qualquer órgão ou sistema. A toxidade nos órgãos alvos é muito variada, mas é especialmente importante no sistema nervoso central. Há preocupações sobre o impacto da exposição crônica na cognição e na mortalidade. Coon et al.(45) estudaram a exposição crônica ao chumbo e confirmaram que é um fator de risco para a doença de Parkinson. Khalil e col.(42) acompanharam durante 12 anos, em uma coorte pros- pectiva, 533 mulheres entre 65 e 87 anos de idade. Eles compararam indivíduos com a concentração de chumbo no sangue acima e abaixo de 8 µg/dL. Foi evidenciado um aumento de 3 vezes no risco de morte por doença coronariana e 73% de aumento na mortalidade total. Um estudo de coorte prospectiva(43) averiguou que homens com aumento de desvio padrão da média do nível de chumbo no sangue tinham o au- mento de 1,27 (IC95%; 1,01 - 1,59) no risco de doença isquêmica do coração. Fang et al.,(40) no estudo tipo caso-controle, destacaram o aumento do risco de esclerose late-

ral amiotrófica, mesmo em níveis de chumbo extremamente baixos. As médias das dosagens deles ficou em 1,76 µg/dL (amplitude de 0,32 - 6,90) nos controles e 2,41 µg/dL (amplitude de 0,72 - 7.58). Um editorial do periódico Circulation,(44) em 2006, alertou: “Baixo nível de exposição ambiental ao chumbo desmascarado como assas- sino silencioso.” Eles discutiram que mesmo níveis abaixo de 10 µg/dL podem estar relacionados ao aumento do risco de morte. Eles ainda frisaram que níveis de 2,07 µg/dL, em adolescentes, são um perigo à saúde pública.

O Centers for Disease Control and Prevention, órgão regulador americano, esta- belece 10 µg/dL como um limite para a exposição na infância. Mas Gilbert e Weiss(17), sugerem a diminuição para 2 µg/dL, porque o cérebro em desenvolvimento é muito sensível à toxidade do chumbo. Há diversos estudos que relacionam baixos níveis de chumbo no sangue com o aumento do risco de baixo aprendizado para a leitura, aritmética e outras habilidades acadêmicas.(41) Têm sido relatadas preocupações quanto à exposição materna ao chumbo durante a gestação e a redução do desenvol- vimento intelectual das crianças expostas ao chumbo durante o período pré natal.(39) Apesar de nós não termos encontrado nenhuma mulher no estudo, a presença femi- nina nas forças de segurança tem aumentado em todo o mundo. As mulheres, solda- dos das frentes de batalha são uma população especialmente em risco. Isso acontece porque os fragmentos de projéteis retidos podem, teoricamente, prejudicar os seus filhos. Uma outra razão para a preocupação é que o chumbo armazenado no esquele- to é mobilizado durante a gestação, como foi demostrado por Gulson e cols.(31) A ele- vação do chumbo no sangue é esperada durante a gestação, o que é um fator poten- cialmente perigoso para os fetos.

Needleman et al.(38) publicaram um estudo que comparou 194 jovens entre 12 e 18 anos, presos e delinquentes adjudicados, com um grupo controle de 146 não de- linquentes, estudantes do ensino médio. Eles encontraram um aumento significativo do nível de chumbo no sangue do primeiro grupo. O nosso estudo não foi delineado para comparar comportamentos violentos, mas o nosso grupo de casos relatou mais frequentemente: irritabilidade, mau humor, dores de cabeça, perda de memória, sono

excessivo durante o dia, dores musculares, fraqueza, dor abdominal, dores articula- res, tremores e formigamentos nos membros. Isso significa uma tendência ao impacto social e na qualidade de vida.

Nos resultados, foram descritos os dados encontrados e incluída a interpreta- ção estatística correspondente. É importante esclarecer que essa forma foi escolhida para auxiliar o leitor. A plausibilidade biológica é imprescindível para a generaliza- ção dos achados neste estudo. No item 5.2., “Sintomas”, foram descritas as frequênci- as com que os voluntários responderam positivamente à listagem de sintomas. No entanto, não se pode afirmar que aquelas sejam as frequências encontradas na popu- lação geral, pois o estudo não foi desenhado para um levantamento epidemiológico. Quanto aos parâmetros de correlação e associação descritos naquele item, também não podem ser extrapolados para a população geral, pelo mesmo motivo. A interpre- tação deve limitar-se ao simples indício de que os indivíduos com projéteis alojados referiram mais frequentemente os sintomas relacionados à intoxicação por chumbo.

A lista de sintomas em um questionário foi o mesmo método utilizado por outros autores já citados anteriormente.(7, 13, 67) Dentre eles, destaca-se a dissertação de Marcio Luís Bezerra(13), apresentada à Fundação Oswaldo Cruz, em 2011. O trabalho foi realizado com policiais militares do Estado do Rio de Janeiro. Apesar de ele ter comparado apenas 7 voluntários em cada grupo, a descrição epidemiológica e o con- trole dos fatores de confundimento foram bem detalhados. Assim como no nosso es- tudo, os casos apresentaram mais sintomas do que os controles, também com signifi- cância estatística. Além disso, ele encontrou médias de 2,43 ± 0,65 e 10,49 ± 9,62 µg/ dL, respectivamente, nos controles e nos casos, as quais foram muito similares àque- las encontradas no nosso estudo.

Na avaliação da relação entre a concentração de chumbo e o número de fragmentos optamos por retirar o caso discrepante (outlier), por se tratar de um caso com um único fragmento de chumbo alojado no joelho, totalmente intra-articular, as- sociado à grande destruição osteoarticular local. Portanto, um caso com característi- cas muito diferentes das encontradas nas outras amostras. A Figura 5 e a Tabela 3,

mostram exemplos de indivíduos com dose elevada de chumbo, com um fragmento único ou com grande dispersão dos fragmentos. Assim como o contrário também foi encontrado neste estudo, demonstrando que é fraca a relação entre o número de fragmentos e a concentração de chumbo. Esses achados coadunam-se com o de Nguyen e col.(7), os quais também compararam indivíduos com projéteis alojados por até 51 anos, média de 4,6 anos. Nos trabalhos de Moazeni e col.(67) e McQuirter e col(6) houve relação entre o tempo de exposição e a dose de chumbo no sangue. Porém, ambos avaliaram indivíduos com menos de 6 anos após o trauma. Essa aparente di- vergência na literatura pode ser explicada pela fisiopatologia. Inicialmente, o metal alojado sofre a ação do processo inflamatório da reação de corpo estranho e é trans- portado para os ossos, onde fica estocado. Posteriormente, há a estabilização das ta- xas de absorção, distribuição no sangue, eliminação renal, estocagem no osso e na mobilização do estoque ósseo. Dessa forma, teoricamente, após longos períodos, a dispersão dos fragmentos passa a não influenciar mais na dosagem do chumbo no sangue.

Quanto à análise dos exames de sangue complementares, esperávamos en- contrar alterações hematológicas conforme descrito na literatura(9, 69, 70), porém isso não se repetiu nesse trabalho. Deve-se esclarecer, que os estudos como o de Yilmaz e col.(70) observaram a diminuição dos níveis de hemoglobina, do VCM, da γGT e fos- fatase alcalina nos indivíduos com exposição crônica ocupacional. No entanto, nos casos dessas variáveis, a significância estatística não pode ser considerada com signi- ficância clínica, pois, assim como no nosso estudo, todos os valores estavam dentro dos limites de referência laboratorial. Consideramos úteis os resultados dos nossos exames complementares para confirmar que as amostras dos Grupos A e B são ade- quadas para serem comparados como casos e controles, uma vez que esses exames tiveram resultados semelhantes em ambos os grupos. Dessa forma, reforçamos que a seleção foi adequada para ambos os grupo, pois apesar de não termos excluído ou controlado os voluntários com doenças associadas (diabetes, hipertensão arterial, in-

suficiência renal, hipotireoidismo, osteomielite, fraturas, osteoartrite, gastrite), os dois grupos tiveram resultados semelhantes nos exames complementares.

Na análise morfológica das hemácias encontramos as alterações típicas da intoxicação por chumbo (pontilhados basófilos).(71) Essas alterações se manifestaram em alguns indivíduos do Grupo A com baixos níveis de chumbo, o que consiste em mais uma evidência de que a intoxicação crônica ocorre nesses casos.

Uma vez que há indícios de intoxicação crônica por chumbo em indivíduos com projéteis de arma de fogo alojados nos membros ou na coluna vertebral, conclui- se que esse indivíduos devem ter o chumbo no sangue monitorado, bem como os ou- tros sintomas clínicos relacionados à intoxicação. Atualmente, enquanto ainda não estão claros os riscos e os benefícios que envolvem a remoção dos fragmentos, acredi- tamos que os pacientes devam ser informados sobre os problemas da toxidade e par- ticiparem da decisão terapêutica.

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