• Nenhum resultado encontrado

Nesta breve biografia, optamos por ressaltar textos que Jaspers fala sobre ele mesmo, por isso “Jaspers por Jaspers”. São partes de seu diário, falas do documentário “Karl Jaspers: um autorretrato” e trechos de seu texto necrológico. Jaspers fala dele mesmo com despretensão e sinceridade, e uma essencial coerência com suas teorias. Karl Jaspers nasceu em 1883. No documentário Karl Jaspers: ein Selbstpor- trait, gravado em 1968, um ano antes de sua morte (1969), o filósofo relata que seu pai considerava a falta de verdade um grande mal, repudiava a mentira, bem como a obediência cega. Por isso foi um pai extremamente paciente, e tudo que exigia de Jaspers tinha uma razão a ser explicada e refletida. Era diretor de banco e realizou com responsabilidade o ofício. Valorizava a liberdade, por isso se afastou da função pública, anterior ao banco, por não suportar leis sem sentido. Pintava aquarelas, muitas dessas obras eram expostas na residência da família.

Em meio à essas aquarelas, Jaspers considera que o pai exemplificou uma vida que não se preocupa apenas com a praticidade, mas que dá espaço para a transcendência. Sobre a mãe, Jaspers relata que , tinha um temperamento menos tranquilo que o pai, porém, incrível . Ele continua seu relato, afirmando o incansável amor e otimismo da mãe perante os filhos. Diante do filho enfermo, ela se esforçava para que a doença de Jaspers não desfigurasse a beleza da vida.

Jaspers foi desde a infância e por toda a sua vida um homem doente. O diagnóstico feito quando ele tinha dezoito anos, previa, antes dos trinta, uma supuração geral que traria consigo a morte. Jaspers habituou-se a ter em conta a sua doença em todas as decisões que tomava.(. . . ) Para viver, tinha que renunciar a mil coisas, evitar todo o perigo, combater cada dia a doença, sem todavia se deixar dominar por ela. Para levar a termo uma obra, tinha de suprimir as interrupções inevitáveis em seu trabalho por meio de uma concentração extrema. (HERSCH, 1982, p. 7)

Jaspers tinha uma espécie de fechamento nos brônquios, junto a uma insufici- ência cardíaca. Essa conjuntura o deixou fisicamente vulnerável a vida inteira. Esta é uma situação-limite da vida de Jaspers1. Encarada com seriedade, graças em parte, à

condução amorosa dos pais ao filho.

Eu acho que crescer com estes pais, naturalmente cordiais, inconsciente- mente criou um reconhecimento de segurança que se transformou em prote- ção. Mas não só proteção, e sim a certeza do amor. Pois quando chegaram as

1 Karl Jaspers fundamenta o conceito de situação-limite na sua filosofia da existência. São eventos

pelos quais o ser perde a segurança na realidade empírica, doença e morte, por exemplo. Estão contextualizadas nas nossas elaborações sobre as cifras da transcendência ( item 3.2.6.1).

dificuldades, elas não se quebraram as bases. Certamente eu era consciente do que ocorria. E meu pai me dizia onde estavam meus limites, e onde não podia me ajudar. Está aqui uma grande inflexão. (KARL. . . , 2012, tradução nossa.)

A inflexão de Jaspers trata da responsabilidade com autenticidade. Ele diz que a consciência dos limites lhe ensinaram que um homem não pode tudo. Onde seu pai não podia lhe ajudar era o lugar da autenticidade responsável de Jaspers. Explica essa lição através de um conflito que ocorreu no ensino fundamental. O professor de educação física exigiu que para determinado teste fosse retirada a jaqueta. Jaspers se recusou, não viu sentido para tal coisa. O diretor da escola não o suportava, portanto, essa desobediência lhe custaria uma expulsão do colégio, a não ser que o aluno pedisse desculpas ao professor.

O pai de Jaspers diante do ocorrido, diz que a decisão é do próprio Jaspers. E caberia ao genitor ir até às instâncias superiores, pedir que o filho não fosse expulso pelo diretor, porém, afirma que seria muito difícil alguma autoridade contrariar a deci- são do diretor da escola. Explica também que, Jaspers precisaria estudar em outra escola, numa localidade vizinha, o que provocaria a mudança de toda a família.

Na ocasião, Jaspers recebeu também conselhos de um professor, que explica ao jovem aluno que todos os trabalhos realizados serão perdidos, caso seja expulso. Que ele avaliasse o que valeria perder, afirmando que Jaspers estava correto, que o outro professor errou, porém, o jovem precisava ponderar os riscos.

Jaspers então encontra uma forma de ser responsável e autêntico. O jovem vai até o professor e diz: “Por ordem do diretor me dirijo ao senhor, e solicito que me des- culpe.“ (JASPERS, 2012, tradução nossa) O próprio professor já estava constrangido, reconhecendo que a desobediência de Jaspers não necessitava a expulsão. Ele aceita a frase esperta de Jaspers, onde pede desculpas, mas não por convicção, e sim por obrigação.

Jaspers consegue não negar seus princípios, e entender que precisava de uma razão abrangente2 para agir com responsabilidade. Mas, o foco desta situação é a postura do pai de Jaspers. Criou uma abertura para que o jovem adolescente decidisse por si próprio, e assumisse seus atos. Assim como o professor, que apresenta o quadro da questão, mas sem impor nada. Essas posturas são de uma educação para a liberdade.

A liberdade é mais que um tema para Jaspers, é condição da sua existência, pois, sua história é repleta dessa cifra3. O casamento com Gertrud Mayer é condição da

sua filosofia, traz episódios de cifras da transcendência e situações-limite, propulsoras da abertura para a cifra liberdade. Ao partir do princípio, vemos que a forma como Jaspers se apaixonou por Gertrud é empiricamente inexplicável, além dos modos da

2 O conceito de Razão abrangente é aprofundado no tópico 3.2.7 deste trabalho. 3 Sobre as cifras, desenvolvemos aprofundamentos no tópico 3.2.6.1.

imanência:

Na visita, algo repercutiu com o efeito de um relâmpago. E isso já no primeiro momento, quando Gertrud, ainda de costas, levantou-se e se virou para mim. Parecia que as duas pessoas que se encontram nesse momento estavam interligadas desde sempre. Como isso de fato aconteceu - não posso saber e, portanto, relatar. ( JASPERS APUD RÖHR, 2013, p.62)

Jaspers viveu um casamento “misto” durante os longos anos do Nazismo. Ger- trud era judia, e nesse caso, a orientação era separar-se da esposa e deixá-la a disposição do regime nazista para apreensão e morte. Porém, essa não era a orienta- ção interior de Jaspers, diferente de muitos alemães, ele manteve seu casamento, e foi assim considerado também um alvo do regime.

Estamos diante de uma livre decisão existencial que resistiu a 8 oito anos de perseguição. A primeira consequência foi a expulsão da cátedra de Heidelberg, impedido-o de exercer sua vocação. Daí por diante, os anos de incerteza sobre a preservação da vida. O casal passou ser cada vez mais recluso. A sobrevivência dependeu dos avisos de amigos e ex-alunos que trabalhavam no regime Nazista, e assim atrasavam as buscas pelo casal. Em seu diário, Jaspers conta que o último pedido de busca por ele e Gertrud deu seu curso natural, pois, ninguém havia conseguido o impedimento. Justamente nesse momento a guerra chega ao fim com a vitória americana.4

Gertrud sempre retorna com o mesmo pensamento: ela quer morrer só, ela não quer me destruir ao mesmo tempo - a minha morte a tortura, a dela não. Ela me pede permissão para deixar este mundo sozinha. Mas não posso permitir que ela morra sem mim. Poderes, que a obrigam morrer, mantam- me também. Essa solidariedade é absoluta. Parece que tudo perderia a substância se uma separação como a de Gertrud de mim fosse pensada como compreensível, permitida, possível. Nesse caso, na verdade, não existiria mais nada de seriedade. O homem é somente homem quando ele entra em algum momento com a sua vida inteira. (JASPERS, APUD RÖHR, 2013, p. 63)

Gertrud Mayer foi uma mulher que se manteve onde ela queria estar. Realizou o trabalho privado do lar, dedicou-se a Jaspers, não por obrigação, mas por amor como decisão existencial. O lugar de Gertrud na obra jasperiana é objetivo e subjetivo. Objetivamente a esposa datilografava todos os escritos, ao tempo que revisava, subjeti- vamente provocava uma luta amorosa5 que impulsionava Jaspers a ser cada vez mais

verdadeiro consigo mesmo.

Sua presença acorda impulsos em mim que não me permitem sucumbir no mundo das formas espirituais ( geistige Welt)6e no mero pensar. Muito mais

ainda: estou convicto, caso haja profundeza na minha filosofia, de que jamais teria alcançado esta sem Gertrud.( JASPERS APUD RÖHR, 2013)

4 Relatos coletados em entrevista concedida de Ferdinand Röhr.

5 A luta amorosa é uma relação existencial entre os seres. Aprofundamos essa questão no tópico

3.2.6.2.

A premissa de ser cada vez mais si mesmo é um caminho que Jaspers percorre com Gertrud. O filósofo escrevia a punho suas teorias, que eram revisadas por Gertrud no momento da datilografia. A esposa concedia uma devolutiva teórico-prática sobre a relação entre o dizer e o fazer, entre a interioridade do próprio Jaspers e os escritos.7 Descobriu nela “a presença de uma alma clara”, capaz de “o preservar de todo conforto moral”. A “seriedade inexorável” com que levaram a vida em comum, foi para a sua pesquisa filosófica uma fonte inesgotável de coragem e serenidade. ( HERSCH, 1982, p. 8)

Por fim, a influência mais determinante da presença de Gertrud na filosofia jasperiana é a consolidação do amor, que possibilita ao filósofo vivenciar a cifra da transcendência, e ter no amor a expressão da força que move sua filosofia, pois, só poderia reconhecer o amor quem o vivenciou.

Se queremos a origem em nos que sustenta e movimenta tudo, ela é, afinal, em todas as formas que pode adquirir, o amor. Por isso o amor é, no fundo de todo filosofar verdadeiro, a última força movente. (JASPERS apud RÖHR, p. 65)

A vida profissional de Jaspers também representa sua noção de liberdade. Jaspers iniciou o curso de direito, mas identificou uma distância entre a justiça e as questões do ser humano, o que o fez ver a profissão como um grande jogo de argumentos. Recorreu a medicina, tanto para entender sua doença quanto para estar mais próximo do humano. Concluiu o curso de medicina em 1909. Por muitos anos, foi assistente da clínica Psiquiátrica de Heidelberg . Especializou-se em psiquiatria, o que atendia seus anseios de ter o homem como objeto de estudo. Mas, esse homem-objeto da psiquiatria não convergia com as ideias de Jaspers8.

Foi convidado a escrever Psicopatologia Geral, publicado em 1913. É uma obra de dois volumes, que representa um princípio jasperiano: a distinção das coisas. A sua experiência na clínica de Heidelberg de 1908 a 1915, como psiquiatra e pesquisador, suscitou muitas questões, que o levaram a investigar profundamente as teorias que apoiavam a psiquiatria, e mais, a metodologia aplicada a cada uma delas. Para essa investigação teórica, Jaspers se aprofundou na fenomenologia de Hussel e na psicologia explicativa de Dilthey.

Sob a ótica da fenomenologia husserliana, o então psiquiatra aprende os fenô- menos, ou seja, como lhes aparece, e não sobre o que se é. Observa que as teorias da psiquiatria buscam uma compreensão integral do ser humano, lendo-o a partir da sua biologia, das emoções e da mente. Porém, os métodos abordados, elegem um padrão, e uma direta relação de causa e efeito.

Psicopatologia Geral é, portanto, uma descrição e distinção das teorias da psicanálise, e uma análise dos métodos e reflexão da adequabilidade do método ao

7 Informação concedida em entrevista de Ferdinand Röhr. 8 Confere HERSCH, 1982, p. 14-16

estudo e ao objeto: homem. Uma análise biográfica a partir da fenomenologia, da psi- cologia explicativa e da psicologia compreensiva. Jaspers fundamenta a psicopatologia como campo científico.

Em 1931 passou a lecionar filosofia. Costumava indicar aos seus alunos se de- bruçassem sobre os filósofos que lhe fizessem sentido na própria existência. (JASPERS, 1984). De 1933 a 1945 foi impedido de lecionar, fazer conferência e publicar.

Os anos de reclusão provocaram um aprofundamento em sua obra. Alguns dos fi- lósofos que fazem sentido para existência de Jaspers, e influenciaram seu pensamento são: Edmund Hussel, Kierquegaard, Nietzsche, Max Weber, Kant, Platão.

Em 1948 decide lecionar em Basiléia, Suíça, onde se reencontra com a paz, e termina seus dias aos 86 anos de idade. Jaspers trabalha até o fim.

Suas principais obras são: Allgemeine Psychopathologie (1913) Psicopatologia geral (1913), Philosophie (1932) Filosofia em três volumes (1932), 1.000 páginas. Von der Wahrheit (1947) Da Verdade (1947) ,1.000 páginas. Der philosophische Glaube angesichts der Offenbarung (1962) A Fé filosófica diante da Revelação (1962), Die geistige Situation de Zeit (1931) A situação espiritual do nosso tempo (1931). Die grossen Philosophen (1957) Os grandes filósofos (1957).

Por fim, Jaspers por Jaspers a partir de alguns trechos de seu texto necrológico:

Tudo que lhe foi dado realizar, não poderia tê-lo feito sem sua esposa, Gertrud Mayer (. . . ) eles viveram, com uma gratidão infinita, a realidade cotidiana da sua vida, ao longo de anos instáveis(. . . ) depois vieram os doze anos de angústia sob o nacional-socialismo. Miraculosamente protegidos, passaram pelo meio das forças temíveis (. . . ) acolhido em Basileia, na tradição europeia, na liberdade, encontrou ali um asilo tranquilo. Foi essa a última dádiva que recebeu. No decorrer destes anos, dedicou todas as suas forças ao prossegui- mento do seu trabalho filosófico, em si mesmo inacabável. ( JASPERS APUD HERSCH, 1982, p.105)

Figura 3 – Gertrud Meyer e Karl Jaspers

Fonte: pima1963.wordpress.com (2019)

Figura 4 – Karl Jaspers