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1.1– Do virtual ao atual: acontecimentos... Fábrica do poema (Waly Salomão)

sonho o poema de arquitetura ideal cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,

tornei-me perito em extrair faíscas das britas

e leite das pedras. acordo.

e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.

acordo.

o prédio, pedra e cal, esvoaça

como um leve papel solto à mercê do vento

e evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido.

acordo,

e o poema-miragem se desfaz

desconstruído como se nunca houvera sido. acordo!

os olhos chumbados

pelo mingau das almas e os ouvidos moucos, assim é que saio dos sucessivos sonos: vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-se os dedos estarrecidos. sinédoques, catacreses,

metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros sumidos no sorvedouro.

não deve adiantar grande coisa

permanecer à espreita no topo fantasma da torre de vigia.

nem a simulação de se afundar no sono. nem dormir deveras.

pois a questão-chave é:

sob que máscara retornará o recalcado? (mas eu figuro meu vulto

caminhando até a escrivaninha e abrindo o caderno de rascunho onde já se encontra escrito

que a palavra "recalcado" é uma expressão por demais definida, de sintomatologia cerrada: assim numa operação de supressão mágica vou rasurá-la daqui do poema)

pois a questão-chave é: sob que máscara retornará?48

37 O descompasso entre o texto que se sonha compor e a matéria escrita ainda por vir, ainda separada do gesto. A ânsia por atualizar um plano virtual luminoso no qual as palavras se conectam e são cimentadas linhas após linha, talhadas pelo artífice que se tornou “perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras”, contraposta ao corpo lírico que resta inerte, à página que espera. Esta cena da usina poética de Waly Salomão nos coloca em contato com a multiplicidade enquanto substantivo/substância agenciadora do ato de composição, na medida em que a dupla face de seus elementos, uma atual e a outra virtual, é revelada pelo relato da voz que cria. 49 Neste sentido, a ação de escrever não pode ser considerada como advinda de uma inspiração romântica

ex nihilo, nem mera inscrição de uma realidade comtemplada ou composição vinda da reflexão racional interiorizada, já que as palavras e seus arranjos, “sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oximoros”, antes de tomarem forma, isto é, serem atualizadas, estão imersas numa nuvem de imagens virtuais, “arquitetura ideal” figurada na passagem entre a consciência e a inconsciência. Tempo extremamente fugidio este dos elementos virtuais, no qual, por vezes, “o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo” antes de chegar à tona, dado que a irradiação e assimilação dos mesmos, seu aparecimento e desaparecimento acontecem num átimo menor do que o mínimo de tempo continuado assimilável. Essa brevidade deixa-os numa condição de incerteza e imprecisão, “à mercê do vento”, “anéis de fumo de ópio” que se desfazem facilmente no ar, como se nunca houvessem existido. Estamos ainda num instante diáfano, num lusco fusco que é a antecâmara do poema. Não se trata, por hora, propriamente da “Fábrica do poema” (poema publicado em Algaravias: Câmara de

ecos e musicado com vigor, em 1994, por Adriana Calcanhoto), mas da transição eclosiva do virtual ao atual que nele se faz presente.

A cada sucessivo sono o estado de vigília rodeia-se de névoas sempre renovadas de virtualidades, cosmo do sonho que não cessa de emitir novas imagens que reagem sobre o corpo daquele que enuncia, este que por certa duração permanece com “os ouvidos moucos” e “os olhos chumbados” diante do múltiplo que o atravessa. O desenrolar desse processo, que permite a distinção entre o que é virtual e o que é atual, corresponde aos cortes cravados pelo tempo, quando este segue diferenciando-se de acordo com dois

49

As categorias de atual e virtual demarcam, entre outros, as apropriações e deslindamentos que Deleuze realizou da filosofia de Bergson. Cf. Le bergsonisme, Paris, PUF, 1966. [Edição brasileira: Bergsonismo, trad. Luiz B.L. Orlandi, São Paulo, Editora 34, 1999].

38 caminhos, a saber, um que preserva o passado e outro que faz o presente transcorrer, sonhar e acordar, revezamento reiterado ao longo dos versos. O presente que passa em nós e diante de nós é que define o atual, enquanto o virtual aparece, por sua vez, em um tempo menor do que o mínimo de movimento apreensível por nossos sentidos, mas que persiste. Mesmo sendo o efêmero, o deformador de ponteiros, é no virtual que o passado se conserva, trazido na “cinza de um corpo esvaído”, deixando os “dedos estarrecidos”. Trata-se mesmo de um dinamismo, de um drama (poder de atualização ou de encarnação de uma ideia/intensidade virtual, contido na gênese das coisas) 50 no qual a percepção está envolvida: uma percepção atual se entranha numa nuvem de elementos virtuais que ora se aproximam, ora se afastam, por vezes se apresentam, por outras se escondem. São espécies de rastros, espectros que podemos denominar de virtuais mediante a velocidade lenta ou acelerada que os mantém no inconsciente ou os precipitam na consciência, e “não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita”, nem simular o sono ou “dormir deveras” almejando o retorno do Mesmo, dada a movência e transmutação infinita do campo virtual.

O passado se mostra aqui como uma preexistência vaga, até certo ponto, espécie generalizada de já-aí cujas impressões da voz poética supõem e suas percepções utilizam. Nesta mirada, “o próprio presente não existe a não ser como um passado infinitamente contraído que se constitui na ponta extrema do já-aí”, 51 condição mesma

para que o presente se passe e possibilite os alternados estados de sono e vigília. Sucessivos estados que remetem não a um passado finalizado, mas ao presente que escorre sempre para o porvir. Por sua vez, o passado se dá a ver na coexistência de nuvens expandidas ou condensadas que contém todo o poema sonhado, sendo o presente a nuvem limite, extremidade que abarca todo o passado e o agora dos versos que estão diante dos nossos olhos. Por entre o passado como antecedência indiscriminada e o presente como passado contraído à voz que enuncia, há uma multiplicidade de nuvens que compõem regiões diversas, cada uma com seus próprios aspectos e singularidades. De acordo com o tipo de lembrança que a voz lírica procura ela se aproxima desta ou daquela nuvem, de forma que estas regiões não se sucedem

50 A noção de drama das intensidades virtuais desenvolvida por Deleuze será abordada no plano de

intercessões seguinte, colocada em contato com a questão da criação de máscaras em Herberto Helder, Nuno Ramos e Waly Salomão. Mas faz-se necessário antecipar que a dramatização tem por função atualizar ideias, e atualizar pode ser entendido precisamente como criar.

39 numa continuidade, mas coexistem do ponto de vista do atual presente que, a cada vez, se desloca e incide como limite: a simultaneidade de um tempo não cronológico, virtual. A existência de tal voz, na medida em que se desenrola o poema, se duplica por uma atmosfera virtual, como num um reflexo especular, de maneira que a cada instante de enunciação nos oferece dois elementos, um atual e um virtual, uma percepção e uma lembrança, tal como assinala em ressonância Herberto Helder, ao menos em dois momentos da narrativa poemática de Photomaton & Vox (1979): “Escreve-se para o silêncio onde, depois, o outro eu, o duplo pessoal, expectantemente alternativo, se apronta para a resposta à pergunta que é todo o escrito, toda a personagem em acto que a escrita também é”. 52 Como um encenador que, ao mesmo tempo, representa seu

personagem, se escuta e se olha encenar, a voz tem para si o constante desdobramento de seu presente em percepção e lembrança: “Até quando pode a memória, e quanto pode, sou o actor e espectador cúmplice de uma vida perturbada, dramática e irónica. O pouco que percebo de massa teatral caótica pode inscrever-se na pauta de uma interpretação menor”. 53

As imagens virtuais não são mais destacáveis da materialidade atual do que esta daquelas, visto que um campo reage sobre o outro modificando-o, reconfigurando-o: o que era “prédio, pedra e cal” se esvoaça, mas deixa restos com os quais serão engendrados o poema presente; “o poema-miragem” se rarefaz, mas projeta sua sombra sobre a “Fábrica do poema” que lemos agora. Oscilação, permuta perpétua entre o objeto atual e sua imagem virtual, com a imagem virtual devindo, sem parar, atual... Coexistência que nos conduz constantemente de um a outro em suas diferenças – como notou Deleuze, “diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade que se atualiza”. 54

Um objeto atual tem então seu duplo virtual (um duplo como qual não se assemelha), assim como uma percepção tem sua própria lembrança como uma duplicação. Tal recordação, que parecia estar sumida no sorvedouro, longínqua ou dispersa, entretanto, não é uma imagem que se formaria após a percepção de um objeto, mas um virtual simultâneo a coisa percebida, contemporâneo à coisa atual, como se um espelho defrontasse poema onírico e poema concretizado: aquilo que soava como uma busca vã pelo tempo perdido se materializa em obra. Na verdade, os versos que estão escritos no

52 HELDER, Photomaton & Vox, p.24. 53 HELDER, Photomaton & Vox, p.10.

40 papel já estavam diluídos na penumbra do corpo, sinalizando uma transfusão que aparece também no “Poema jet-lagged”, de autoria do poeta baiano: “Escrever é se vingar da perda./ Embora o material tenha se derretido todo,/ igual queijo fundido”. 55

O plano de composição, ou plano de consistência do poema é então perpassado por forças em via de atualização, compreendendo, ao mesmo tempo, o virtual e o seu atual, havendo um parco limite entre estes, de forma que quem caminha na penúltima estrofe da “Fábrica” até a escrivaninha e abre o “caderno de rascunho”, já escrito, é um vulto, enquanto o corpo mesmo permanece imóvel a fitar. De qualquer maneira, segundo Deleuze, a relação entre o atual e o virtual é de natureza distinta daquela que se pode estabelecer entre dois atuais. 56 Os atuais dizem respeito a elementos já constituídos, determinados, enquanto a relação entre atual e virtual diz de uma individuação corrente, ou singularização em curso por traços específicos em cada caso. O atual (o poema escrito) é aqui o suplemento ou construto de uma atualização cujo sujeito é o virtual (o poema sonhado), processo que dá origem a uma individuação, a uma forma inscrita na página.

Na engrenagem composta pelo atual e virtual temos, com efeito, a presença de outrem, ou seja, ao redor de cada coisa que se perceba ou de cada ideia que se pense organiza-se um mundo à margem, uma espécie de orla, um fundo do qual outras coisas e outras ideias podem surgir a partir da transição dos virtuais aos atuais, ou da passagem tênue do sonhar ao acordar. Olha-se um objeto, em seguida desvia-se o olhar, deixando que ele volte ao fundo, no mesmo instante em que se avulta desta profundidade um novo objeto para a percepção. Se caso este novo objeto não venha ferir aquele que olha, se não vem atingi-lo, como quando chocamos com algo que não vimos, isto significa que o primeiro objeto acolhia toda uma borda na qual era possível sentir a preexistência dos seguintes, uma campo de virtualidades e potencialidades que já se intuía suscetíveis de serem atualizadas. “Ora, um tal saber ou sentimento de existência marginal não é possível a não ser por intermédio de outrem”. 57 Outrem é para nós uma abertura no

horizonte, não apenas porque nos desarranja e nos lança para fora de nosso centramento intelectual, mas também porque o prenúncio de sua chegada é capaz de fazer cintilar um

55 SALOMÃO, Poesia Total, p.227.

56 Cf. DELEUZE; PARNET, Diálogos, p.179-185. 57 DELEUZE, 2011, p.315

41 plano de objetos posicionados à beira de nossa percepção, passível ainda de se tornar o alvo dela. Assim, as coisas situadas atrás de um vidente qualquer são sentidas em conexão formando um mundo, justamente por serem visíveis e vistas por outrem, esta instância que proporciona as margens e transições no mundo. Outrem coloca em xeque o desconhecido, o imperceptível, pois acrescenta a marca do não percebido naquilo que percebemos, permitindo-nos apreender o que não percebemos como apreensível para outrem.

O que seria da “Fábrica do poema” se lhe faltasse a companhia de outrem? Talvez o conhecido e o desconhecido, o apreensível e o inapreensível se confrontariam num combate às cegas, incomunicáveis entre si, sem atravessamentos e nuanças gradativas. A visão do poeta dos elementos composicionais de seu texto estaria ensimesmada, reduzida a si mesma, pois o que ele não vê, os lugares em que não esteve, as cores e sons que não pode presenciar seriam uma incógnita, um nada insondável. O plano de composição restaria cru e infértil, sem potencialidades nem virtualidades, um mundo em que a esfera do possível desabou, onde não há mais passagens, trânsitos inventivos que são a condição da escrita. Nada mais subsistiria além de distâncias intransponíveis, diferenças impermeáveis ou repetições intragáveis.

Devemos nos atentar para o fato de que outrem não é um objeto na área de nossa percepção, nem mesmo um sujeito que nos percebe. Antes de tudo, ele é um agenciamento realizado em nosso campo perceptivo, sem o qual a potência dos sentidos não operaria extravasando suas balizas comuns. Que este agenciamento seja efetuado por sujeitos variáveis e se mostre de maneiras distintas, de um ponto de vista cambiante, de um “eu” para um “ele” e vice-versa, não impede que ele exista como condição geral a cada um que o atualize em seu campo perceptivo particular – o “seu” ou o “meu”, dois planos distintos. Outrem se apresenta como um agenciamento primeiro, que dá início a relatividade dos outrem que irão efetuar, respectivamente dentro de suas possibilidades, a trama perceptiva. Com isso, distinguimos outrem como agenciamento para além dos sujeitos, de um outrem aqui, ou um outrem lá, que apontam para formas individuadas efetuando o agenciamento neste ou naquele campo perceptivo.

Não se trata aqui de oscilar de um polo em que outrem corresponderia a um estado de objeto a um polo em que ele é conduzido ao estado de sujeito, de forma que outrem se

42 torne objeto quando “eu” for sujeito, e não se transforme em sujeito sem que “eu” advenha objeto. Se por um lado “este outrem aqui é sempre alguém, eu para vós, vós para mim, isto é, em cada campo perceptivo o sujeito de um outro campo”, 58 por outro,

outrem como agenciamento maior não é ninguém, um plano primacial que antecede os seres que o efetuam. Ademais, não é um “eu” interior que torna a percepção possível, mas sim outrem como agenciamento, um possível que se obstina a surgir e ressurgir na escrita, como destaca o poema “Assim se vai aos astros”, assinado por Waly em Gigolô

de bibelôs, de 1983:

QUEM?

Quem é esse QUEM que dentro de mim fez ninho e é amigo E é avião fora de rota ou corpo celeste doido essa ave E me alevanta e seu bico aponta

Para as margens da exuberância?59. (grifos do autor).

Este agenciamento primeiro promovido por outrem, “avião fora de rota ou corpo celeste doido” é que abre alas para a existência possível, “para as margens da exuberância”, na medida em que o possível existe enquanto aquilo que foi expresso em algo que o exprimiu, e que não é análogo a ele. Enquanto virtualidade, potencialidade, o possível é a imanência do criativo em tudo o que é efetivo, atual, não à maneira de um projeto prévio que se realiza, mas como liberação de novas possibilidades. O relampejo das seguintes questões acompanha assim o ato de criação: como é possível o surgimento de alguma coisa nova? Ou “Quem é esse QUEM” que possibilita tal surgimento? O que está em jogo no sonho com o poema ideal? Ou ainda, “Quem é esse QUEM que dentro de mim fez ninho e é amigo?”. Estas autoindagações mostram-se em Waly Salomão como a percepção e a captura de aspectos e entidades possíveis e informes que serão trazidas ao poema que se escreve. O possível não é compreendido como uma categoria especulativa indicando alguma coisa que não existe: o terreno do possível expresso pelo sonho, ou melhor, por outrem, existe inteiramente, porém, não atualmente, fora dos versos que o exprimem. O poema de urdidura sublime não se assemelha ao poema composto, este o implica, o enrola como algo diferente, num tipo de flexão que aloja aquilo que é expresso naquilo que o exprime.

58 DELEUZE, Lógica do sentido, p.327. 59 SALOMÃO, Poesia Total, p.189.

43 Imaginemos um semblante alegre (em condições de experiência nas quais não vemos as causas dessa alegria): esse rosto exprime um mundo possível - o mundo alegre. Que seja entendido por expressão a relação que produz uma espécie torção entre algo que se expressa e um expresso, de tal modo que o segundo não exista fora do primeiro. O possível não designa qualquer semelhança entre as duas instâncias, mas o estado do implicado, do envolvido em sua própria heterogeneidade perante aquilo que o envolve: o rosto alegre não se parece com aquilo que o alegra, e sim o envolve em estado de mundo que alegra, um mundo de outrem que carrega a alegria, antes soterrada, à superfície, numa inflexão ou trânsito anunciada por Waly nos versos de “Minha Alegria”, também integrante das Algaravias:

Minha alegria permanece eternidades soterrada e só sobe para a superfície

através dos tubos de filtros alquímicos e não da causalidade natural.

Ela é filha bastarda do desvio e da desgraça, minha alegria:

um diamante gerado pela combustão, como rescaldo final de incêndio. 60

Outrem não pode ser separado da expressividade que o constitui. Eis porque, para apreender outrem como tal, são necessárias condições de experiência específicas: o instante em que o expresso ainda não tem (para nós) existência fora daquilo que o exprime, “o rescaldo final de um incêndio” que não é fruto de uma “causalidade natural”, mas aparição forjada na escrita. Em cada complexo perceptivo há uma multidão de possibilidades em torno da realidade, fazendo com que outrem seja a expressão de um mundo possível. Se Waly Salomão apreendeu os “tubos de filtros alquímicos” como os condutos pelos quais outrem emerge à superfície, à escrita, Herberto Helder, por sua vez, em Última ciência, de 1988, os detectou no corpo, numa alquimia afim que transporta “o ouro lírico” por dentro até o corpo se expandir, devir outro, se tornar “monstruoso” sob os auspícios da outridade:

Os tubos de que é feito o corpo, os tubos violentos,

os turvos tubos de chumbo,

enche-os o ouro lírico, sensível, alquímico: o luxo o luxo

- e só então o corpo é monstruoso. 61

60 SALOMÃO, Poesia Total, p.234. 61 HELDER, Poemas Completos, p.438.

44 Outrem encerra e anuncia paisagens inexploradas, possíveis que estão enrolados naquilo que os exprime, conferindo, ao mesmo tempo, na sobreposição que realiza na linguagem, um grau de realidade a eles: a existência dos possíveis envolvida pelas expressões, dramatizado por estas. Assim o poeta pode multiplicar nosso mundo, povoando-o com todos esses expressos que não existem fora de suas expressões, visto que outrem dispõe da linguagem como meio para conferir vida aos possíveis abarca. Talvez, o mundo amplificado por outrem é apresentado por Herberto Helder de maneira ainda mais evidente no poema-livro Húmus, de 1966, quando se apropria ao longo dos versos de fragmentos e imagens da narrativa homônima do escritor, também português, Raul Brandão:

Fecho os olhos: há outra coisa enorme. Atrás desta vila há outra vila maior, outra imagem maior. Há palavras

que é preciso afundar logo noutras palavras.

- Uma vida monstruosa. Quando falo está ali outra coisa quando me calo.

Outra figura maior

Fecho os olhos: vejo virem os gestos. O espanto recamado de mundos caminha

desabaladamente. 62

Com outrem, o virtual, essa “vida monstruosa”, “figura maior” que se aproxima e se distancia por entre as palavras, intercorrente ao falar e calar, não é mais uma virtualidade caótica, mas uma consistência, entidade que se produz sobre um plano de composição que transpõe o caos - é o que Deleuze e Guattari chamam, por vezes, de “acontecimento”. No ver dos autores franceses, “o acontecimento não é de maneira nenhuma o estado de coisas, ele se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas ele tem uma parte sombria e secreta que não para de se subtrair ou de se

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