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Campo e cidade, sertão e litoral, rural e urbano, arcaico e moderno. São diversas as formulações dualistas encontradas nos textos de interpretação do Brasil. Em comum, estas definições trazem a ideia de um país moderno no litoral em oposição a uma nação resistente à modernização, no interior. Paradoxalmente, argumentos contrários a esta concepção, que defendem a autenticidade do sertão e a volatilidade litorânea, conviveram no pensamento social brasileiro (LIMA, 1999, p. 17). Esta linha de reflexão considera a parte pretensamente progressista da nossa sociedade como um agregado de elementos de outras nações, enquanto a porção “atrasada” e “isolada” resguardaria a identidade nacional. Isso ocorre pois o caráter conservador, refratário à mudança, historicamente atribuído ao termo sertão, pode ser lido de forma positiva ou negativa, “aproximando-se de antinomias clássicas das sociedades ocidentais: civilização e barbárie; culturas de folk e civilização ocidental; tradição e modernidade; cultura e civilização” (ibid., p. 23). Em resumo, matrizes românticas ou iluministas de abordagem do sertão convivem, especialmente entre os cientistas e intelectuais da tradição ensaística que antecedeu a institucionalização acadêmica das ciências sociais.

Nos textos sobre a nação brasileira, sertão e litoral adquirem o sentido de imagens espaciais e simbólicas relacionadas a dois tipos de ordem social e cultural. A pouca precisão geográfica dos termos revela que frequentemente se referem mais à justaposição de épocas históricas distintas do que a espaços. A ideia da existência de “dois Brasis” – atribuída, por grande parte dos sociólogos, originalmente a Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha - influencia a intelectualidade, configurando uma concepção teórica da sociedade brasileira baseada nos contrastes e polarizações. O estilo do pensamento euclidiano, que consiste em descobrir uma dicotomia à qual possa ser racionalmente atribuída a origem das crises, traçar sua formação no passado histórico nacional e propor a alternativa política para sua superação (SANTOS, 1978, pp. 44, 45 apud LIMA, 1999, p. 29), seria uma das características mais marcantes do pensamento social brasileiro, de acordo com Nísia Lima. Dessa estrutura decorre a tendência à “incorporação dos sertões” (LIMA, 1999, p. 17) como perspectiva de interpretação social e projeto político.

Outro tema que surge no início do século XX e marca a tradição de interpretação do país - presente em obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, entre outros - é o dos intelectuais que se colocam como estrangeiros em relação aos habitantes rústicos do interior (o outro social) e aos do litoral que aderem a valores estrangeiros ou cosmopolitas ignorando a suposta autenticidade da nacionalidade brasileira.

Estrangeiros, exilados, desterrados na própria terra, termos que aparecem em diversos textos e que nos falam do desconforto dos intelectuais, que pensavam como europeus e sentiam como brasileiros, como Joaquim Nabuco afirmou em sua época (ibid., p. 13).

Importante compreender as motivações dos intelectuais em sua preocupação de produzir discursos a respeito da identidade nacional. O excessivo relevo que o tema adquire na produção intelectual brasileira - ensaística e artística - se deve ao fato de que nosso processo de modernização capitalista aconteceu tardiamente, conforme afirma Maria Alice de Carvalho na apresentação do livro citado de Lima. Apesar da unificação territorial do Estado estar resolvida, faltava a construção de uma unidade cognitiva e moral, básica à afirmação dos Estados-nações - papel que a intelligentsia assumiu. Para Carvalho:

A relevância da intelligentsia nas sociedades periféricas se liga, pois, a exigências práticas de superação de um cenário fragmentário e disperso, no qual o diagnóstico dessa circunstância é, em si, aspecto influente na construção de uma idéia de nação. Contra os localismos, contra a cristalização de tempos históricos distintos em uma mesma jurisdição política, contra os interesses particularistas de grupos e classes, a identidade dos intelectuais da periferia se constrói nessa recusa à fragmentação social, cuja vigência lhe subtrai espaço e razão de ser (ibid., p. 9).

Por isso, a principal questão para estes intelectuais é o descompasso entre o desenvolvimento internacional e o de seu país, que se revela nas concepções idealizadas da sociedade como um todo coeso, ignorando as disputas de poder e diferenças internas. Eles cumprem a função de fornecer as suas respectivas sociedades uma compreensão de si e uma plataforma unitária de engajamento na História maiúscula, universal (ibid.). Como consequência, a ciência do início do século e, principalmente, a ciência social institucionalizada a partir dos anos 1930, constituem-se em instrumentos do projeto modernizador que nos garantiria uma almejada sintonia com o progresso dos tempos (ibid., p. 10).

As expedições científicas ao interior do Brasil, no começo do século XX, capitanearam um expressivo movimento de valorização do sertão, seja como espaço a ser incorporado ao esforço civilizatório das elites políticas do país, seja como referência da autenticidade nacional. Lideradas por geógrafos, sanitaristas, engenheiros, militares, diplomatas e outros funcionários do Estado brasileiro, eram vinculadas a projetos modernizadores, tais como a construção de ferrovias, linhas telegráficas e avaliações da Inspetoria de Obras Contra as Secas.

Importantes intelectuais da época da institucionalização universitária das ciências sociais e das décadas seguintes de seu desenvolvimento até 1964, como Roger Bastide, Emílio Willems e Florestan Fernandes, trazem em seus textos reelaborações do tema dos contrastes entre cidade e interior. A oposição atraso e moderno, herdada do ideal civilizatório que orientou os projetos intelectuais até os anos de 1930, continua presente, mas as novas tendências da abordagem sociológica diminuíram a ênfase nas discussões da identidade nacional e deram proeminência à transformação social e modernização (ibid., p. 156). Os conceitos de cultura folk (Fernandes) e rústica (Willems), que influenciam o trabalho de Antonio Candido e Maria Isaura Pereira de Queiroz, passam a protagonizar os debates sociológicos a respeito do tema.

Para Lima, o que muda nos textos de interpretação social nos períodos pré e pós instituição das ciências sociais é a substituição da utopia higienista pela sociológica. O foco, neste segundo momento, era diagnosticar as razões sociológicas que atravancavam o processo de maior uniformidade sociocultural entre o sertão e o litoral e propor um programa de intervenção política para superar esta condição (ibid., pp.172, 174).

A reelaboração do tema pelo cinema, da Primeira República ao governo Vargas

O pensamento nacional de matriz dualista migrou para outros domínios da atividade intelectual, como a literatura e o cinema. A produção cinematográfica brasileira durante a Primeira República segue duas vertentes de representação identitária do país:

por um lado, o apelo às raízes históricas e culturais da nação, com a reapropriação dos mitos, da cultura, da vida rural brasileiras para construir, nas telas, os signos da nacionalidade; e por outro lado, o apelo ao moderno, ao urbano, ao luxo e à sofisticação

de um ideal que se mostrava incipiente em nossa sociedade, mas que nos servia de paradigma... (GONÇALVES, 2011, p. 73).

As novas questões da urbanização incipiente, que incluem saúde e saneamento públicos, eletricidade, vida noturna e divertimentos populares, são encontrados nos títulos Os Capadócios

da Cidade Nova (Antonio Leal, 1908), O Comprador de Ratos (Antônio Serra, 1908), O Cometa

(Francisco Serrador, 1910), entre outros. Os contrastes entre urbano e rural são tema de Nhô

Anastácio Chegou de Viagem (Júlio Ferrez, 1908), comédia que apresenta as aventuras de um

caipira em sua primeira viagem a uma grande cidade, o Rio de Janeiro, com cenas na, até então, Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil.

Para além da temática, o próprio cinematógrafo era símbolo de modernidade. Em 1907, a abertura de salas fixas de exibição cinematográficas na capital federal era celebrada como símbolo da “civilização” da mesma forma que a inauguração da Avenida Central, em 1906, e o uso dos automóveis. Se no período das exibições cinematográficas irregulares, o termo filme nacional referia-se exclusivamente a sua procedência, sem implicações para o conteúdo, a partir de 1907, o conceito se complexifica. Para ser considerado nacional, o título deveria abordar aspectos da realidade brasileira.

Com a chegada dos filmes europeus e norte-americanos ao mercado exibidor nacional e a criação da Companhia Cinematográfica Brasileira, associação de capital estrangeiro que compra salas de cinema em todo país, a produção nacional e sua popularidade junto ao público entram em declínio. Para atrair o espectador nacional, proliferam no período filmes vinculados à representação da autenticidade brasileira, que tematizam usos e costumes do povo, feitos históricos dos heróis da pátria e adaptação de clássicos da literatura.

Entre eles, destaca-se O Curandeiro (1917) de Antônio Campos, que dá início ao que o diretor denominava estudos dos usos e costumes sertanejos (GONÇALVES, 2011, p. 45), cujo roteiro era baseado em lendas populares e contos regionais. Segundo publicação da imprensa na ocasião do lançamento, o título demonstra cuidados com a fidelidade ao regionalismo, explorando com bela fotografia a paisagem rural das fazendas de café e o ambiente singelo do caipira (MACHADO, 1987, apud GONÇALVES, 2011, p. 45). Em 1919, Campos assinou a fotografia de A Caipirinha (Caetano Matanó), baseado em peça de Cesário Motta. O filme retrata cantos sertanejos, danças rurais, samba e imagens do carnaval paulistano. Já Luiz (Lulu) de

Barros em adaptação da peça A Capital Federal, realizada em 1923, retoma o tema do caipira perante as novidades da cidade grande. O Guarani (Vitório Capellaro, 1916), Inocência (Vitório Capellaro, 1915), A Moreninha (Antonio Leal, 1915), A Viuvinha (Luiz de Barros, 1916),

Iracema (Vitório Capellaro, 1919), Ubirajara (Luiz de Barros, 1919), O Garimpeiro (Vitório

Capellaro, 1920) e Tiradentes (Paulo Aliano, 1917) são outros títulos que seguem esta tendência (GONÇALVES, 2011, p. 67).

Durante a década de 1920, o interesse sobre o país rústico diminui, dando lugar a representações de um país desenvolvido, moderno e culto, das classes sociais mais elevadas, em consonância com os filmes urbanos dos Estados Unidos, que tinham espaço cada vez maior nas telas e no imaginário social brasileiro. Esta mudança temática também é influenciada pelos profissionais envolvidos com a atividade cinematográfica nacional que tornam-se mais conscientes de que o cinema seria um importante instrumento de propaganda do país no exterior. A relação entre o cinema, os projetos de país e a identidade nacional se estreita e o espaço na imprensa para esta arte aumenta, com a criação de revistas especializadas, como é o caso da

Cinearte, em 1926. Os jornalistas passam a criticar os filmes a partir da imagem que estes

apresentam do Brasil, tendo como parâmetro os ideais modernos de nação e conferindo ao rural o estigma do atraso. O trecho abaixo, em que a colunista Chrysanthème ataca Nas Selvas do

Extremo Norte (Antonio Leal, 1925) e elogia Esposa do Solteiro (Carlo Campogalliani, 1925),

publicado em O Paiz e reproduzido por Para Todos, em 1925, ilustra este tipo de posicionamento.

Nenhum paiz como o Brasil se presta mais sobejamente a ser filmado. Pode-se asseverar que ele é essencialmente fotogênico. Porque explorar somente o seu sertão e a população deste, ainda inferior, como propaganda dele?...Esposa do Solteiro no mostra a nossa capital debaixo do seu verdadeiro aspecto e no seu mais belo e delicioso prisma. É de fitas dessas que precisamos, aproveitando artistas brasileiros, as nossas obras de arte, as nossas avenidas, todas as nossas riquezas, enfim (GOMES, 1974, p. 311, apud GONÇALVES, 2011, p. 51).

Esta opção temática do cinema nacional reflete o projeto social modernizador. A sétima arte nesse período atua como instrumento de inserção simbólica da sociedade brasileira na moderna civilização ocidental. A preocupação com a imagem que o cinema transmite do país no exterior demonstra não somente uma dependência aos valores europeus, mas revela o esforço de

esculpir um retrato do Brasil condizente com o imaginário civilizado (ORTIZ, 1989, apud GONÇALVES, 2011, p. 56).

A Revolução de 1930 inicia um processo de maior intervenção do Estado em todas as esferas sociais, incluindo a cultura, que se consolidará com o Estado Novo, a partir de 1937. A criação da lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais, de 1932, do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), em 1936, e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939, sintetizam os objetivos de Getúlio Vargas com o cinema: ser um instrumento da construção e implementação de um projeto político-ideológico que se afirmasse como socialmente dominante, difundir a centralização política e integração nacional (bases do estadonovista) e atuar como agente pedagógico no “aprimoramento” do povo brasileiro. Os trechos do discurso de Vargas proferido em 1934, reproduzidos abaixo, explicitam esta política:

O cinema será, assim, o livro de imagens luminosas, no qual as nossas populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil, acrescentando a confiança nos destinos da Pátria. Para a massa dos analfabetos, será essa a disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola. Associando ao cinema o rádio e o culto racional dos desportos, completará o Governo um sistema articulado de aducação mental, moral e higiênica, dotando o Brasil dos instrumentos imprescindíveis à preparação de uma raça empreendedora, resistete e varonil. E a raça que assim se formar será digna do patrimônio invejável que recebeu (apud GONÇALVES, 2011, p. 101).

Ele aproximará, pela visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos humanos, dispersos no território vasto da República. O caucheiro amazônico, o pescador nordestino, o pastor dos vales do Jaguaribe ou do São Francisco, os senhores de engenho pernambucanos, os plantadores de cacau da Bahia, seguirão de perto a existência dos fazendeiros de São Paulo e de Minas Gerais, dos criadores do Rio Grande do Sul, dos industriais dos centros urbanos: os sertanejos verão as metrópoles, onde se elabora nosso progresso, e os citadinos, os campos e planaltos do interior, onde se caldei a nacionalidade do porvir (ibid., pp. 137, 138).

Se anteriormente a representação identitária da nação já se fazia notar nos filmes, as políticas de Getúlio Vargas articulam-na de forma consciente e sistematizada. A ideologia nacionalista, populista e autoritária estava presente não só nos filmes escolares e edições do

Cinejornal Brasileiro (1938-1946), documentários sobre as realizações governamentais exibidos

antes do filme principal, como também nos títulos de ficção. Segundo as diretrizes da época, os filmes deveriam contribuir para reforçar mitos nacionais, como o temperamento brando e cordial

do povo. Manifestações de organização política da classe trabalhadora, por exemplo, eram alvo de censura, pois iam de encontro com a imagem de eficiência que o Estado propagava.

A análise do longa Romance Proibido (1944), direção de Adhemar Gonzaga e produção da Cinédia10, exemplifica como o dualismo rural e urbano foi ressignificado na construção da identidade nacional neste período. No filme, o aparelho do Estado (agência de Correios e Telégrafos) e o consumo (personagens desejam automóveis, vestidos e eletrodomésticos expostos em uma vitrine) estão ligados à ideia de modernidade, uma novidade em relação a décadas anteriores. A produção reforça o mito da miscigenação racial do povo brasileiro. Um dos salões de baile na capital é decorado com um mural representando uma cena indígena - com direito a mulheres nuas entre folhas de bananeira - ouve-se e dança-se samba e uma das personagens fuma um cachimbo em um cerimonial que remete às religiões afro-brasileiras.

Gracia, uma das protagonistas, representante da elite, vai para Guarantã, cidade do interior de São Paulo, para ser agente do Estado na educação da população. O ambiente rural é apresentado no filme como idílico, porém arcaico, há analfabetos e ignorantes. A cultura popular é valorizada, em uma das sequências, a trilha sonora é uma canção popular. Gracia recupera a antiga escola desativada com a ajuda de moradores locais, dá início às aulas e o município acaba vencendo um concurso que premia a cidade com menor percentagem de analfabetos. Da capital federal, a professora traz um projetor de cinema, um mapa do Brasil e um globo que simbolizam o ideal educacional estadonovista. A construção da personagem de Gracia reflete um dos preceitos do governo Vargas: os representantes da elite deveriam atuar como instrumentos do Estado na transformação social da nação brasileira, no caso específico, por meio da educação.

Nos anos 1950, volta a rondar o cinema a demanda pela criação de um modo de produção industrial, exigência feita desde os anos 1920. Os fatores de motivação neste momento são a ideologia nacional-desenvolvimentista, a existência de um mercado consumidor que surge com a urbanização de algumas cidades e a ideia de que um país modernizado precisava de um cinema compatível, para difundir educação e cultura. Neste contexto, surgem as companhias Vera Cruz,

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O governo Vargas é contemporâneo ao surgimento da Cinédia (1930), de Adhemar Gonzaga, Brasil Vita Filmes (1934), de Carmem Santos, e Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S. A. (1941), de Arnaldo de Faria, Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon e dos irmãos José Carlos e Paulo Burle. A criação destes estúdios foram tentativas de se estabelecer uma produção industrial de cinema no Brasil, aos moldes de Hollywood.

a de mais proeminência, Maristela, Multifilmes e Kino Filmes que investem na construção de grandes estúdios, importação de tecnologia e mão de obra especializada com o objetivo de realizar um cinema de qualidade técnica.

Outra reivindicação, que marca de maneira mais incisiva a crítica cultural na época, era a necessidade de desenvolver uma estética audiovisual de caráter nacional. Este aspecto pode ser atribuído ao que Antonio Candido (1976 apud TOLENTINO, 2001, p. 17) denomina de segunda fase do Movimento Modernista, que seria a radicalização de questionamentos, introduzidos na década de 1920, na sociologia e literatura dos anos de 1930 e 1940. De acordo com Célia Tolentino, a Semana de Arte Moderna de 1922 apresentou um novo compromisso cognitivo para a realidade brasileira, reinvindicando uma reflexão a respeito do caráter nacional de nossa produção intelectual, que teve desdobramentos no pensamento humanístico acadêmico e em diversas expressões político-ideológicas. Candido entende que as interpretações de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, em Sobrados e Mucambos e em Nordeste, as de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil e as de Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo e História Econômica do Brasil seriam de certa forma tributárias do modernismo.

Afastado do debate político nos anos de 1930 e 1940, o cinema da década seguinte era convocado a incorporá-lo entre seus temas, pois com a redemocratização, o fim da censura estadonovista e a popularização de alguns meios de comunicação, estas reflexões vieram à tona. Importante destacar o papel que a revista Fundamentos, de orientação marxista, teve neste período, suas duras críticas e reivindicações pela realização de um cinema genuinamente brasileiro influenciaram os projetos da Vera Cruz. Isso se faz notar, por exemplo, na produção de

O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto, em que a companhia cinematográfica se dizia empenhada

em “nacionalizar” o conteúdo de suas produções. O diretor afirmava que seu tema era absolutamente nacional porque tratava do Nordeste e lá estaria o que ainda havia de brasileiro, uma vez que o Sul já se “contaminara” pelo elemento estrangeiro (TOLENTINO, 2001, p. 21).

O filme, premiado em Cannes, relaciona a temática rural nordestina à brasilidade, seguindo a tradição das reflexões sobre identidade nacional desde Euclides da Cunha e atrasando a discussão que já se havia avançado com as leituras do Movimento Modernista, que apontavam para o fato de que nossa modernidade se caracteriza pela junção de elementos arcaicos e

modernos. Mesmo seguindo certas características do faroeste, gênero vinculado por excelência à identidade nacional norte-americana, o longa é tido como um dos precursores da cinematografia brasileira dos anos 1960. Sem contar o ciclo do cangaço, apenas os filmes de Amácio Mazzaropi fariam tanto sucesso de público com o mesmo tema.

Está presente ao longo de O Cangaceiro, a ideia de que o Nordeste resguardaria elementos originais da nação e que o Sul estaria ligado ao estrangeiro, tanto na mentalidade, hábitos, costumes, quanto aparência física. A escalação dos atores e caracterização dos cangaceiros é um dos exemplos, o cangaceiro “autêntico” é bárbaro e negro (ilustrando a mestiçagem do povo brasileiro), já seu opositor é racional, instruído e branco. Seguindo a tendência de outras produções da Vera Cruz, o narrador fala do Nordeste a partir do projeto de país que tem São Paulo como modelo (GALVÃO, 1981). Apesar de o fim do cangaço se dar historicamente em 1940 com a morte de Corisco, somente uma década antes do lançamento do filme, na abertura do longa aparece apenas: “Época: imprecisa, quando ainda havia cangaceiros”. Ou seja, para o narrador de O Cangaceiro, o sertão é mundo fora da história (XAVIER, 2007). Elege-se o cangaço como uma ancestralidade, uma tradição bravia de nossa gente, recupera-se o mito desvinculado de suas questões políticas e históricas. O elogio e a condenação ao sertão se alternam no filme, reproduzindo a tradição intelectual nacional sobre o tema.

Devido à semelhança entre os filmes de cangaço e os westerns hollywoodianos surgiu entre a crítica o termo nordestern ou northeastern para designá-los. Tolentino analisa o que há em comum entre estas produções.

E, tal como Hollywood reinventava a tradição do homem americano por meio do faroeste, tornando pitoresco e palatável o violento processo da expansão da fronteira

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