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WALY SALUT AU MONDE.165

É por esta mirada que avulta nas cadeias significantes (se é que assim ainda podemos chamar os elementos inconscientes) um asiático, um latino, um negro que passa pela mente e vem conturbar as delimitações de objeto, os ideais puristas, as enunciações identitárias. As máquinas de escrita, assim como as máquinas desejantes, possuem, pois, um regime associativo, visto que uma máquina sempre se acopla a outra numa síntese produtiva de produção, de mais produção, uma forma de conexão operada pelo “e”: “e isso”, “e mais aquilo”, “e depois aquilo outro”... Há constantemente uma máquina que fabrica um fluxo e uma outra que lhe está conectada, cortando/sugando este fluxo (haja vista o complexo boca-seio materno), e como a primeira, por sua vez, está ligada a uma outra perante a qual realiza seus cortes e extrações, forma-se com isso uma série espraiada por todas as direções.

O desejo, que é a própria condição de existência das máquinas, não para de efetuar atravessamento entre os fluxos, fazendo com que tudo escorra e seja cortado: corrente menstrual que carrega os ovos não fecundados, corrente sanguínea que arrasta uma miríade substâncias pelo corpo, fluxo de esperma que conduz elementos proliferantes, fluxo de excrementos, fluxo aquífero... Ou ainda, fluxo de escrita ministrado pelas mãos, extremidades do complexo corporal que são: “água quebrando os dedos até às pontas quando se escreve / de uma ponta à outra sobre as riscas do papel cantante, / mais coisa menos coisa, pequena coisa, ou: riacho frio, sorve-o a areia” 166, como está

inscrito em Servidões, ou ainda, “Caneta do poema dissolvida no sentido / primacial do poema. / Ou o poema subindo pela caneta, / atravessando seu próprio impulso, / poema regressando”, 167 em Poemacto, ambos de Herberto Helder.

Todos esses fluxos produzidos são absorvidos e interrompidos por determinados órgãos ou objetos parciais. Cada máquina-órgão (ou objeto parcial, supondo aqui um funcionamento não orgânico dos órgãos ou elementos produtores) traduz o mundo

165 SALOMÃO, Poesia Total, p.328-329. 166 HELDER, Poemas Completos, p.644. 167

111 segundo o fluxo que lhe diz respeito. Os olhos, por exemplo, assimilam ou emitem tudo em termos de ver (as feições, as falas, as cores, os sons), constituindo sua própria “língua”, de maneira que sempre estabelecem uma conectividade transversal com outra máquina, “vendo” seus fluxos serem propagados ou cortados por outra máquina. Nas palavras de Nuno Ramos, “o fato é que línguas e cópulas multiplicaram-se por todo o orbe. Tudo fala, tudo penetra e reproduz, dissolve-se para amalgamar-se novamente, morrendo para alimentar. Este fenômeno imprevisível, a transformação da matéria em encaixes complementares” 168 é que ancora o próprio do maquínico.

Sendo assim, essas máquinas não estão apenas em nossa imaginação, mas disseminadas ao logo das máquinas sociais, da enorme máquina-terra. As relações que estabelecemos com as máquinas (inclusive com a própria máquina que somos) não são da ordem da invenção ou da imitação, quer dizer, não somos meramente seus criadores intelectuais nem seus joguetes adestrados. Nós povoamos as máquinas sociais e técnicas de máquinas desejantes por todas as extensões, de tal forma que as primeiras são espécies de conglomerados formados pelas segundas, de acordo com os contornos molares (formas) definidos historicamente. Como enfatizam Deleuze & Guattari, “a máquina social é literalmente uma máquina, independentemente de qualquer metáfora”, 169 ou

ainda, ela executa literalmente variadas operações tais como os cortes/extrações de fluxos, agrupamento/repartição de cadeias cujo corolário é a codificação da matéria do

desejo, sua mais elevada empreitada enquanto máquina. Se as máquinas desejantes formam a microfísica do inconsciente, ao mesmo tempo elas não existem sem os conglomerados molares erigidos ao longo da história, ou seja, as construções sociais macroscópicas que elas ajudam a erguer. Isto que dizer que, por debaixo dos investimentos conscientes vertidos na religião, política, economia, etc., há microinvestimentos inconscientes que atestam a forma pela qual o desejo está presente e se conecta ao campo social. Não obstante, as máquinas desejantes são máquinas sociais e técnicas cujas propriedades moleculares (forças) foram restabelecidas.

Tudo opera em simultaneidade nas máquinas desejantes, como também nas máquinas de escrita (transescritas), mas essa potência produtiva emerge não de uma organização metódica e de ajustamentos certeiros, mas das rupturas e frestas, nas falhas e defeitos,

168 RAMOS, Ó, p.144-145.

112 no solo das intermitências, nos curtos-circuitos e fragmentações, numa soma que jamais apazigua suas partes num todo harmônico, pois nelas os cortes além de serem produtivos são, eles mesmos, junções, ou seja, disjunções inclusivas. Como bem ressaltou David Lapoujade em seu recente estudo acerca da filosofia de Deleuze, os funcionamentos maquínicos possuem um caráter aberrante 170, isto é, de desestruturação ou de trepidação das estruturas. Mais especificamente, haveria uma busca pela máquina dentro da estrutura, pois não se trata de uma oposição entre uma e outra, mas de operar uma espécie de revirada interior, no sentido em que a máquina venha a ser o exterior ou reverso da estrutura: é revirando a estrutura, expondo seu avesso que se encontra sua maquinaria. No encalço das estruturas há constantemente uma máquina que a ameaça de implosão, por meio de suas aberrações e suas panes. É seguro que introduzir um fragmento qualquer na estrutura não é suficiente para virá-la do avesso, pois, muito antes, isso pode até impulsionar seu funcionamento. Para advir o maquinismo é necessário mais ainda, a saber, um corpo, pois só há máquina de corpos, individuais ou coletivos.

As composições maquínicas estão também além ou aquém da distinção homem- natureza, além ou aquém das demarcações que uma distinção como esta condiciona: vive-se a natureza não como uma esfera mais próxima ou distante, mas como processo de produção. Talvez já não haja algo como homem e algo como natureza, sob o jugo de suas respectivas definições, mas tão somente um processo que os fabrica um no outro enquanto máquinas produtoras/desejantes – a cisão eu e não-eu, exterior e interior deixa de ser uma questão. Um duplo devir entra em jogo nesses intercâmbios, útil para descortinar não uma identidade entre homem e a máquina, mas um agenciamento, um movimento que pode tanto transformar matérias domesticadas por suas formas (isto é um homem, isto é um vegetal, isto é uma máquina) quanto converter espécies animais e vegetais em elementos passíveis de entrarem num agenciamento humano. No ponto destes devires imperceptíveis as teses mecânicas e organicistas se dispersam, de tal maneira que se torna indiferente afirmar, por exemplo, que os homens/animais são máquinas, ou as máquinas podem vir à ser homens/animais - as duas definições se equivalem. Uma vez desconstruída a unidade estrutural da máquina, uma vez rejeitada a

113 unidade pessoal e específica do vivente, um liame direto insurge entre a máquina e os seres, entre estes e o desejo: a máquina é desejante e o desejo maquínico.

Anteriormente a esta proposição um vivente qualquer poderia ser assemelhado ao mundo no qual se encontra, contudo, isto seria possível graças a um procedimento comparativo que o dispunha como um sistema apartado, encerrado por natureza, um microcosmo diante de um macrocosmo, ambos fechados em suas constituições, por vezes um exprimindo o outro e nele se inscrevendo. Já pelo prisma que o plano de produção nos propicia, os dois “todos” se abrem em franca interpenetração: se o vivente pode se mostrar análogo ao mundo, isto se dá, ao contrário do que indicava a antiga repartição, porque ele se abre ao aberto do mundo. Ambas as instâncias (o vivente e o mundo) são um todo, mas um todo provisório, sempre em vias de se gerar e de se desenrolar, numa dimensão também descerrada e processual. Assistimos assim à hipótese de formação de um phylum maquínico. 171

Uma máquina lítero-desejante (as artes criam bem suas máquinas), no que tange a ela, pode muito bem levantar a seguinte questão e, ao mesmo tempo, sinalizar respostas dispersas: como elaborar e inscrever fragmentos que tracem entre si relações diferenciais, isto é, que disponham em contato sua própria diferença, sem aludir a uma totalidade essencial pretérita nem a uma totalidade como resultado a surgir? Dado este problema provocativo à criação, a categoria de multiplicidade, empregada como substantivo que se distancia tanto múltiplo quanto do uno (predicativos), seria aquela capaz de abarcar a produção das máquinas, irredutíveis à unidade como estas são: nada que se aproxima nada me é estranho

fulano sicrano beltrano seja pedra seja planta seja bicho seja humano quando quero saber o que ocorre à minha volta ligo a tomada abro a janela escancaro a porta experimento invento tudo nunca jamais me iludo [...] futuro presente passado tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo

é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão e na sequência de diferentes naipes

quem fala de mim tem paixão. 172

171 Cf. DELEUZE; GUATTARI, O anti-Édipo, p. 508. 172 SALOMÃO, Poesia Total, p.115-116.

114 Reconhecendo a multiplicidade como âmbito do ofício poético e solo do desejo é que Waly Salomão declara, em “Olho de lince”, de Gigolô de Bibelôs, que “nada do que se aproxima [lhe] é estranho”, lugar heteróclito que se fez capaz de abranger, em devir, formas minerais, vegetais e humanas tendo em vista o experimento e a invenção. É o tempo dos restos, dos estilhaços: tal como numa viagem (de trem, de ônibus, de carro), não se apreende como totalidade a diversidade daquilo que se vê, não há uma unidade das perspectivas, mas uma gama de fragmentos transversais que o viajante capta através da janela, passíveis apenas de reaproximações, remendos, agrupamentos retalhados. Entretanto, neste périplo, uma alternativa pode perfeitamente ser colocada: ou a máquina artística permanecerá em relações extrínsecas que a faz operar no quadro do sistema representativo-contemplativo, ou se tornará corrente de um fluxo que alimenta uma só e mesma máquina desejante, agenciada a tantas outras correntes que preparam sorrateiramente uma avalanche generalizada e factual.

A contar de um posicionamento como esse, a literatura como máquina defronta-se constantemente com códigos sociais firmados no decorrer da história no intuito de refreá-la. Talvez, os instrumentos de codificação forjados pelas sociedades não sofram demasiadas inflexões ao longo do tempo (elas não dispõem de tantos), de maneira que podemos assinalar três vetores principais: a lei, o contrato e a instituição. Estes são detectados, entre outros, num tipo de relação que estabelecemos com os livros por meio de, ao menos, três vertentes distintas. Em primeiro lugar temos os livros da lei, nos quais o contato do leitor com os escritos se dá mediante esta, o que os levou a serem intitulados precisamente de livros de códigos, sagrados ou não. A seguir, avulta-se outra modalidade de livros erigida através do contrato, um contratualismo burguês centrado numa literatura mercantilizada, no qual a venda do livro agencia alguém que vende e alguém que compra o que ler: circuito contratual que aprisiona autores e leitores. Por último haveria ainda um terceiro tipo de livro, o político, que independente da orientação incorre no risco de ser apropriado como um livro institucional, de formas molares do momento ou vindouras.

Além disso, nesses enfeixamentos assistimos a uma gama de hibridações que fazem, por exemplo, volumes contratuais ou institucionais serem tomados como escrituras sagradas, salientando o caráter subjacente dos códigos que podem emergir em um ou outro tipo de livro. É em meio a esta mestiçagem de registros que Waly, na abertura de

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Gigolô de Bibelôs, no poema intitulado “Ao leitor, sobre o livro”, destaca o work in

progress constante em sua poética, a “incessante incompletude” dos escritos que se colocam “sob o signo do ou”, não como conjunção excludente, mas como operador de sínteses disjuntivas que englobam possibilidades de leitura e recepção variadas:

Por hoje é só.

OBRA partida com a mesma incessante INCOMPLETUDE.

Sempre tendente a ser outra coisa. Carente de ser mais. Sob o signo do ou.

O U.

Transbordar, pintar e bordar, romper as amarras, soltar-se das margens, desbordar, ultrapassar as bordas, transmudar-se, não restar sendo si mesmo, virar ou-tros seres. Móbil.

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