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A lógica é uma moral do pensamento, como a moral, uma lógica da ação (PIAGET, 1994, p. 295).

Figuraria irrelevante uma síntese da teoria de Jean Piaget, no que tange a moral, não fosse nossa expectativa de que profissionais da área da saúde, além de educadores, acessassem nosso estudo. Portanto, julgamos necessária uma breve explicação do espaço ocupado pela moral na trajetória deste teórico.

Jean Piaget (1896-1980), biólogo de formação, visava a um entendimento sobre como alcançamos o conhecimento, como esse de desenvolve, ou seja, uma questão de epistemologia genética. O estudioso procurou respaldar suas pesquisas na psicologia, ainda que considere que a epistemologia ultrapasse a própria psicologia. Ele confere a seus estudos um caráter científico e não meramente especulatório, pautado nisso é que contesta certas vezes perspectivas apenas filosóficas.

É prudente destacarmos que os questionamentos sobre o julgamento moral de Piaget compõem sua primeira fase, conforme Montangero e Maurice-Naville (1998), compreendida entre os anos 20 até meados dos anos 30. Neste período, Piaget teria se ocupado de entender “a mentalidade infantil e a socialização progressiva do pensamento” (MONTANGERO;

MAURICE-NAVILLE, 1998, p. 23). Presente nesta fase, encontraremos a obra O Juízo Moral

na Criança (1994)12, publicada pela primeira vez em 1932, a qual julgamos ser melhor questionada e compreendida quando da leitura de obras posteriormente escritas pelo mesmo autor como Estudos Sociológicos (1973a), A Tomada de Consciência (1977a) e Fazer e

Compreender (1978)13.

Seus estudos iniciais foram particularmente importantes por permitirem a compreensão de que havia um pensamento egocêntrico14 que, posteriormente, passaria por uma evolução, acarretando em uma descentralização a partir da qual o indivíduo conseguiria codificar certas regras morais por meio do reconhecimento do outro, das trocas e contraposições que o meio lhe propiciaria.

Piaget destaca ser um consenso entre os estudiosos da época que a essência da moral15 seria o sentimento de respeito. Contudo, a discussão que ainda pairava sobre o tema era se a ideia de obrigação para com a regra dava vasão ao sentimento de respeito por essa ou o inverso. Ficava obscuro, portanto, e contestável o como se chegava a estabelecer esse sentimento ou o “como a consciência vem a respeitar as regras” (PIAGET, 1994, p. 23). Em momento oportuno, Piaget dialogará com Kant, face essa obscuridade, haja vista a perspectiva do segundo de que “o respeito não é a causa, mas o efeito da lei [...]” (PIAGET, 1973a, p. 214) sem qualquer explicação sobre como o respeito é desencadeado.

Em Estudos Sociológicos (1973a), o teórico destinará sua conclusão do livro para dialogar sobre as leis jurídicas em relação às normas morais, concebendo que é o reconhecimento que faz com que o indivíduo siga a lei, tanto como em moral é o respeito que acarreta no sentimento de obrigação para com a regra.

Do ponto de vista do desenvolvimento individual, uma criança reconhece como válida a autoridade dos adultos antes de ter a noção de regra, como respeita seus pais antes de ser obrigada por deveres precisos (PIAGET, 1973a, pp. 218-219).

Para Piaget, foi o estudo com crianças que lhe permitiu ter uma visão mais aprofundada da gênese desses sentimentos em relação às regras morais e da própria consciência desse respeito, vislumbrando a existência de uma hierarquia de normas morais – por consideração de princípios e escalas de valores – tanto quanto de leis jurídicas, conforme propõe Hans Kelsen.

12 Primeira publicação em 1932.

13 Primeiras publicações dessas obras se deram no ano de 1965 para primeira e 1974 para as duas últimas. 14 Centralização do sujeito em si sem que, contudo, esse tenha noção de seu próprio “eu”.

Assim que, se há hierarquia, há organização e coordenação, portanto, há um pensamento lógico por trás da ação moral.

O pesquisador em sua obra O Juízo Moral na Criança (1994) esclarece que seu propósito é estudar o juízo moral e não propriamente os sentimentos morais e comportamentos (condutas), até porque o julgamento moral não garante a conduta moral. É preciso antes mesmo perceber que nem todo julgamento corresponderá a prática, fato explicável pela própria tomada de consciência em que a ação precede a compreensão mesma, carecendo de um processo de desenvolvimento para reconhecimento do ato tal qual se apresenta ou o mais próximo possível do real.

Dessa forma, para Piaget “trata-se, inicialmente, de saber o que vem a ser o respeito à regra, do ponto de vista da própria criança” (PIAGET, 1994, p. 21) para melhor compreensão de seus julgamentos. Para Lia Freitas (2003, p. 60), a obra O Juízo Moral na Criança pode ser entendida “como um estudo psicogenético das relações entre o respeito e a obrigação moral”. Por meio desta obra, Piaget compreende também que “nem as normas lógicas, nem as normas morais são inatas na consciência individual” (PIAGET, 1994, p. 296), por isso, um estudo evolutivo é inteligível.

Esse pesquisador esclarece que há duas perspectivas a partir das quais podemos analisar o juízo16 moral, a primeira partindo da prática das regras e a segunda tendo em conta a consciência que os indivíduos possuem dessas. O estudioso estipula estágios tanto para as práticas, a partir da análise do jogo entre crianças, como para consciência da regra, pautando- se em dilemas morais. Procuramos sintetizar esses estágios, conforme o Quadro 6.

Percebemos uma continuidade funcional e diferenças de estrutura no que tange a regra, “os estágios devem ser concebidos como as fases sucessivas de processos regulares, os quais se reproduzem como ritmos, nos planos superpostos do comportamento e da consciência” (PIAGET, 1994, p. 75). Os estágios em que se encontram os indivíduos podem ser, pois, característicos de anomia, heteronomia ou autonomia frente à regra.

É importante entender que para determinada norma um sujeito pode ser considerado autônomo, enquanto para outra pode ser heterônomo, o que dependerá do nível de trocas estabelecidas entre os indivíduos e o tipo de respeito atribuído a esses e as regras mesmas. Assim que, não há absolutismos e não há um sujeito totalmente autônomo em todos os sentidos.

Quadro 6 - Estágios de desenvolvimento do juízo moral por Jean Piaget

Estágios da prática da regra Estágios da consciência da regra (Sentimento e interpretação)

1º) Motor e individual

O jogo da criança é ainda individual, não havendo regras coletivas ou sentimento de obrigação. Inicialmente, a criança possui uma regra motora e demonstra satisfação pela regularidade da ação (sem estar consciente dessa), a qual se esquematiza ou ainda ritualiza. Os rituais habituais permitem o progresso da conscientização. Essa tomada de consciência ainda que em processo permitirá a elaboração de símbolos “jogados” (PIAGET, 1994, p. 37), os quais somente serão objetos do pensamento a partir da linguagem e da capacidade de representação. Para Piaget, o símbolo (individual e motivado) e os rituais são condições necessárias ao desenvolvimento das regras e também dos sinais coletivos.

1º) Anomia (ausência de regras)

A regra motora não alimenta um sentimento de obrigação para com ela. Há apenas uma questão motora e o fato de a criança suportar a regra ocorre por achá-la interessante. Não há distinção entre o que é regra externa e os rituais que a criança mesma estabelece.

2º) Egocêntrico (± entre 2 e 5 anos)

A criança inicia seu contato com as regras codificadas, mas ainda não se atém a elas. Basta observar que grande parte das crianças ainda jogam considerando apenas sua perspectiva nesta fase, dir-se-ia que jogam sozinhas. Essa assimilação de códigos se daria por imitação e pela própria linguagem que aproximam o indivíduo do social. O indivíduo egocêntrico ainda se foca no prazer do êxito e não no prazer social. Prepondera o realismo moral17 nesta etapa.

2º) Heteronomia (regra coercitiva)

A regra é considerada sagrada e intangível, de origem adulta ou divina. Devido à regra ser

exterior ao indivíduo, essa não pode ser

contestada, portanto, sendo imutável. Toda modificação dessa é, pois, compreendida como uma transgressão. Para criança desse estágio, não existem regras novas, toda regra é preexistente (sempre existiu). A regra é, assim, coercitiva,

imposta. Há um respeito místico e unilateral

pela regra. 3º) Cooperação (início ± entre 7 e 8 anos)

Há neste momento uma busca pelo prazer social e pela necessidade de entendimento entre os parceiros de jogo por meio de regras fixas. O jogo passa a ter caráter coletivo, ainda que hajam variações nas explicações da regra pelos participantes. Há, evidentemente, um reconhecimento da regra, o que é necessário, porém, ainda insuficiente para que essa seja codificada (apropriação da regra e uso dessa). Em verdade, há mais intenção de cooperar com o outro do que a realização disso em si. Falta um raciocínio formal da regra, para distinguirem quando aplicá-la com assertividade, e um interesse maior pelo legislar.

3º) Autonomia (regra racional)

Ocorre na transição do estágio da cooperação para codificação da regra. A regra passa a ser considerada como coletiva, de caráter obrigatório, sendo interiorizada pelo indivíduo.

Regra racional oriunda da cooperação e do respeito mútuo, bem como da consciência

autônoma. A mudança da regra se torna possível desde que submetida a análise e aceitação coletiva. Há, pois, respeito racional e motivado. 4º) Codificação da Regra (início ± entre 11 e 12 anos)

Neste período, há maior interesse na regra por ela mesma; legislar passa a ser motivo de divertimento. Observa-se que as crianças referem as mesmas codificações, ou seja, há busca por consenso entre os indivíduos e respeito pela regra coletiva.

Fonte: elaborado a partir de PIAGET, 1994.

17 Logo, chamaremos de realismo moral a tendência da criança em considerar os deveres e os valores a eles

relacionados como subsistentes em si, independentemente da consciência e se impondo obrigatoriamente, quaisquer que sejam as circunstâncias às quais o indivíduo está preso (PIAGET, 1994, p. 93).

[...] não poderíamos falar de estágios globais caracterizados pela autonomia ou pela heteronomia, mas apenas de fases de heteronomia e de autonomia, definindo um processo que se repete a propósito de cada novo conjunto de regras ou de cada novo plano de consciência ou de reflexão (PIAGET, 1994, p. 75).

É visto que o respeito a regra se estabelece em parte no seio das relações sociais, as quais estimulam o desenvolvimento das operações de reversibilidade. Contudo, também ocorre pelos progressos no que tange a noção de dever e de bem – como justo e adequado.

Piaget (1994) explica que o dever, para uma consciência heterônoma, provém de um sentimento de obrigação para com a autoridade, sendo assim a noção de bem que estabelece é definida pela obediência. “É bom todo ato que testemunhe a obediência à regra ou mesmo à obediência aos adultos, quaisquer que sejam as instruções que prescrevam; é mau todo ato não conforme às regras” (PIAGET, 1994, p. 93).

A noção de bem se alterará com o tempo, migrando para concepção de justo, correto e adequado, entendido num contexto, dentro de um sistema de regras socialmente reconhecidas. Sendo assim, a regra será avaliada em termos de conteúdo, resultados, intenções e atuações dos atores, gerando um sentimento maior do que uma obrigação irracionalizada, configurando, pois, num respeito para com a regra em si e o que nela se encerra.

Importante ressaltar que a concepção de respeito pressupõe também um reconhecer da escala de valores do outro, não sendo demandado, no entanto, que o sujeito a adote, mas apenas que atribua um valor a este outro ponto de vista (FREITAS, 2003, p. 86). Piaget (1994, p. 83) difere, ainda, o respeito de caráter unilateral, oriundo da coação, daquele considerado mútuo, proveniente da cooperação:

A grande diferença entre a coação e a cooperação, ou entre o respeito unilateral e o respeito mútuo, é que a primeira impõe crenças ou regras completamente feitas, para serem adotadas em bloco, e a segunda apenas propõe um método de controle recíproco e de verificação no campo intelectual de discussão e de justificação no domínio moral.

Piaget afirma que “só a cooperação leva à autonomia” (1994, p. 299), assim que, o percurso do indivíduo no âmbito social deve propiciar a chegada até as relações de reciprocidade para que se configure um indivíduo com verdadeira personalidade18, que interioriza as regras antes exteriorizadas e julga as normas de maneira coerente com sua própria conduta.

18 [...] entendemos por personalidade não o eu inconsciente do egocentrismo infantil, nem o eu anárquico do

egoísmo em geral, mas o eu que se situa e se submete, para se fazer respeitar, às normas de reciprocidade e da discussão objetiva. A personalidade é, deste modo, o contrário do eu, o que explica porque o respeito mútuo de duas personalidades, uma pela outra, é um respeito verdadeiro, em lugar de se confundir com o mútuo consentimento de dois “eus” individuais, susceptíveis de ligar parte do mal e parte do bem (PIAGET, 1994, p. 82).

Para que haja cooperação, tal qual relata Piaget, é preciso que se desenvolva a capacidade de tornar as ações reversíveis, estando neste âmbito inclusa a ideia de reciprocidade, extremamente importante para consolidação de relações de respeito mútuo. Faz-se também essencial a conservação de sentimentos, permitindo ao sujeito confiar no outro e desfazer-se da concepção de desamor imediato quando infringe as regras.

Piaget trata ainda o reconhecimento do outro, de diferentes pontos de vista, como marcantes na formação do sujeito moral, o que somente será possível a medida que houver dissolução do egocentrismo inicial da criança. Essa verificação de um outro que é diverso do eu acarretará também no questionamento paulatino dos próprios pensamentos, valores e normas.

Em concomitância com a análise do desenvolvimento da consciência moral, há um esforço por compreender a noção de justiça que advém de seguir determinadas regras morais. Inicialmente, a criança considera justo o que condiz com as normas e com o imposto pela autoridade. Posteriormente, há evolução para uma justiça que considera a igualdade e a equidade. O estudioso aponta três concepções de justiça, pautado nas falas das crianças, as quais expomos no Quadro 7.

Quadro 7 - Concepções de justiça

Justiça Característica

Imanente Definida como proveniente das coisas mesmas, como uma lei natural e automática; Responsabilidade individual.

Retributiva

Definida pela correspondência entre ação e retribuição; Inseparável da sanção e proporcional ao dano;

Responsabilidade objetiva presente – a criança julga os fatos morais pela quantidade (proporção) do dano – e individual.

Distributiva

Definida pelo ideal de igualdade;

Responsabilidade subjetiva presente – a criança julga os fatos morais pela intenção do indivíduo no momento da ação – e coletiva.

Se há o dever de corresponder às normas, há necessidade de explicar que meios se pode empregar para restabelecer a ordem quando do descumprimento dessas. Piaget (1994) apresentará três formas de restabelecimento da ordem, consoante a visão das crianças, as quais elencamos no Quadro 8.

Durante, por exemplo, dilemas morais, desequilíbrios ocorrem, exigindo do sujeito uma busca por respostas, um transpor obstáculos e uma demanda por refletir e por assimilar ou acomodar dados. O indivíduo, mediante este processo de desequilibração, aos poucos transitará da regra analisada a partir da noção de mero dever para uma observação dessa considerando a

noção de bem. Neste momento, o sujeito não se vinculará mais a autoridade que dita regras apenas, mas compreenderá que a regra por ela mesmo é relevante e necessária. O sujeito passa a sentir-se vinculado e responsável pela manutenção da regra, por conta disso, respeitando-a.

Quadro 8 - Maneiras de restabelecer a ordem após transgressões

Sanções Característica

Sanção expiatória

Considera a proporção entre o sofrimento imposto e a gravidade da falta, sem por vezes possuir relação direta com o ato cometido (sanção arbitrária). Atrelada à responsabilidade objetiva, ou seja, à proporção do dano. Indicada por indivíduos até os 7-8 anos para os quais a autoridade e a coação prevalecem.

Sanção de reciprocidade

Configura-se como uma tentativa de rompimento do elo social, sendo a sanção condizente com o ato. Vinculada a relações de cooperação entre indivíduos e a regras de igualdade, as quais prevalecem sobre qualquer outra preocupação. Indicada por indivíduos entre 8 e 11 anos para os quais há primazia da igualdade sobre a autoridade.

Repreensão

Não é uma sanção, mas apenas uma maneira de levar o culpado a compreender que rompeu o elo de solidariedade. Vinculada a relações de cooperação entre indivíduos. Indicada por indivíduos entre 11 e 12 anos para os quais há mais que igualdade, há equidade.

Consoante conclusões de Freitas (2003), Piaget postula sobre as possibilidades dos sujeitos quanto ao seu desenvolvimento, seja no que tange a lógica ou mesmo a moral. A autora discute que atualmente nem todos os indivíduos alcançam certa autonomia, o que poderia advir de um individualismo característico de nossa sociedade contemporânea. É claro em Piaget que somente a cooperação, para além do consentimento entre “eus” individuais, possibilita a construção de uma personalidade autônoma.

Freitas esclarece que “Piaget estabeleceu as condições necessárias, mas não suficientes, para ação moral” (2003, p. 115). Após essa síntese, podemos avaliar o atual panorama da moral em relação à alimentação nos estudos científicos.

4 METODOLOGIA DE PESQUISA

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