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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Cyntia Gomes Calhado O dualismo cidade e campo em Central do Brasil: Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Cyntia Gomes Calhado

O dualismo cidade e campo em

Central do Brasil

:

Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias

pós-modernas

Mestrado em Comunicação e Semiótica

(2)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Cyntia Gomes Calhado

O dualismo cidade e campo em

Central do Brasil

:

Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-modernas

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, na área de concentração Signo e Significação das Mídias, sob a orientação do Prof. Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto.

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Folha de Aprovação

Banca examinadora

________________________________________________________

________________________________________________________

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Arlindo Machado, pela orientação atenciosa, lúcida e pela

generosidade em partilhar seus conhecimentos.

Às Profas. Dras. Lúcia Santaella e Jane de Almeida, pela bela leitura que fizeram

da primeira parte da dissertação e pelas observações e sugestões durante a

qualificação, que ajudaram a aprimorar este trabalho.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa de

mestrado concedida para a realização desta pesquisa.

Ao Prof. Dr. Silvio Mieli pela atenção e auxílio na realização do projeto de

pesquisa.

Aos colegas do Programa de Comunicação e Semiótica pelas dicas, ajuda e risadas.

A Daniel, Theo e Nina pelo incentivo e apoio incondicional.

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RESUMO

CALHADO, Cyntia Gomes. O dualismo cidade e campo emCentral do Brasil: Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-modernas.

Esta dissertação analisa a reelaboração da identidade nacional, especialmente na forma do dualismo cidade e campo, realizada pelo filme Central do Brasil (Walter Salles, 1998), a partir da teoria pós-moderna. Admite-se a centralidade do conceito de identidade nacional e a elaboração do dualismo cidade e campo na cultura moderna brasileira até a incorporação e ressignificação do tema em diversas épocas do cinema nacional. O estudo da recorrência do dualismo cidade e campo nos textos e filmes sobre a identidade nacional é realizado com base em Nísia Lima (1999), Mauricio Gonçalves (2011), Célia Tolentino (2001), Ivana Bentes (2007), Ismail Xavier (2007, 2012) e Lúcia Nagib (2006). Para traçar os pontos de contato entre o filme e a estética pós-moderna são buscadas as reflexões de Frederic Jameson (1983, 1996, 1998), David Harvey (2005), Renato Pucci Jr. (2008), Lúcia Santaella (2000, 2003), Robert Stam (2005, 2010) e Ronaldo Brito (2001, 2005). A análise semiótica do corpus se apoia nas definições de Ismail Xavier (2003), Luiz Zanin Oricchio (2003), Lúcia Nagib (2003, 2006) e Ivana Bentes (2007). São identificados os procedimentos estéticos pós-modernos que o objeto articula, como a profusão de citações com inversão de sentido que funcionam como marcas de distanciamento anti-ilusionistas, o recurso da sobrecarga, os aspectos metalinguísticos, a negação da dicotomia erigida pelo modernismo entre alta cultura e cultura de massa - o Great Divide teorizado por Andreas Huyssen (1986) -, além de seu hibridismo estilístico, já que o filme mescla drama social, melodrama, aspectos documentais, road movie em um enredo que segue os códigos de uma parábola moral de inspiração bíblica. Entre os aspectos temáticos pós-modernos de Central do Brasil, este trabalho detém-se na forma como o longa elabora os parâmetros de negação à totalização, às utopias e à teleologia no roteiro e construção de personagens, que se verificam, por exemplo, na opção por abordagem que valoriza as individualidades em vez da coletividade e não tematiza explicitamente as forças sociopolíticas que incidem sobre os personagens, pressupondo-as apenas como subtexto.

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ABSTRACT

CALHADO, Cyntia Gomes. The dualism city-countryside in Central do Brasil: An analysis of the re-elaboration of national identity in the light of postmodern theories.

This dissertation examines the re-elaboration of the national identity, especially in the form of the dualism city-countryside, performed in the film Central do Brasil (Walter Salles, 1998), from the postmodern theory. Acknowledges the centrality of the concept of national identity and the development of the dualism city-countryside in modern Brazilian culture to the incorporation of the subject at different times of national cinema. The study of the recurrence of this dualism in the texts and films about national identity is realized based on Nísia Lima (1999), Mauricio Gonçalves (2011), Celia Tolentino (2001), Ivana Bentes (2007), Ismail Xavier (2007, 2012) and Lúcia Nagib (2006). To spot the similarities between the film and the postmodern esthetic, reflections of Frederic Jameson (1983, 1996, 1998), David Harvey (2005), Renato Pucci Jr. (2008), Lúcia Santaella (2000, 2003), Robert Stam (2005, 2010) and Ronaldo Brito (2001, 2005) are used. A semiotic analysis of the corpus is based on the definitions of Ismail Xavier (2003), Luiz Zanin Oricchio (2003), Lucia Nagib (2003, 2006) and Ivana Bentes (2007). The following aspects are identified: the postmodern aesthetic procedures that the object articulates, as the profusion of quotes with direction reversal that work as trademarks of distancing anti-illusionist, the overburden resource, metalinguistic aspects, negation of the dichotomy erected by modernism between high culture and mass culture - the Great Divide theorized by Andreas Huyssen (1986) - in addition to its stylistic hybridity, as the film blends social drama, melodrama, documentary aspects and road movie in a plot that follows the codes of a moral parable of biblical inspiration. Among the postmodern thematic aspects of Central do Brasil, this dissertation focuses on the way the film draws the parameters of denial of totalization, the utopias and teleology in script and in character development that occur, for example, in the approach that values the individuality instead of collectivity and not explicitly thematizes the sociopolitical forces that focus on the characters, assuming it only as subtext.

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SUMÁRIO

Introdução ...7

I - Retomada do cinema nacional

...10

II - Identidade nacional em

Central do Brasil

...17

III - Aspectos pós-modernos de

Central do Brasil

...26

Traços pós-modernos na Retomada e em Central do Brasil ...31

Pontos de contato entre a estética pós-moderna e Central do Brasil ...33

Aproximações entre o estilo pós-moderno e o maneirismo ...39

IV – O dualismo cidade e campo nos discursos da identidade nacional

...44

A reelaboração do tema pelo cinema, da Primeira República ao governo Vargas ...46

No Cinema Novo e Marginal ...53

Na Embrafilme ...60

Na Retomada e em Central do Brasil ...60

Considerações finais ...65

Cenas analisadas ...67

Bibliografia ...68

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Introdução

Quarto longa-metragem de Walter Salles, Central do Brasil (1998) é marcante na história do cinema nacional em diversos sentidos. Primeiro, pois foi um enorme sucesso de bilheteria para uma produção cinematográfica que saía da crise pós-extinção dos mecanismos de fomento estatais, graças à criação de novas leis de incentivo à cultura. Depois, porque obteve grande reconhecimento no exterior, ganhando uma série de prêmios, incluindo o Urso de Ouro no festival de Berlim, um dos eventos de maior prestígio do cinema mundial. Esse fato impulsionou a carreira de Walter Salles fora do Brasil, o pioneiro entre os cineastas que surgiram na Retomada a se internacionalizar. Além disso, o filme suscitou debates acalorados por parte da crítica e dos acadêmicos, as matérias jornalísticas dedicadas ao assunto extrapolavam a apreciação de seus aspectos artísticos e revelavam o impacto social que a obra havia gerado, em situação similar ao que veio a acontecer com Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007).

A ressonância social (midiática?) do longa se deve a um intrincado conjunto de fatores, que incluem o fato de que o país, na década de 1990, se recuperava de um cenário sociopolítico e econômico desolador, o que favorecia a recepção de um filme que se propõe a uma busca afetiva pela brasilidade, mas principalmente se justifica pela mistura controversa, para a época, de seus aspectos estéticos e temáticos. Central do Brasil retoma um tema caro à produção intelectual brasileira, e especialmente ao Cinema Novo, - a identidade nacional baseada na dicotomia cidade

e campo - com uma narrativa que mescla melodrama, parábola de ressonâncias bíblicas e procedimentos documentais aliada a uma estética, denominada por alguns autores, de “internacional” ou “globalizada”, baseada na “qualidade” da produção e “embelezamento” da imagem, em que o steadicam ocupa papel relevante.

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textos publicados, na ocasião de sua estreia, um esforço de equacionar como um filme pode abordar o “grande” tema da cultura nacional com uma roupagem vista como oportunista por flertar com o “cinema comercial” e obter tanto sucesso de público, quanto chancela de qualidade artística conferida por festival de renome internacional. Nota-se que há, implicitamente nos discursos de uma parcela da crítica, a concepção modernista que distingue categoricamente alta cultura e cultura de massa, o que Andreas Huyssen chama de Great Divide (1986, p. viii).

O lançamento, a partir da década de 1990, de diversos filmes que apresentam registro estético diferente para retratar o sertão, as favelas e a pobreza em relação ao Cinema Novo despertou em pesquisadores do audiovisual o ímpeto de compreender estas novas configurações. Ivana Bentes cunha a famosa expressão “cosmética da fome” e surge, entre os diretores pernambucanos, o termo árido movie para designar longas, como Baile Perfumado (Lírio

Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e o filme homônimo a este filão (Lírio Ferreira, 2006), que conferem tratamento multicultural e pop ao sertão.

Outros autores, como Renato Pucci Jr., recorrem à teoria pós-moderna para se oporem a

correntes críticas brasileiras filiadas a parâmetros estéticos modernos, que têm como ideal, portanto, o posicionamento ético e estético do Cinema Novo e do Cinema Marginal, e atribuem, de forma pejorativa, as características de apolítico, nostálgico, “cinema de entretenimento”, entre outras, a uma série de filmes. Mesmo que nenhum pesquisador defenda que Central do Brasil siga a estética pós-moderna1, acreditamos que esta teoria forneça chaves de interpretação que podem ajudar a entender as controvérsias geradas pelo filme2 e os procedimentos narrativos e estéticos que ele articula para reelaborar o tema da identidade nacional apoiado no dualismo cidade e campo.

É importante esclarecer que grande parte da teoria produzida a respeito do pós-modernismo no cinema está restrita a capítulos de obras que tratam a cultura pós-moderna de forma abrangente. Diferente da arquitetura e literatura, são raros os especialistas em cinema que se dedicaram à análise de filmes pós-modernos. Pucci Jr. é um dos poucos pesquisadores da área

que apresenta obra consistente sobre o assunto adaptada as especificidades do audiovisual

1

Lúcia Nagib diz que ele “passeia pelo cinema de citação pós-moderno” (2006, p. 76). 2

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nacional, por isso optamos por sua abordagem para analisar se o objeto de estudo segue esta estética. Um dos principais diferenciais de seu olhar para o cinema brasileiro pós-moderno é a proposta de uma metodologia rigorosa, contrastante com a vagueza conceitual normalmente encontrada, que leva em conta aspectos narrativos e estéticos, item essencial em qualquer tipo de análise audiovisual.

As pistas que nos baseamos para levantar a hipótese de que o filme poderia ser pós-moderno são as seguintes: dois de seus longas anteriores, A Grande Arte (1991) e Terra

Estrangeira (1995, co-direção de Daniela Thomas), são considerados pós-modernos; uma das

principais referências para a elaboração do roteiro de Central do Brasil é Alice nas Cidades (1974) de Wim Wenders, não só este longa do cineasta alemão, como praticamente toda a sua obra é tida como pós-moderna; a crítica tem problemas em enquadrar o filme em uma tendência cinematográfica específica; ele combina cinema de autor com procedimentos de cinema

comercial/entretenimento; tem estilo híbrido e não só a intertextualidade como a metalinguagem ocupam papel relevante em sua proposta.

Para atingir os objetivos citados, esta dissertação se divide em quatro capítulos. O

primeiro se detém no panorama cinematográfico nacional em que Central do Brasil se insere e as

implicações desse contexto para a produção e circulação de filmes a partir da década de 1990;

apresenta-se a nova legislação que deu origem à Retomada do cinema brasileiro e aspectos do

mercado audiovisual. O segundo trata do relevo que é conferido ao tema da identidade nacional

na cultura brasileira, e por consequência no audiovisual; identificam-se as diferenças estéticas

principais de apresentação do assunto no cinema moderno e no contemporâneo e analisa-se como

os temas da busca pela identidade nacional e do dualismo cidade e campo aparecem na narrativa

e roteiro de Central do Brasil, além de como esta configuração se distancia das abordagens

modernas. No terceiro, há um panorama da teoria pós-moderna, definição de sua estética e

identifica-se pontos de contato entre a última e o corpus da pesquisa. O último capítulo traz uma

retrospectiva histórica sintética da presença da oposição cidade e campo nas obras de

interpretação do país, até a incorporação do tema pelo audiovisual e como ele é retratado nos

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I – Retomada do cinema nacional

Ao tomar posse em 1990, o primeiro presidente diretamente eleito após 20 anos de ditadura militar, Fernando Collor de Mello, editou medidas provisórias que estipulavam a extinção de diversos órgãos estatais, alinhado a uma concepção política neoliberal, que na época estava no apogeu de seu prestígio. No pacote estava a dissolução da Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme) - órgão estatal que, durante mais de uma década, estivera à frente da

gestão do cinema nacional -, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da Fundação do Cinema Brasileiro. A atitude fez com que o cinema nacional perdesse seu principal agente financiador, distribuidor e regulamentador. Embora a Embrafilme já estivesse em decadência, seu fim simbolizou o encerramento de um ciclo da história cinematográfica brasileira e teve

como efeito a paralisação quase total da produção de longas.

Entre 1992 e 1994, apenas 13 longas-metragens chegaram ao circuito, todos com distribuição da produtora Riofilme, e a soma de seus espectadores, em cada ano, não chegou a 1% do total de ingressos vendidos no país (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL - MINISTÉRIO DA CULTURA, 1999 apud BUTCHER, 2005, p. 21). Nesse período, a Riofilme, criada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em 1992, desempenhou papel importante nas áreas de finalização, coprodução e distribuição, seus investimentos permitiram que diversas produções paradas por falta de recursos fossem concluídas.

A situação cinematográfica era parte de um contexto amplo de crise econômica, social, política e cultural do país. A falta de apoio no Congresso e as suspeitas de corrupção levaram o governo Collor a um processo de desgaste, que o presidente tentou contornar com a substituição de ministros e secretários. Foi então que o intelectual e embaixador Sérgio Paulo Rouanet assumiu a Secretaria de Cultura, órgão a que o Ministério da Cultura havia sido rebaixado. As bases da chamada “Retomada do cinema brasileiro” são definidas um ano antes de Collor sofrer o impeachment que o levaria à renúncia em 1992. A aprovação da Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) pelo Congresso Nacional permitiu, desde então, a empresas públicas, privadas e

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em 1993, estabeleceu que qualquer empresa poderia descontar até 3% do imposto de renda se esse dinheiro fosse revertido para a produção audiovisual.

A alteração no modelo de patrocínio estatal, que passou a ser feito de forma indireta, tinha o objetivo inicial, segundo o cineasta Paulo Thiago, de evitar o corporativismo de que as comissões de seleção da Embrafilme eram acusadas (NAGIB, 2002, p. 19). Enquanto estas leis não surtiam efeito, em caráter emergencial, o governo lançou, em 1993, o Prêmio Resgate, que rateou os recursos da Embrafilme por meio de concursos públicos que disponibilizaram R$ 13 milhões para 90 projetos de curtas, médias e longas-metragens (BUTCHER, op. cit., p. 20).

Tais iniciativas começaram a mudar o panorama cinematográfico nacional e, a partir de 1995, a produção cresce e se estabiliza em torno dos 20 a 30 títulos por ano (ORICCHIO, 2003, p. 27). Entre 1995 e 2002, aproximadamente 200 longas são lançados, contra menos de 30 nos primeiros anos da década de 1990, e o público de filmes brasileiros acompanha esse crescimento (ibid., p. 27). Além disso, de 1995 a 2005, cineastas veteranos retomaram sua produção e mais de cem diretores lançaram seus primeiros filmes no Brasil (BUTCHER, op. cit., p. 39). O longa

Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (Carla Camurati, 1995) é considerado uma espécie de marco zero da Retomada devido, principalmente, à resposta do público - foi o primeiro filme do

período a fazer mais de um milhão de espectadores - e à repercussão na mídia. O ressurgimento do cinema em meados dos anos 1990, após um período de crise, não é fenômeno exclusivo do Brasil. O estabelecimento de governos democráticos que instituíram políticas de incentivo cinematográfico também reergueram as cinematografias argentina e mexicana (NAGIB, 2006, p.

17).

O termo Retomada é refutado por alguns profissionais ligados à atividade cinematográfica brasileira que acreditam que tudo não passou de uma breve interrupção da produção, reiniciada poucos anos depois. O cineasta José Joffily, por exemplo, diz que a expressão, divulgada pela mídia, seria uma estratégia de mercado. Segundo ele: “Para quem já é veterano, essa história de ‘renascimento’ do cinema brasileiro já foi vista tantas vezes” (NAGIB, 2002, p. 13), referindo-se à falta de continuidade que caracteriza historicamente a produção cinematográfica nacional. Lúcia Nagib (op. cit.) e Luiz Oricchio (op. cit.) consideram que a Retomada terminou. Nagib atribui o marco simbólico ao filme Central do Brasil e Oricchio a

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processo ainda em curso3 e que não necessariamente terá um “fim” ou um “marco simbólico” (op. cit., p. 94).

Apesar das controvérsias, o período tem como particularidade o fato de que mudanças políticas causaram transformações significativas no cinema nacional, que voltou a despertar atenção do público e da imprensa (NAGIB, op. cit., p. 14). Para Butcher, a designação “retomada” tem um sentido interessante na medida em que não procura forjar um bloco de pensamento que não existe:

É preciso entender a palavra “retomada” naquilo que ela diz em seu sentido literal: retomar algo que foi interrompido. O que é muito diferente de um renascimento, por exemplo. Não se retoma algo que morreu, mas sim algo que já tem uma história, ainda que inconstante e turbulenta. Possivelmente, essa é a primeira vez na trajetória da produção de filmes no Brasil que uma fase de sua história é batizada com um nome que não subentende um novo começo a partir do zero (como “Cinema Novo”, por exemplo), e nem propõe uma unidade estética ou temática. “Retomada” apenas denota um processo (op. cit, pp. 14, 15).

Com a estreia de Central do Brasil, a Retomada entra em nova fase, de acordo com Butcher (ibid., p. 44). O longa retrata a história de Dora, professora aposentada cujo trabalho é escrever cartas para analfabetos na estação que intitula o filme, no Rio de Janeiro. Ela resolve acompanhar o garoto Josué em uma viagem para Bom Jesus do Norte, Pernambuco, em busca do pai, depois que a mãe do menino morre atropelada nos arredores da estação. Apesar das críticas,

o filme exerceu importante papel na reinserção do cinema na sociedade brasileira e teve carreira fora do comum dentro e fora do Brasil, dando início a um processo de maior visibilidade do cinema da Retomada no exterior. Depois de um mês de sua primeira exibição, em 1998, no Sundance Film Festival, nos Estados Unidos, o longa foi premiado com o Urso de Ouro de

melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro no Festival de Berlim, na Alemanha. Em 1999, foi indicado a melhor filme estrangeiro e melhor atriz, para Fernanda Montenegro, no Oscar. Essa excelente acolhida internacional do filme pode ser atribuída, entre outros fatores, as suas opções estéticas e temáticas semelhantes a parte da produção do novo cinema nacional, que Ivana Bentes define como “um cinema ‘internacional popular’ ou

3

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‘globalizado’ cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética ‘internacional’” (2007, p. 245).

As leis de incentivo não são as únicas formas possíveis de financiamento de filmes a partir dos anos 1990. Existem também os concursos federais, estaduais e municipais que os governos realizam periodicamente, além dos investimentos diretos das empresas e até mesmo recursos do diretor. A nova legislação cinematográfica foi acompanhada por mudanças no mercado de filmes no Brasil. Ainda no início da década de 1990, são criadas novas companhias, que viriam a se tornar algumas das principais produtoras do novo cinema nacional, como é o caso da Videofilmes, Conspiração, O2 e Casa de Cinema de Porto Alegre. O setor de exibição sofreu alterações significativas. Os cinemas do centro e das periferias das capitais e do interior do país foram sendo fechados até o início dos anos 1990, o tamanho das salas diminuiu e elas passaram a se concentrar nos shoppings centers. Isso acarretou mudanças no perfil do público que, em sua maioria, passou a ser composto pelas classes A, B e C. Depois de alguns anos, o surgimento dos multiplex (centros de exibição cinematográfica) e de salas do chamado “cinema de arte” ampliaram o circuito exibidor.

A popularização do uso do vídeo digital, instrumento leve e mais barato, na produção

cinematográfica teve grande impacto no mercado audiovisual mundial, em “mudança análoga à criação dos equipamentos leves posterior à Segunda Guerra” (CAETANO, 2005, p. 31). Como consequência, os filmes de ficção de baixo orçamento podem ter outro regime de produção e o número de documentários produzidos, por causa do grande barateamento dos custos, se

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Nagib afirma que a maioria dos cineastas entrevistados para o livro O Cinema da Retomada concordam que as leis de incentivo fiscais foram importantes para o restabelecimento da atividade cinematográfica no país, mas que a recuperação da produção não foi acompanhada por políticas eficazes de distribuição, divulgação e exibição. Uma das críticas mais frequentes a essa política cultural é que fica a cargo dos departamentos de marketing das empresas a decisão sobre quais filmes devem ou não ser produzidos no Brasil. Esta legislação, que deu ênfase à produção e negligenciou os aspectos de difusão, estabeleceu uma relação de dependência entre o poder público e o cinema. Desta forma, repete-se o que aconteceu na criação da Embrafilme, em que o Estado levou à falência pequenas distribuidoras nacionais, e quando esta extinta, o mercado interno brasileiro ficou livre para os filmes norte-americanos e as majors (CAETANO, op. cit, p. 15). Ou seja, incentivou-se o modelo de produção cujas empresas privadas de distribuição foram eliminadas por uma estrutura estatal que posteriormente foi fechada (ibid., p. 15).

Outra decorrência deste esquema de produção é a elevação dos custos dos filmes. Como as leis de incentivo permitem que os longas sejam inteiramente produzidos até determinado valor para conceder aos patrocinadores direitos de abatimento de impostos, este limite de abatimento

norteou o teto dos orçamentos (ibid., p. 13). Por isso, o cinema brasileiro da segunda metade da década de 90 é marcado por uma série de filmes inflacionados. Esse fenômeno tem reflexos estéticos. Um certo exibicionismo de maquiagem, direção de arte, figurino e cenografia sobressaía nos longas. Esta transformação estético-orçamentária atraiu certos profissionais

reconhecidos no mercado publicitário e televisivo, que começaram a fazer do cinema uma atividade ocasional. A nova legislação também propiciou que técnicos e produtores de outras áreas do audiovisual migrassem para a realização cinematográfica, cujo impacto é analisado em artigo:

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Os valores altos de produção e a presença frágil no mercado comprometeram a possibilidade de que os filmes viessem a se pagar por meio da bilheteria, inviabilizando a produção comercial em larga escala. Alguns cineastas se opõem aos custos elevados e praticam formas alternativas de financiamento, como é o caso de Domingos de Oliveira, que fez seus longas mais recentes com orçamento baixíssimo, seguindo um modelo de produção que ele denominou ironicamente de Baixo Orçamento e Alto Astral (B.O.A.A). De 1999 a 2005, este panorama muda. Apesar de ainda existirem filmes de produção inflacionada, cresceu o número de longas de baixo orçamento.

Se em outros países a televisão investe regularmente na produção cinematográfica e transmite os conteúdos em sua programação, como ocorre com a HBO nos Estados Unidos e com várias emissoras de televisão na França - “cujos incentivos diretos e compras de direitos de exibição foram responsáveis por boa parte do ressurgimento do cinema francês ao longo da mesma década [1995 a 2005]” (ibid., p. 26) -, no Brasil as parcerias do cinema com a televisão são tímidas. Até o momento, além de algumas iniciativas da TV Cultura, SescTV e Canal Brasil - os dois últimos disponíveis apenas para assinantes de TV a cabo - a Globo Filmes é a única empresa ligada a uma rede de televisão a investir continuamente no cinema. Seu sistema de

atuação é baseado em apoio de leis de incentivo, patrocínio de empresas públicas, produção e divulgação do maior conglomerado de comunicação do país e distribuição no mercado interno feita por uma major norte-americana (ibid., p. 30). Graças ao apoio midiático televisivo, os longas a que a Globo Filmes se associa costumam apresentar índices de bilheteria superiores à

média e entre eles há, inclusive, recordes de público do cinema nacional recente. Segundo Daniel Caetano, Eduardo Valente et al. (ibid., p. 27), há de se notar a falta de coerência da ação estatal, uma vez que a televisão pública, mantida com orçamentos irrisórios, não exibe filmes aos quais o Estado destina, via leis de incentivo, grandes verbas e que, em sua maior parte, não têm oportunidade de serem vistos por um público vasto.

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II – Identidade nacional em

Central do Brasil

Apesar de os filmes lançados ao longo dos anos 1990 e começo dos 2000 apresentarem uma variedade de temas e gêneros, boa parte das produções retratam as condições do país e buscam uma redescoberta da pátria.

Bem ou mal, [este cinema] debruçou-se sobre temas como o abismo de classes que compõe o perfil da sociedade brasileira, tentou compreender a história do país e examinou os impasses da modernidade na estrutura das grandes cidades. Foi ao sertão e às favelas e reinterpretou estes espaços privilegiados de reflexão do cinema nacional (...). Enfim, o cinema nacional voltou a se preocupar com o tema da identidade nacional - assunto tão presente e obsessivo que se devem buscar suas origens já na constituição do país como nação separada de Portugal, com características próprias (ORICHIO, 2003, pp. 32, 33).

O cinema deste período retoma uma tradição tanto da própria história desta arte, em especial daquela fase já chamada “superego” do cinema brasileiro, o Cinema Novo, quanto da cultura, na medida em que atualiza questionamentos do imaginário nacional, como: Quem somos? Qual nossa posição diante o mundo? Somos autores de uma cultura própria ou não passamos de epígonos, que reciclam o saber alheio sem nada produzir de original? (ibid., p. 33). Ao tratar desses assuntos, o cinema toma para si reflexões sobre o país presentes em obras do ensaísmo brasileiro, realizadas desde antes da institucionalização das ciências sociais, como é o caso de Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha. Esta obsessão com sua personalidade própria é um dos eixos da produção cultural do país do último século.

Basta lembrar a tentativa modernista (oswaldiana, na verdade) de resolver a dialética entre o Eu e o Outro através da antropofagia. Ou da busca incessante dos pensadores dos anos 1930 e seguintes pelo nosso “caráter nacional” (ibid., p. 231).

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Os cineastas que assumem o papel de intelectuais se apropriam de discursos de outras áreas do saber em seus filmes, como a antropologia de Gilberto Freyre, a literatura da Mário de Andrade e a crítica de Antonio Candido e Paulo Emílio, afirma o crítico.

Se há uma continuidade temática, estilisticamente, as diferenças entre os filmes do Cinema Novo e os da década de 1990 em diante são radicais. Para Oricchio, os filmes da Retomada dialogam com as tendências contemporâneas, ou seja, com linguagens cinematográficas importadas, como Quentin Tarantino, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Alejandro Iñárritu, entre outros, mas também com as linguagens da televisão, do clipe e da publicidade. A estética da crueza e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada e no uso da câmera na mão foi substituída, segundo Bentes, pelo steadicam:

a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o “belo” e a “qualidade” da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássicas. Um cinema “internacional popular” ou “globalizado” cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética “internacional”. O sertão torna-se então palco e museu a ser “resgatado” na linha de um cinema histórico-espetacular ou “folclore-mundo” pronto para ser consumido por qualquer audiência (2007, p. 245).

Oricchio (op. cit.) ressalta que a atitude política de busca pelas especificidades nacionais era característica do pensamento dos anos 1960, que seguia o preceito da “descolonização” cultural, e que está na origem dos novos cinemas na Argentina, no Chile, na Bolívia, em Cuba e, no Brasil, com a “estética da fome” de Glauber Rocha. O cinema da Retomada dá continuidade a

esse trabalho coletivo de “construção de uma identidade cultural”, mas sem a mesma ambição de originalidade do Cinema Novo (ibid., pp. 231 - 233). Apesar das mudanças históricas após a queda do muro de Berlim, diversos cineastas tentaram expressar a síntese do que seria essencialmente o Brasil, como é o caso de Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 2000),

Carlota Joaquina, Terra Estrangeira, Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999), mas o projeto mais paradigmático, neste sentido, segundo o autor, é Central do Brasil.

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salários congelados, a volta à democracia é acompanhada pela morte de Tancredo Neves na véspera de sua posse como presidente. Devido ao esgotamento do modelo econômico adotado pelo regime militar, a década de 1980 foi marcada pelo PIB fraco e inflação alta. Na tentativa de conter a grave crise, planos econômicos e ministros se sucediam em curto espaço de tempo. Desde 1981, o Brasil teve seis moedas diferentes e 16 ministros da Fazenda.

Apesar de os projetos de estabilização econômica, o mandato de José Sarney, de 1985 a 1990, termina com inflação acumulada de 1764,86%, um recorde nacional4. Para tentar controlar estes índices, o novo presidente Fernando Collor de Mello lança um plano econômico que inclui, entre outras ações, uma das mais radicais e impopulares intervenções na economia do país: o confisco das cadernetas de poupança e outras aplicações que ultrapassassem 50 mil cruzados novos. De acordo com Salles (entrevista a COSTA, Folha de S. Paulo, 29/03/98), o Brasil sofreu, no governo Collor, talvez, a mais séria crise de autoestima nacional.

No plano cinematográfico, os anos após o fim da Embrafilme foram marcados por um grande vazio institucional e pela disseminação da ideia de que os filmes feitos no Brasil seriam de baixa qualidade. Para reverter o cenário, os cineastas lutaram para reconquistar o mercado interno e recuperar o prestígio internacional, aspecto que ganhou importância desmesurada na

época. De acordo com Butcher (2005, p. 33), os diretores assumiram para si a missão de representar o país, em postura análoga a do futebol.

Nos primeiros anos da Retomada, os cadernos de cultura e alguns produtores encamparam uma meta midiática para o novo cinema brasileiro: a conquista de uma estatueta do

Oscar. A expectativa pelo prêmio da indústria do cinema encontra correspondência em períodos anteriores do audiovisual brasileiro, quando diversos cineastas usaram a recepção internacional favorável para se legitimarem internamente (CAETANO, 2005, p. 27), reproduzindo o complexo de inferioridade cultural. Quando O Quatrilho (Fábio Barreto, 1995), em 1996, O Que É Isso, Companheiro? (Bruno Barreto, 1997), em 1998, e Central do Brasil, em 1999, concorreram ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o clima de ufanismo era semelhante ao de uma Copa do Mundo, espalhavam-se torcidas pelos filmes país afora, segundo Butcher.

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Quando Central do Brasil estreou, o plano de estabilização e reforma econômica do então Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco e posteriormente presidente Fernando Henrique Cardoso, que incluía a nova moeda, o real, já fazia a economia seguir uma trajetória de estabilização. Em meados dos anos 1990, a classe média viveu um breve sonho de Primeiro Mundo, ao ver o dólar equiparado ao real. Segundo Nagib (2002, p. 17), o brasileiro emigrante dos anos Collor de repente se transmudou no turista consumidor de Miami e Paris, esquecendo momentaneamente o complexo de inferioridade. Aliado a isso, as indicações de filmes nacionais ao Oscar e o Urso de Ouro em Berlim conferido a Central do Brasil, selaram uma espécie de sanção estrangeira ao produto artístico nacional. Pode-se afirmar que a mensagem redentora de

Central do Brasil reflete o otimismo econômico e cinematográfico do país.

Em movimento análogo, mas oposto, está Terra Estrangeira que retoma o tropo marítimo para retratar o período Collor como aquele do fim da utopia e do projeto nacional do Cinema Novo (NAGIB, 2006, p.18). Para a autora, centrado na mitologia do descobrimento e trazendo já no título a palavra “terra”, recorrente em Glauber, o filme é o ponto inicial da curva utópica recente, que toma um rumo ascendente nos dois anos seguintes, em sintonia com a aparente melhoria econômica do país (ibid., p. 18). Terra Estrangeira aborda a sensação de

desenraizamento do brasileiro no começo da última década do século, de perda de nacionalidade em um momento de grande decepção política.

Ter conseguido registrar, em sua estrutura narrativa, essa ferida narcísica do brasileiro (...), é um dos grandes trunfos deste filme. (...) No contexto da filmografia de Walter Salles, deve ser considerado como o momento de luto, muito doloroso, porém necessário para a reconciliação, que virá em seguida com Central do Brasil (ORICCHIO, op. cit., p. 71).

Depois de ir a Portugal em busca da identidade nacional brasileira, o cineasta continua a investigação em um retorno ao Nordeste seco do Cinema Novo, ao qual lança olhar nostálgico e atualizador. Apesar do título homônimo à estação de trem do Rio de Janeiro5, Central do Brasil se refere a essa espécie de essência simbólica ou mito fundador da nação que norteia a trajetória empreendida pelos protagonistas Dora e Josué, materializada na procura pelo pai do menino. Desta forma, o filme identifica pai e pátria - as palavras têm o mesmo étimo, do latim pater - que

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estão associados por decorrência à identidade nacional do país e dos protagonistas. As aproximações biográficas entre os personagens permitem afirmar que a busca pelo pai de Josué seja também a de Dora pelo próprio pai, ainda que no plano simbólico. Se o centro do Brasil a que se refere o título também não diz respeito à região geográfica central do país, pode-se afirmar que o uso da palavra “Central”, em sua acepção relacionada a espaço, indica que a identidade nacional, a qual o longa objetiva localizar, esteja ligada a uma geografia, o que se comprova na análise narrativa. Seguindo o movimento indicado no título, a trama parte do ambiente urbano, o Rio de Janeiro, para o interior, a cidade fictícia de Bom Jesus do Norte, em Pernambuco.

Representados de forma dualista pela estação Central do Brasil e pelas cidades do interior do Nordeste, cidade e campo se afirmam no filme como locais de ressonâncias simbólicas bem distintas. O espaço urbano, que sofreu influência modernizadora, é caracterizado como violento e degenerado. É lá onde o ladrão de walkman é friamente assassinado sob o olhar indiferente de todos e crianças são raptadas para o comércio de órgãos. Já o sertão, por oposição, simboliza o Brasil arcaico, uma espécie de reserva moral da nação, segundo Oricchio (op. cit., p. 138), o lugar da pobreza digna, da solidariedade, dos valores profundos que se foram perdendo em

outras partes, mas lá estão preservados, como num sítio arqueológico da ética nacional. A glamourização do sertão e de seus personagens como grande espetáculo cinematográfico, presente em parte dos títulos da Retomada, tem como contrapartida o sertão do reencontro com o humanismo de Central do Brasil. Na análise de Bentes,

o filme contrapõe o mundo urbano de afetos em dissolução veloz, da solidão e da liquidação dos valores éticos ao cenário rural de afetos duradouros, mundo das trocas e da fala, onde a palavra ainda vale algo, mundo da memória, das imagens sacras e fotográficas e das cartas que registram todas as promessas. (...) Central do Brasil se diferencia por retratar não o sertão violento e insuportável do Cinema Novo, mas um sertão lúdico, rude, porém inocente e puro, como os irmãos que acolhem o menino Josué (2007, pp. 245, 246).

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O sertão surge aí como projeção de uma “dignidade” perdida e como a terra prometida de um inusitado êxodo, do litoral ao interior, uma espécie de “volta” dos fracassados e deserdados que não conseguiram sobreviver nas grandes cidades. Não uma volta desejada ou politizada, mas uma volta afetiva, levada pelas circunstâncias. O sertão torna-se território de conciliação e apaziguamento social, para onde o menino retorna – a cidadezinha urbanizada com suas casas populares – para se integrar a uma família de carpinteiros (ibid., p. 246).

Em sua relação com o contexto histórico, o filme pode ser analisado como a construção da ética em resposta a um impasse moral tido como um dos grandes problemas do Brasil contemporâneo (ORICCHIO, op. cit., p. 221). Dentro desta perspectiva, embotada na luta pela sobrevivência, a personagem Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, é caracterizada como alguém que perdeu a esperança no país e na melhora de sua condição de vida, adotando o cinismo e pragmatismo como forma de conduta. Esses traços são demonstrados em sua atitude de selecionar as cartas dos analfabetos que serão colocadas no correio e quando ela vende Josué para uma quadrilha de tráfico de órgãos e usa o dinheiro para comprar uma televisão nova.

Dora é a “personagem ressentida” que Ismail Xavier (2003) aponta como recorrente na cinematografia brasileira dos anos 1990 em diante, presente também em Ação Entre Amigos (Beto Brant, 1998), Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996), Um Copo de Cólera (Aluízio

Abranches, 1999), Cronicamente Inviável, entre outros. Em sua definição, o personagem ressentido é aquele que compartilha de um desconforto com um grande número de personagens presos ao passado e obcecados por antigos planos de vingança e pensamentos agressivos (ibid., p. 55). A profusão deste perfil psicológico na cinematografia recente permite tomar o ressentimento como um diagnóstico social, afirma o autor, já que pressupõe uma configuração de forças incidindo sobre esses personagens.

O filme faz um comentário a respeito do descaso do Estado com a educação no país, por meio dessa personagem, uma professora que dedicou a carreira à educação de outras pessoas e que não consegue se manter com a aposentadoria, tendo que trabalhar escrevendo cartas para analfabetos em troca de 1 real. Para a atriz Fernanda Montenegro (em depoimento contido nos extras do DVD do filme), Dora é de uma defesa pragmática.

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comer melhor no dia seguinte, pagar sua casa paupérrima, porque nada tinha, a vida te tirou tudo, inclusive a dignidade de ser professora. (...) sua existência [é] pragmática, descarnada e defendida na boa e sadia malandragem brasileira.

Mais do que a situação de uma classe trabalhadora, Dora representa a geração de brasileiros pobres que passou pelo contexto sociopolítico e econômico desolador das últimas décadas e que vivia sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, de alinhamento neoliberal. Apesar da estabilização econômica, o período foi marcado por privatizações que

abriram a economia para o capital internacional, pelo enxugamento do Estado e pela ausência de projetos sociais consistentes para as populações carentes, o que resultou no aumento do desemprego e precarização das condições de trabalho. Ao definir a personalidade de Dora, Salles afirma que a personagem é aética e carrega a brutal indiferença de seu tempo, agindo com o cinismo dos que sabem que não vão ser punidos quando não envia as cartas, como prometera aos clientes.

Seu gesto é o espelho do que vem acontecendo aqui desde os anos 70 e 80. Nesta época, a indiferença secular dos poderosos para com quem não tinha poder parece ter crescido e ampliado seu círculo de influência. Isto veio junto com a idéia de que este será o país do futuro neoliberal, futuro que nem chegamos verdadeiramente a discutir, mas que já assumimos apressadamente (entrevista a COSTA, Folha de S. Paulo, 29/03/98).

Em contraposição, Josué representa a nova geração de brasileiros, nascida no final dos anos 1980 e começo dos 1990, em processo de construção de identidade e que tem esperança no futuro. De acordo com Xavier (2003), no cinema brasileiro contemporâneo, só as crianças podem ser personagens inocentes, dignas de compaixão, encarnarem valores ideais e promessas, se apresentando como espécie de reserva moral. Por isso, para o autor, as crianças são figuras emblemáticas deste cinema, que parece sinalizar com veemência que elas são a única saída possível (ibid., p. 62).

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diretor, o processo de ressensibilização e reconstrução ética das gerações marcadas pelo difícil passado histórico, as quais Dora representa, é necessário para o exercício democrático.

“Central” é sobre a necessidade de descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação com a vida... sem a possibilidade de troca e reciprocidade, sem a percepção do valor das diferenças e da ideia de justiça, não construiremos uma sociedade plenamente democrática (SALLES, entrevista a COSTA, Folha de S. Paulo, 29/03/98).

A narrativa de Central do Brasil abarca três trajetórias paralelas, que se confundem em alguns momentos: a jornada emocional e ética de Dora, a busca de identidade do país e de Josué. No final do filme, Dora recupera sua sensibilidade e ética e Josué, apesar de não localizar o pai, encontra uma família nos dois irmãos. O nome do pai de Josué, Jesus, é uma das referências cristãs do longa, que, segundo Xavier (2003), tem enredo moralista de inspiração bíblica. A utopia do encontro com este pai/pátria, motivo da viagem dos protagonistas, se realiza como ausência, já que o encontro hipotético de Josué com um pai não acontece, o que revela, por analogia, a impossibilidade de se reencenar o projeto nacional no longa (NAGIB, 2006, p. 72).

Apesar de o filme indicar que a identidade nacional é apenas concebível como ficção ou mito (ibid., p. 72), Todd McCarthy diz que o final do longa sugere que as profundas cicatrizes deixadas pelas mazelas sociais do passado recente podem de algum modo ser vividas e superadas pela união criativa dos Brasis velho e novo6 (1998, tradução nossa). Considero a interpretação do crítico interessante, mas discordo quando atribui a união dos Brasis velho e o novo à imagem final do filme em um enorme empreendimento imobiliário popular na fronteira da nova

economia7, indicando a modernização do Brasil “arcaico”. Penso que essa junção se refere à conciliação final dos personagens Dora e Josué e, portanto, das gerações que eles representam. Ou seja, a união da geração de Dora, após a retomada ética e superação do ressentimento com a de Josué, depois de construir novos paradigmas de identidade e esperançosa sobre o futuro, seriam a chave para o Brasil, de acordo com a mensagem do filme. Esta interpretação é corroborada por Salles que, em depoimento contido no site oficial do longa, afirma que ao

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“the deep scars left by the social ills of the recent past might somehow be survived and surmounted by a creative union of the old and new Brazils”

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contrário do Brasil da indiferença e da impunidade, o filme parte à procura de um outro país, onde um certo humanismo, afeto e inocência talvez ainda sejam possíveis - a fratria.

A análise de Maria Rita Kehl (1999) da fratria no rap, estilo musical que se desenvolveu no Brasil em bairros periféricos de São Paulo marcados pela ausência do Estado, auxilia a compreender o sentido desta irmandade em Central do Brasil. Para explicar o apelido “mano”, usado no contexto do rap para evocar o poder da fratria, ela diz:

O Brasil é um país que se considera, tradicionalmente, órfão de pai. Não prezamos nossos antepassados portugueses; não respeitamos uma elite governante que não respeita nem a lei, nem a sociedade, nem a si mesma; não temos grandes heróis entre os fundadores da sociedade atual, capazes de fornecer símbolos para nossa auto-estima (...). É óbvio que a orfandade simbólica produziu não uma ausência de figuras paternas, mas um excesso de pais reais, abusados, arbitrários e brutais como o “pai da horda primitiva” do mito freudiano. O que falta à sociedade brasileira não é mais um painho mandão e pseudo protetor (vide ACM, Getúlio, Padre Cícero, etc.), mas uma fratria forte, que confie em si mesma, capaz desuplantar o poder do “pai da horda” e erigir um pai simbólico, na forma de uma lei justa, que contemple as necessidades de todos e não a voracidade de alguns (op. cit., p. 98).

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III – Aspectos pós-modernos de

Central do Brasil

As décadas de distância que separam as discussões iniciais a respeito do pós-modernismo/pós-modernidade/pós-moderno e o presente nos permitem maior clareza de entendimento destes conceitos tão controversos. O termo pós-moderno, acredita-se, foi utilizado pela primeira vez, em 1870, por John Chapman para se referir a uma pintura; e, após reaparecer no ensaio Sociedade de Massas e Ficção Pós-Moderna de Irving Howe, em 1959, começou a se popularizar entre os críticos literários, especialmente os norte-americanos, nos anos de 1960 para, na década seguinte, ser utilizado mais sistematicamente na literatura e arquitetura, sendo disseminado posteriormente para as demais formas artísticas, práticas culturais, teorias culturais e sociais até o ponto de ser encarado, por alguns autores, como uma época histórica correspondente à era pós-industrial ou ao capitalismo tardio.

É fundamental, portanto, compreender que pós-modernismo pode ser encarado, variando de acordo com cada autor, como um estilo ou estética nas artes, uma teoria da cultura, uma sensibilidade predominante (subjetividade nômade), uma mudança de paradigma (fim das metanarrativas do progresso e da revolução), um estágio da cultura ou uma época. A multiplicidade de pontos de vista possíveis sobre o tema vão de progressista/reacionário pró-pós-moderno, antimoderno; progressista/reacionário pró-moderno, anti-pós-moderno até progressista/reacionário contra a ideia de qualquer termo “pós” (SANTAELLA, 2000, p. 96). A concepção do que seja o pós-moderno também muda conforme o país, já que o conceito depende das características ideológicas, políticas e culturais que o modernismo adquiriu em cada nação (ibid., p. 100). Tampouco se pode definir uma marca temporal precisa a respeito de seu início.

Em linhas gerais, o termo pós-modernismo marca o declínio das ideologias dos anos 1960 no Primeiro e Terceiro Mundo, que deram lugar, nas décadas de 1980 e 1990, a uma espécie de naturalização dos valores de mercado capitalistas (STAM, 2010, p. 327). A proposta de Dick Hebdige (1988 apud STAM, 2005, p. 405) das três principais negações efetuadas pelo

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humana esssencial ou prescrevem objetivos humanos coletivos” (ibid.). A segunda é a negação da teleologia, tanto como destino histórico quanto intenção autoral. E a última, o ceticismo em relação às utopias ou, como define Jean-François Lyotard (2002), às metanarrativas ocidentais, a crença no progresso, na ciência ou na luta de classes.

Para David Harvey (2005), há uma relação entre a ascensão de formas culturais

pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço” na organização do capitalismo que são indícios de uma

sociedade pós-industrial inteiramente nova. Ele traz uma síntese interessante do pós-moderno, como uma condição que privilegia a “heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural”, a fragmentação, indeterminação e desconfiança dos discursos universais ou totalizantes, a redescoberta do pragmatismo na filosofia, a ênfase foucaultiana na descontinuidade e na diferença na história e na primazia dada por ele a “correlações polimorfas

em vez de casualidade simples e complexa”, novos desenvolvimentos na matemática que acentuam a indeterminação, como a teoria da catástrofe e do caos, entre outros (ibid., p. 19).

Já Frederic Jameson concebe o pós-modernismo como uma “teoria unificada da diferenciação”, em que coexistem duas forças contrárias: a unificação de seus campos em afirmações totalizadoras e a proliferação das diferenças (1998, p. 37). Ele propõe uma visão abrangente do termo, que engloba um estilo, um discurso e uma época, relacionados ao atenuamento, extinção ou repúdio do movimento moderno em seu aspecto ideológico ou estético (1996, p. 27).

Pós-moderno não é apenas uma outra palavra para a descrição de um estilo particular. É também um conceito periódico cuja função é relacionar a emergência de um novo tipo de vida social e uma nova ordem econômica – ou seja, aquilo que é sempre eufemisticamente chamado de modernização, sociedade pós-industrial ou de consumo, sociedade das mídias ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional. (...) Tanto não-marxistas quanto não-marxistas chegaram ao sentimento geral de que, em algum ponto, após a segunda guerra mundial, uma nova espécie de sociedade começou a emergir (1983, pp. 113, 117).

De perspectiva declaradamente neomarxista, sua teoria se baseia na ideia de que a

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cultural” do capitalismo tardio, mas, neste estágio, cultural e econômico se fundem, “eclipsando a distinção entre base e superestrutura” (1996, p. 25) e resultando em uma “estetização da vida cotidiana” (1998, p. 73). Entende-se, neste contexto, capitalismo tardio como a terceira fase deste sistema econômico, a transnacional, em que há a emergência de novas configurações na organização das empresas, na divisão internacional do trabalho, na dinâmica de transações bancárias internacionais e das bolsas de valores e na relação entre as mídias, computadores e automação. Era na qual espectros do capital flutuante competem entre si “em uma imensa e incorpórea fantasmagoria internacional”, em que já não há tempo e espaço para o capital e ele alcança sua total desmaterialização no ciberespaço globalizado (1998, pp. 142 e 154).

Importante pontuar o papel da crítica anticolonial e anti-racista que contribuiu para a crise de legitimação no Ocidente do qual são frutos o pós-estruturalismo e o pós-modernismo. Inclusive, o pós-modernismo é visto por alguns críticos do Terceiro Mundo como uma forma do

“Ocidente autonomear-se, fazendo suas preocupações provincianas valerem como condições universais” (STAM, 2005, p. 406). Parte dos intelectuais da América Latina defendem que a cultura latino-americana neologística, como o modernismo brasileiro ou a mestizaje mexicana dos anos 1920, em seus procedimentos híbridos e sincréticos, seria pós-moderna antes da existência do termo (ibid.).

A discussão do que pode ser considerado pós-moderno em arte não apresenta parâmetros plenamente definidos, nem tampouco é unanimidade que se trataria de uma época ou tendência que substituíssem as modernas, é mais indicado tratá-lo como uma posição teórica em relação as artes que se curva sobre a crise do modernismo iniciada quando as vanguardas das décadas de 1960 e 1970, entre elas a pop art, a arte conceitual e o minimalismo, entram em um limite expressivo. A explicação de Celso Favaretto a respeito do papel das vanguardas, é elucidativa:

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Tendo como pilares o valor do novo, do choque e da ruptura, o modernismo, em seu ímpeto utópico, pretendia utilizar a arte na luta pela transformação social, mobilizando experimentalismo, inconformismo estético e crítica cultural, em uma atitude ético-política. A modernidade também atuou no combate às concepções idealizadas da arte, evidenciando a materialidade dos processos. Esses imperativos são apropriados pelas vanguardas da segunda metade do século XX que “exercitam a multiplicidade de estilos, a mescla de técnicas, o caráter heterogêneo e multidisciplinar da arte” (ibid., p.78).

O resultado disso é que as técnicas, temas, retóricas e sintaxes que compõem as diversas formas de arte são liberados produzindo um novo espaço estético, em que tudo pode relacionar-se com tudo em jogo permanente – o pós-modernismo. “Este feixe descontínuo, móvel, a relacionar-se exercer na tensão com os limites da modernidade, interessado na compreensão e superação desses limites” (BRITO, 2001, p. 206) tem a reflexão como o procedimento por excelência. A consciência crítica é o instrumento dos artistas na investigação da história da arte com o objetivo de rearticular formas, processos, procedimentos, materiais, temas e estabelecer conexões entre o presente e a tradição tanto da arte moderna, quanto da clássica. Segundo Favaretto:

o trabalho contemporâneo atravessa as pesquisas modernas (…); captura descontinuidades, sinais e referências, condensando, reatualizando, deformando, citando, acima de tudo utilizando, o que está à disposição como estoque cultural. (…) nos artistas mais interessantes, (…) [os trabalhos] inscrevem-se como elaboração interpretativa, em que a imaginação associa livremente elementos indefinidos, fluxos do presente e referências históricas (op. cit., pp. 80, 81).

Este mergulho pelo imaginário artístico se diferencia das citações modernistas, pois não se coloca como um processo de formação, nem admite a História como totalidade progressista,

mas como transformação que provém da descontinuidade e da não-teleologia dos sistemas artísticos. Na medida em que recuperam processos e procedimentos modernos, as obras evidenciam os recalques efetuados pela modernidade sobre seu próprio sentido – o custo para a efetivação dos projetos -, se colocando como análise interpretativa.

Em um momento histórico em que trabalhos artísticos que propõem rompimentos com o

sistema da arte, apostam na utopia da transformação social ou no novo são anacrônicos, a obra pós-moderna “opta pela realidade imediata da arte. E esta realidade, como se sabe, é um

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As reações favoráveis a uma obra pós-moderna evidenciam suas caraterísticas. Sem poder se apresentar como inusitados, estes trabalhos são desprovidos de contundência, sendo assim qualificados como surpreendentes, curiosos ou interessantes. “O público já não é facilmente desconcertado; o que antes escandalizava hoje diverte e, na melhor das hipóteses, esclarece.” (FAVARETTO, op. cit., p. 82).

Nesse sentido, o expressionismo abstrato em pintura, as formas derradeiras da representação no romance, os filmes dos grandes autores e a escola modernista de poesia

(Wallace Stevens) são vistos como a floração final do alto modernismo que se desgasta e se exaure com essas obras (JAMESON, 1996, p. 27). A arte pós-moderna que emerge, empírica, caótica e heterogênea, tem como exemplos, para Jameson, o cinema experimental e o vídeo, Jean-Luc Godard, o “novo expressionismo”, a new wave, o punk rock, John Cage, o nouveau roman, William Burroughs, entre outros.

Enquanto matriz conceitual e estilística, o pós-modernismo no cinema designa uma certa produção audiovisual midiaticamente consciente, caracterizada pela multiplicidade de estilos, pastiche e reciclagem nostálgicos (STAM, 2010, p. 330).

para este cinema pós-moderno estilisticamente híbrido, tanto os modos vaguardistas modernistas de análise – com o cinema como instigador de rupturas epistemológicas – quanto os modos de análise elaborados para o cinema “clássico” não mais “funcionam” (ibid., p. 333).

A intertextualidade assume posição central nos filmes pós-modernos, mas ela apresenta-se destituída de caráter crítico ou satírico, como era próprio do modernismo, afirmando-apresenta-se enquanto um jogo lúdico que se estabelece com o espectador. Para que esse jogo se concretize, ou seja, as diversas referências sejam percebidas, a pessoa precisa conhecer a história do

audiovisual.

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Traços pós-modernos na Retomada e em Central do Brasil

Na análise do cinema ficcional da Retomada, nota-se a repetição de dois padrões que podemos atribuir como decorrentes das linhas mestras pós-modernistas (negação da totalização, das utopias e da teleologia). A valorização das individualidades ao invés da opção por

personagens que representam totalidades, como o proletário, o povo, o intelectual, e a fuga enquanto solução para situações em que o ambiente produz sofrimento, como observa Cléber

Eduardo Santos (2005), são recorrentes no cinema nacional contemporâneo.

Não havendo possibilidade de agir nos espaços sociais determinados pelos filmes, os personagens principais, de classes sociais distintas, de paisagem predominantemente urbana e situados quase todos na contemporaneidade, só tem como opção abandonar estes espaços, compensando a ausência de qualquer ação política comunitária com opções individualistas e redenções pessoais.(…) A única atitude política, nesses casos, é a da não-contaminação. E da ruptura com o lugar (pp. 51, 52).

O autor cita como exemplos desta tendência os filmes Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2001), O Homem que Copiava (Jorge Furtado, 2003), Latitude Zero (Toni Venturi, 2000), entre outros, mas identifica a obra de Walter Salles como paradigmática desta produção de demanda de exílio, fuga e reconstrução. Para ele, a cinematografia do diretor tornou-se uma matriz contemporânea com sua disposição de injetar alguma potência em personagens aflitos ou sem esperanças para si mesmos ou para o mundo onde vivem (2008). Santos aponta ainda que, embora estas soluções dramáticas sinalizem um esgotamento dos discursos de engajamento

social, as tramas que enfatizam os casos individuais continuam a tematizar a sociedade. E, apesar da mudança de enfoque do panorâmico para o particular, os personagens permanecem, em muitos casos, como ilustração ou sintoma de contextos.

A reflexão deste autor segue a de Xavier (2003) a respeito das características dos longas brasileiros dos anos 1990 e 2000 que tematizam questões sociais. Segundo Xavier, esses filmes

enfatizam encontros individuais, singularidades e tendem a deixar de lado formas narrativas mais diretamente preocupadas com a exposição de forças histórico-sociais que condicionam a ação humana8

(p. 61, tradução nossa). Apesar da propensão a não problematizar politicamente as

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complexidades da vida social contemporânea, essas produções elaboram diagnósticos sociais a partir da configuração de forças relacionadas ao motivo do “encontro inesperado”, que o autor atribui como aspecto importante no cinema atual, não só brasileiro. Mesmo que individualmente esses filmes tendem a optar por abordagens psicológicas ou moralistas de questões políticas e sociais, o conjunto da produção faz referência à psicologia de indivíduos permeados por uma

sensação de impotência diante de estruturas de poder que parecem fora de alcance (ibid.).

Essa análise se aplica a Central do Brasil. Dora e Josué fogem do Rio de Janeiro, em uma

sequência de perseguição que segue o gênero policial, destoando do resto do filme, rumo ao sertão nordestino. A fuga é motivada por uma crise de consciência da personagem provocada pela vizinha Irene (o contraponto ético à personalidade de Dora) que a condena por vender o menino a uma quadrilha de tráfico de órgãos (em troca de uma televisão). A ruptura com a cidade do Rio de Janeiro, caraterizada como degenerada, é, de acordo com a construção fílmica,

a única possibilidade para Dora retomar os valores éticos perdidos. Apesar desta condição de afastamento da cidade parecer uma relação naturalista - de que o homem seria produto do meio e, desta forma, todos os indivíduos que vivessem em cidades grandes teriam valores corrompidos – a construção da personagem Irene, carinhosa, bondosa e humanista, invalida esta interpretação, já que inclui o livre-arbítrio como componente na formação do caráter.

Mesmo reflexo de um contexto sociopolítico e econômico, Dora não é ilustração de uma categoria social totalizadora, como a dos proletários, por exemplo. O que há de mais próximo a esta ideia é a presença dos analfabetos que ditam cartas a Dora, tanto na Central do Brasil quanto no interior de Pernambuco, que cumprem a função de representar o “povo brasileiro”, assim como o caminhoneiro César e a família que mora na antiga casa do pai de Josué. Em caracterização esteriotipada, o “povo” no filme é, além de analfabeto, migrante, religioso (mas

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Apesar de recorrer a essa categoria totalizadora, o “povo” no longa não é usado como parte de um discurso marxista, já que não há qualquer menção a conflitos de classe. A situação sociopolítica em que se encontram aparece de forma naturalizada.

Como se as elites e as classes médias não existissem no país, como se por trás do analfabetismo alarmante do país não estivesse uma série de problemas econômicos e políticos derivados também desses conflitos de classes e interesses, Josué e Dora se deparam com vilões muito específicos: como os traficantes de órgãos ou a polícia violenta e corrupta que extermina os pequenos marginais da estação à queima roupa (PRYSTHON, 2002, p. 73).

Pontos de contato entre a estética pós-moderna e Central do Brasil

Pucci Jr. (ibid., pp. 199 - 201) levanta sete procedimentos comuns adotados, em menor ou maior grau, pelas produções pós-modernas nacionais. Entre eles estão a combinação de narração clássica e inserções modernistas, os filmes que seguem esta poética são híbridos de

ilusionismo clássico e distanciamento modernista (1). O destaque à paródia lúdica, que se verifica por um jogo não-destrutivo com o hipotexto, que deixa de lado o ideal de busca de originalidade modernista (2). O caráter estetizante que não se limita à procura do belo (3). O hibridismo transtextual com outras artes e mídias em oposição ao purismo cinematográfico (4). A conciliação, mas não-adesão, com a cultura midiática e o cinema de entretenimento que se traduz, por exemplo, na incorporação de elementos do videoclipe, da propaganda, entre outros

produtos da cultura midiática, de forma descontextualizada (5). Em decorrência disso, estes filmes não rejeitam o diálogo com o grande público em oposição a algumas vertentes do cinema moderno que pressupõem, mesmo que não intencionalmente, interlocutores iniciados (6). E, por fim, a persistência da representação, com predomínio hipertextual, em que as representações de representações podem produzir a compreensão do processo de construção narrativa ou de

diferentes conotações do discurso que se anuncia (7).

Muitos são os títulos que seguem estas tendências estéticas, como é o caso de Um Tiro na Noite (Brian de Palma, 1981), Veludo Azul (David Lynch, 1986), Blade Runnner, O Caçador de

Andróides (Ridley Scott, 1982) e Pulp Fiction – Tempo de Violência (Quentin Tarantino, 1994).

Referências

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