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3 DIREITA E ESQUERDA: NA POLÍTICA E NA IGREJA CATÓLICA

3.3 Jacques Maritain: uma das causas da discórdia

Ao analisar especificamente este pensador, nosso objetivo é enfocar alguns aspectos de sua obra que influenciaram a corrente católica liberal e entraram em choque com o pensamento dos integristas. Pretendemos apenas expor seu pensamento, uma vez que as críticas e os elogios ao mesmo serão discutidos a seguir, quando poderemos observar o papel que ele desempenhou na querela entre as duas vertentes em questão.

Nossos comentários são baseados em suas seguintes obras: Humanismo Integral (1936), Cristianismo e Democracia (1945), Princípios de uma Política Humanista (1946) e O

Homem e o Estado (1951).

Jacques Maritain nasceu em Paris, a 18 de novembro de 1882, oriundo de uma família culta e protestante. Estudou na Sorbonne, onde, além do curso de Filosofia, também frequentou o curso de Ciências Naturais. Ainda na Universidade conheceu Raissa Oumançoff (judia), com quem viria a se casar em 1904. Converteu-se ao catolicismo em 1906, seguindo primeiramente o espiritualismo de Bérgson e desenvolvendo, posteriormente, um tomismo adaptado à sua época, que procurava restaurar a metafísica cristã, em detrimento do racionalismo antropocêntrico e do irracionalismo panteísta. Por volta de 1914, tornou-se professor na França, mesmo período em que se filiou à Action Française, da qual só iria se desvincular após a condenação de Pio XI, acusando-a de belicismo e ateísmo. Em 1920, visitou os Estados Unidos e, em 1936, veio ao Brasil, passando principalmente pelo Rio de

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Janeiro.

Fugindo da Segunda Guerra, o que se deveu, dentre outras coisas, ao fato de sua mulher ser judia, adotou residência nos EUA, onde ainda viria a trabalhar como enviado francês. Posteriormente, durante o papado de Pio XII, assumiu o cargo de Embaixador no Vaticano.253

Associada aos limites estabelecidos em nosso trabalho, a limitação de nossos conhecimentos sobre Maritain e sua obra não nos permite ir além desta breve introdução sobre o autor. Restringir-nos-emos, portanto, à apreciação do que consideramos como tópicos mais relevantes de sua obra para execução deste trabalho, dentre os quais, sua concepção de humanismo, sua postura diante dos “ismos”, a relação que estabeleceu entre o cristianismo e a democracia e sua perspectiva de diálogo com o mundo moderno.

Entre 1930 e 1950, ao delinear os caminhos que o mundo poderia seguir, destacava o fascismo (e suas variantes), o comunismo e o liberalismo burguês. Para ele, todavia, existia uma alternativa cristã ao mundo, na qual o Estado seria guiado por uma “base existencial”, que chamava de “quarto Estado”. Neste, existiria: “[...] uma liberdade real e uma real participação na gestão econômica e política”.254

Criticando o mundo burguês, observava que a principal causa do insucesso das democracias modernas residia no aspecto espiritual. Em seu entender, a democracia provinha originalmente de uma inspiração evangélica, não podendo subsistir sem a mesma.

O que a consciência profana adquiriu, caso não se volte para a barbárie, é a fé na fraternidade humana; o sentido do dever social de compaixão pelo homem, na pessoa dos fracos e dos sofredores; a convicção de que a obra política por excelência é tornar a própria vida comum melhor e mais fraternal, trabalhando, ao mesmo tempo, para fazer da arquitetura das leis, das instituições e dos costumes dessa vida comum, um lar para irmãos.255

Alceu Amoroso Lima, no prefácio do livro Cristianismo e Democracia (1945), observou que a grandeza deste trabalho era mostrar que o cristianismo representava a verdadeira e autêntica democracia. Dessa forma, naquele momento histórico, se voltasse às suas origens (cristãs), a democracia poderia ser um instrumento político atuante em prol da liberdade e de uma sociedade mais justa, em detrimento dos totalitarismos (há, no livro, a

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Informações biográficas obtidas no site do Instituto Jacques Maritain do Brasil. Disponível em: <http://www.maritain.org.br >. Acessado em: 10 jun. 2007.

254 MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de Afrânio Coutinho. 5 ed. São Paulo: Nacional, 1965. p. 216.

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MARITAIN, Jacques. Cristianismo e Democracia. Tradução de Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: AGIR, 1945. p. 66.

tentativa de colocar lado a lado, democratas e católicos verdadeiros)256. O problema seria “passar da democracia burguesa, ressecada por suas hipocrisias e pela falta de seiva evangélica, a uma democracia inteiramente humana; da democracia falada à democracia real”.257

A fim de delinear o quadro político do mundo em que vivia, Maritain dizia que nele existia uma

[...] coligação entre os interêsses das classes dirigentes, corrompidas pelo dinheiro, agarradas com unhas e dentes a seus privilégios e apavoradas por um terror cego do comunismo (cuja propagação só poderia ter sido eficazmente evitada por uma política clarividente de reformas sociais), as ambições de aventureiros sórdidos e a filosofia escravocrata ensinada em todos os países da Europa por utopistas ávidos de verem suas idéias conquistarem o poder de qualquer modo, sadistas do racismo embriagados pela alegria de empregar o espírito para trair ao espírito, e vulgares traficantes da degradação humana.258

Esses argumentos foram usados para ressaltar que a tragédia das democracias modernas estava no fato de que ainda não haviam conseguido realizar a verdadeira democracia. A falência das elites nacionais de diferentes países, que haviam perdido seu caráter orgânico em relação às demais classes que compunham suas respectivas nações, é apresentada como uma das causas do problema.

O que digo é que a elite inspiradora de que tem necessidade o povo deve sempre viver em comunhão com êsse próprio povo, que fornece infatigávelmente seu trabalho e seu sangue. Agora, por bem ou por mal, será preciso que, de acôrdo com um postulado essencial do pensamento democrático, saiam as novas elites das camadas profundas das nações.259

Maritain também criticava a forma de representação política nas democracias modernas, que para ele suprimia a autoridade e a hierarquia, mas conservava o poder.

Declarar que a autoridade reside na multidão como em seu objeto próprio e sem de lá poder sair para existir em tais homens responsáveis, é uma escamoteação destinada a permitir que mecanismos irresponsáveis exerçam o poder sobre os homens sem ter autoridade sobre eles. Assim o poder (o

256 LIMA apud MARITAIN, Cristianismo e Democracia, 1945, p. 10-11. 257 Id., ibid., p. 38-39. 258 Id., ibid., p. 33-34. 259 Id., ibid., p. 91.

poder do Estado) mascara a anarquia.260

Na concepção maritainiana, a expressão que melhor designava o termo democracia não era “soberania do povo”, mas sim: “Governo do povo, pelo povo, para o povo”261. Outra questão a ser observada é a diferenciação que o autor fazia entre autoridade e poder, ao analisar o poder como a força “por meio da qual podemos obrigar os outros a nos obedecerem” e a autoridade como sendo “o direito de dirigir e comandar, de ser atendido e obedecido por outros”.262

Somada à questão das injustiças sociais, a perda da autoridade levou nosso protagonista a assinalar, como muitos outros autores, que as democracias liberais burguesas engendraram o Estado Totalitário, pois exerciam um poder sem autoridade, e que o conceito de “Soberania e de Absolutismo foram forjados na mesma bigorna”.263

Ao contrário do que muitos dizem, em sua concepção parece não haver incompatibilidade entre a liberdade e a autoridade, pois acreditava que “somos iguais na condição de seres humanos, e essa igualdade é alicerçada nas desigualdades”. Era o que Alceu Amoroso Lima chamava de “unidade na variedade”. Segundo seu conceito de “democracia orgânica”, nem a autoridade, nem o poder eram suprimidos, o que não inferiorizava ninguém, porquanto a autoridade e o exercício do poder deviam ser encarados como um direito de alguns, enquanto a obediência seria motivada pelo ideal de justiça, pelo bem comum264. Além disso, a democracia orgânica seria uma democracia pluralista, que representava os diversos corpos sociais.

Sua concepção de sociedade “temporal ideal” alicerçava-se em três características. Era comunitária, para a qual o bem maior da civilização era o bem comum, e não apenas o individual; era personalista, pois procurava respeitar as diferenças individuais, permitindo que cada pessoa buscasse seus fins supratemporais; e, enfim, era peregrinal, enfatizando que estamos apenas de passagem por este mundo temporal, o que não significava viver indignamente.

Ao propor um “Humanismo Integral”, Maritain fazia críticas ao capitalismo e ao

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MARITAIN, Jacques. Princípios de uma Política Humanística. Tradução de Nelson de Melo e Sousa. Rio de Janeiro: AGIR, 1946. p. 56.

261

MARITAIN, Jacques. O homem e o Estado. Tradução de Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1956. p. 37.

262

Id., ibid., p. 147. 263 Id., ibid., p. 66. 264

Vale ressaltar que, para Maritain, “[...] assim como o bem comum não é simples soma de bens individuais, também a vontade comum não é simples soma de vontades individuais”. MARITAIN, Princípios de uma

comunismo. Em relação ao primeiro, constatava que a liberdade do liberalismo era (e ainda é) apenas uma caricatura da verdadeira liberdade, pois em defesa das vantagens da propriedade privada, defesa que ele considerava justa, esquecia-se de que a maioria nem possuía propriedade. Dessa forma, a palavra liberalismo infelizmente deveria ser entendida “no sentido que ela possui no vocabulário teológico, e designa então a doutrina para qual não tem a liberdade humana uma regra ou medida senão ela mesma”.265

O espírito objetivo do capitalismo é um espírito de exaltação das potências ativas e inventivas, do dinamismo do homem e das iniciativas do indivíduo, mas é um espírito de ódio da pobreza e de desprêzo do pobre; só existe o pobre como instrumento de uma produção que rende, não como pessoa; o rico ademais só existe de seu lado cômo consumidor (para o lucro do dinheiro que serve esta mesma produção), não como pessoa; e a tragédia de um mundo como tal é que, para entreter e desenvolver o monstro de uma economia usuária, será preciso necessariamente tender a transformar todos os homens em consumidores, ou ricos, mas; então, se não há mais pobres, ou instrumentos, tôda essa economia pára e morre e morre também, como se vê em nossos dias, se não há suficientes consumidores (em ato) para fazer trabalhar os instrumentos.266

Em virtude dessa situação, seria preciso instaurar um novo humanismo, um “Humanismo Integral”.

Este novo humanismo, sem medida comum com o humanismo burguês, e tanto mais humano quanto menos adora o homem, mas respeita realmente e efetivamente a dignidade humana e dá direito às exigências integrais da pessoa, nós o concebemos como que orientado para uma realização social- temporal desta atenção evangélica ao humano, a qual não deve existir somente na ordem espiritual, mas incarnar-se, e também para o ideal de uma comunidade fraterna.267

Criticando veementemente o capitalismo e o comunismo, afirmava que os fins é que diferenciavam estes dois sistemas (o primeiro visava ao individual, enquanto o segundo visava ao coletivo), pois os meios268 de alcançar os fins eram muito semelhantes. Maritain preferia a democracia à ditadura, seja de classe ou de raça, mas não a democracia pautada em princípios capitalistas, e, sim, aquela que se baseava em um “Humanismo Integral”, em um

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MARITAIN, Humanismo integral, 1965, p. 85. 266

Id., ibid., p. 91. 267

Id., ibid., p. 8. 268

Na concepção maritainiana, tanto marxistas quanto “antimarxistas” (capitalistas), concordavam em relação à relevância do econômico. Além disso, no totalitarismo comunista os operários não viviam nas mesmas condições que os membros da burocracia, e no totalitarismo nazista o povo ariano, educado a partir de princípios eugênicos, não vivia nas mesmas condições que a elite dirigente. Fato semelhante acontecia nas democracias liberais burguesas.

humanismo cristão.

Ao falar especificamente do comunismo e de alguns de seus desdobramentos, criticava os meios que usavam para buscar uma sociedade mais justa. Como justificativa para atingir este objetivo, fundavam uma sociedade igualitária onde a pessoa humana era diluída na coletividade. Adequando esta crítica aos dogmas cristãos, ressaltava que os marxistas erravam ao pretender transformar o mundo a partir da exterioridade do mesmo, e não a partir do interior de cada homem. A mesma crítica era dirigida à finalidade do comunismo, que pretendia melhorar as condições materiais dos homens, mas se esquecia de que o homem também é um ser espiritual.

Como alguns teóricos que o antecederam, pautado, sobretudo, em encíclicas papais, Maritain considerava o comunismo um erro oriundo do liberalismo burguês, mas alertava que a “criatura havia suplantado os perigos que o criador representava”, pretendendo fazer “da libertação da classe trabalhadora um último episódio da luta da libertação contra o cristianismo e a Igreja, considerados como fôrças de opressão e de obscurantismo”269. Sua crítica também contemplava a condenação à concepção marxista da luta de classes e o papel messiânico que o proletariado adquiria na mesma. Seguindo o “Humanismo Integral”, as classes deveriam colaborar umas com as outras e não lutar entre si; seria esta a diferença entre a sociedade de ordens e a de classe:

[...] cada uma das ordens do antigo regime representava uma função bem definida na sociedade, destinada a perseguir, em seu lugar hierárquico, um bem comum que era o da sociedade inteira; tende ao contrário, o proletariado moderno a constituir uma totalidade independente, que se recusa a reconhecer um bem comum com a classe oposta.270

Não acreditamos que os teóricos leigos ou eclesiásticos pretendiam a volta ao passado medieval (não por não sonharem com a mesma, mas por acreditarem que ela não era possível), pensamos, sim, que, em diferentes temporalidades e lugares, a intelectualidade católica procurava, por diferentes meios, introduzir seus princípios na sociedade.

Ao contrário do que diziam os integristas, Maritain não propunha a fusão entre o comunismo e o catolicismo. Isso fica evidente ao ressaltar que havia três atitudes possíveis em relação aos comunistas: 1) poder-se-ia exterminar os comunistas, mas isso fugia aos princípios cristãos, pois seriam usados os meios nazi-fascistas; 2) poder-se-ia se unir aos

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MARITAIN, Humanismo integral, 1965, p. 183. 270

comunistas, formando com eles uma frente única, mas os comunistas depois de aproveitarem- se desta união poderiam rompê-la. Esta opção era desaconselhada pelo autor, que não confiava nos comunistas e não concordava com suas premissas teóricas; 3) poder-se-ia admitir que os comunistas não eram o comunismo (ou seja, que os homens não eram a doutrina), aceitando ou incentivando sua colaboração para a construção de uma sociedade de liberdade271. Sem dúvida, parecia ser favorável à última atitude em face do comunismo, acreditando que os comunistas podiam ser convertidos.

Entramos, desde então, em outro foco da discussão, a perspectiva maritainiana de diálogo com o mundo moderno, algo que novamente entrava em choque com a “direita católica”. Embora os diferentes seguimentos da Igreja buscassem o mesmo fim, a expansão do catolicismo, eles o faziam por caminhos diversos. Um exemplo disso residia na forma de combater o comunismo. Enquanto Maritain acreditava na necessidade de as democracias reintegrarem o povo russo à comunidade ocidental (convivência entre os diferentes – unidade na variedade), os integristas defendiam a tese de que era preciso isolar o comunismo enquanto não se acabasse com ele, a fim de impedir que contaminasse os católicos.

Pelo estudo do pensamento maritainiano, constatamos que ele primava por um regime democrático, pluralista, em detrimento do comunismo e de qualquer outra forma de regime totalitário, fosse de direita ou de esquerda.

O que foi adquirido pela consciência profana, se ela se não voltar para a barbárie, é o sentido da igualdade de natureza entre os homens e da igualdade relativa que a justiça deve criar entre eles, bem como a convicção de que, pelo próprio meio das desigualdades funcionais exigidas pela vida social, deve a igualdade relativa que a justiça deve criar entre eles, bem como a convicção de que, pelo próprio meio das desigualdades funcionais exigidas pela vida social, deve a igualdade se restabelecer em um nível mais elevado, frutificando na possibilidade para todos de alcançarem uma vida digna do homem, no gozo a todos garantido dos bens elementares materiais e espirituais de uma tal vida, e na participação real de cada um, segundo suas capacidades e seus méritos, à atividade comum e à herança comum da civilização.272

A desigualdade era desenhada como algo necessário na sociedade, mas “uma desigualdade de fato” e não de direito. O mesmo deveria acontecer com a igualdade, que não poderia ser predeterminada.

Negando a concepção comunista, atribuía outro significado ao termo socialização:

271

MARITAIN, Cristianismo e Democracia, 1945, p. 96-97. 272

[...] tomada em seu princípio autêntico, refere-se a êsse processo de integração social através do qual a associação numa determinada emprêsa se estende não apenas ao capital invertido, mas também aos operários e aos patrões, de modo a tornar tôdas as pessoas e os vários grupos nela implicados, de certa forma participantes da co-propriedade e da co- administração.273

Para finalizar este esboço sobre Maritain, podemos dizer que seu pensamento se contrapõe à intolerância civil e religiosa dos ultramontanos e integristas, tanto que, ao criticá- los, lembrava que, se realmente aplicadas, suas propostas poderiam causar grande distúrbio na sociedade.

Ora, o que êles deveriam fazer fôra propor francamente a sua solução para o mundo, exigir que o Estado convertesse em cidadãos de segunda classe todos os não–cristãos e os não–ortodoxos. Deveriam estar prontos a enfrentar as conseqüências que tais exigências acarretariam não apenas para êles próprios, mas para a própria ação da Igreja no mundo, assim como para a paz e o bem comum da sociedade civil.274

Em detrimento daqueles que o chamavam de herético, advertia que enquanto a sociedade contemporânea democrática foi fundada de baixo para cima, com ênfase na liberdade, a Igreja foi fundada de cima para baixo, primando pela autoridade. E se os governantes da sociedade política eram os vigários do povo, o Papa era o vigário de Deus.275

Por fim, embora nos tenhamos restringido a caracterizar o pensamento de Maritain, acreditamos que conseguimos focalizar o que propomos, podendo mostrar que o autor não era tão “liberal” como o descreviam os integristas, caso contrário, Pio XII não o teria acolhido e lhe dado respaldo.