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Jiní, desejos do corpo; Rosalina, anseios da alma

2 Delimitações espacias

2.2 Jiní, desejos do corpo; Rosalina, anseios da alma

Buriti, minha palmeira, Nas estradas do Pompeu – Me contou o seu segredo:

Quer o brejo e quer o céu...

(ROSA , 1969, p. 84)

Jiní é bela, sensual e proibida, por ser amásia de Tomé Cássio: tal associação de elementos explica porque a personagem constitui fonte de atração imediata

para Lélio. O primeiro encontro entre os dois dá-se em espaço aberto, porque ele se nega, inicialmente, a permanecer no rancho, que assume em princípio o status de um lugar interdito: “Queria que ele viesse à noitinha; falava. Ele não pôde deixar de negar: - “Mas, vir aqui, semelhado, em sua casa de vocês dois, isto eu não posso... Como é que posso?!” (ROSA, 1969, p. 197) Então, combinam o encontro debaixo de um angelim-rosa, no espaço aberto da natureza, onde há uma laje grande:

Foi. No lusco, a Jiní estava de branco, sentada na beira da laje; ficou em pé feito fogo. Nem ele pôde abrir nem ouvir palavra nenhuma, ela se abraçou, se agarrou com ele, era um corpo quente, cobrejante, e uma boca cheirosa, beiços que se mexiam mole molhados, que beijando. Ali mesmo, se conheceram em carne, souberam-se. E dali foram para a casa, apertados sempre, esbarrando a cada passo para o chupo de um beijo, e se pegando com as mãos, retremiam, respiravam com barulho, não conversavam.

Mal e nem conversavam, raras poucas vezes, as palavras curtas, na dura daqueles dias, quando cumpriam de se encontrar, dentro de casa, todas as noites sem uma só. Foram dias sem cabeça, Lélio se sendo em sonho no acordado, fevrém de febre. (ROSA, 1969, p. 197)

O acento poético do excerto é obtido por meio de vários recursos: a antítese entre o lusco – o escuro do pôr-do-sol – e a roupa branca de Jiní; sua sensualidade marcada por elementos ligados ao calor - “feito fogo”, “corpo quente”, “fevrém de febre” –, à sinuosidade do corpo – “cobrejante” -, e a detalhes como “boca cheirosa”, “beiços mole molhados.” A descrição da boca torna-se altamente sugestiva, ao envolver as esferas do olfato, da visão e do tato, ajudando a compor, pela sinestesia, o ambiente erótico que se instala no encontro. Percebe-se, ademais, que a languidez do clima amoroso e os movimentos do ato de beijar imprimem-se no texto por meio da aliteração dos fonemas oclusivos bilabiais sonoros /b/ e /m/ em “beiços que se mexiam mole molhados que beijando”, combinados com os os sons nasais dos verbos de ação, em “mexiam” e beijando. Além disso, a gradação decrescente entre “boca” e “beiços” sinaliza o rebaixamento da personagem feminina, que cativa Lélio mas não o completa, ao patrocinar uma espécie de amor instintivo, carnal, como afirma Nunes (1991, p. 150): “[...] Jiní, a ardente mulatinha, [...] consegue aprisionar os ardores juvenis de Lélio na estreiteza de uma volúpia opaca, sem possibilidade de ultrapassar os

limites da monotonia imposta pelo prazer recorrente.” Dessa forma, quando se lê “cumpriam de se encontrar, todos os dias, dentro de casa”, pode-se pensar na relação entre ambos como um prazer imposto por necessidades físicas, tal como beber, comer e dormir, como se vê no excerto:

Apertava o andar, queria se esquecer do menos mais. Aí as horas se enrolavam. Os dois caíam um no outro, se reajuntavam com fome fúria, como um fim. Alumiava-os a candeia de mamona, que aumentava o tamanho do cômodo, dependurando sombras por avermelhados caminhos. (ROSA, 1969, p. 198)

O jogo de luz e sombra formado pela candeia de mamona pode transmitir a idéia de que o prazer alcançado nos encontros não era límpido, transparente. O aumento do espaço que esse tipo de luz proporciona simboliza o prazer físico, intensamente buscado pelo vaqueiro: “Afã, que queria o fundo do amar da mulatinha. Apertava-a com uns braços” (ROSA, 1969, p. 198). As sombras relacionam-se à qualidade desse deleite, exclusivamente prazer físico, visto que “não falavam, por assim. Ela não falava. [....] Não via o mingo amor, não sentia que ele mesmo fosse para ela uma pessoa, mas só uma coisa apreciada no momento, um pé de pau de que ela carecesse” (ROSA, 1969, p. 198).

Portanto, o rancho de Tomé Cássio é o lugar de uma experiência amorosa que contém em si o prazer e a dor, já que ele “gostava dela, sim, sim, e marcava saudade daquelas noites, às dadas, que pagavam o penar. Socavava pensando, repassando a lembrança na idéia, que embebia, que se fervia” (ROSA, 1969, p. 201). Os termos antitéticos “embebia” e “fervia” traduzem o grau de envolvimento de Lélio com Jiní, enredado na sensualidade agressiva da personagem, a ponto de fazer a cabeça ferver, ou seja, transtorná-la, consumindo- o, como percebe Rosalina: “ – ‘Meu Mocinho, o senhor está com olheiras e olhos vermelhos... Você está pouco dormido...” (ROSA, 1969, p. 199).

Tomé retorna para tempos depois ir-se embora do Pinhém, definitivamente. Jiní fica disponível, mas não apenas para Lélio, o que causa o rompimento dos dois: “Foi um desespero não. Só maldormiu suas noites. Achável o acabado, a Jiní e ele desterrados um do outro, tempos de distância” (ROSA, 1969, p. 233). Nesse momento, Lélio tem a percepção de que aquela vida com Jiní era por demais

restrita e estagnada e almeja a largueza de espaços, a antiga rotina, a fluência do tempo. “Então, ele requeria os costumes do existir miúdo, junto muito com os outros, sem inteiro, sem espaço. A tudo no comum trivial, de mistura. Tanto trabalhava. Os campos eram grandes. A tarde, as águas – ver os buritis, palma por palma” (ROSA, 1969, p. 233).

Na narrativa como um todo, embora Lélio mantenha proximidade com outras personagens femininas, como Manuela e Mariinha, os espaços onde vivencia as experiências mais marcantes, no que respeita aos anseios eróticos13, são a casa de

Rosalina e o rancho onde vivia Jiní, o que nos leva a contrapor esses lugares tão discrepantes.

Pode-se pensar, com Lotman (1978, p. 366), que se “ao ‘alto’ pertence a ausência de formas condensadas [...]”, no domínio do “baixo” há uma tendência à imobilidade, à sujeição: “a ausência de liberdade, de escolha, é uma particularidade do mundo material.” (LOTMAN, 1978, p. 367), o que nos remete diretamente à relação Lélio-Jiní, na qual a possibilidade de transcendência, de elevação, é nula. Tem-se o domínio absoluto das sensações físicas, o que constrange o vaqueiro a sair do estado de equilíbrio habitual – “A Jiní era trago desprendido de cálice ou garrafa, uma tonteira de se beber.” (ROSA, 1969, p. 198) – e viver em uma espécie de escravidão e desassossego: “[...] no domingo, não deixou de passar em casa de dona Rosalina. Foi, e não sabia esconder que estava apressurado, escravo em si das horas, não se consentia inteiro de pouso” (ROSA, 1969, p. 199).

A velha senhora possibilita ao vaqueiro alcançar a plenitude – seja na compreensão dos mecanismos da vida, seja no empenho em ensiná-lo a buscar novos caminhos - porque sua figura e tudo que dela emana estão imersos na criação, na liberdade, na altura, como mostra o excerto, no qual certas expressões igualmente associam a figura de Jiní aos limites da prisão, do “baixo”, do estagnado:

A vontade seca, sede de esfaqueado, o águo de se ter aquela mulher até ao fim, o mais, até aos motivos daqueles verdes olhos. Adiado figurando uma baixada avante, que o cavaleiro começa a atravessar, e o vargedo vira longe, no horizonte, aonde o cansaço dá mais pressa e

13 Eros, nesse passo, é tomado como a representação da “[...] força abstrata do desejo: tal é o Eros primordial evocado em certos mitos da criação do mundo.” (LÉVY, 2000, p. 319)

só a pressa é que descansa. A Jiní escondia em seu corpo, a vão, o estranho de alguma coisa sida da gente, acabada de roubar nos instantes, o encarnável de uma coisa que nela mesma a gente era

escravo de ir tornar a buscar. “Um dia, não tem mais Jiní...” – um precisava de se redizer, para sossego. E, quando saía de lá, Lélio se socorria do abarco de correr para a Lagoa de Cima, à casa, sentar-se no banquinho baixo, perto de dona Rosalina, escutar o que ela achasse de significar. Ela vinha de longes festas. Dali mesmo a gente parecia ter se apartado fazia muito, muito tempo. A ela um podia perguntar o que quisesse: a voz da Velhinha nunca se espantava. (ROSA, 1969, p. 229; grifos nossos)

Acerca das características que opõem Rosalina e Jiní e os espaços onde atuam, vale atentar para o eixo “alto-baixo”, elaborado por Lotman (1976, p. 370):

alto baixo longe perto espaçoso estreito movimento imobilidade

metamorfose movimento mecânico liberdade escravatura

informação redundância pensamento (cultura) natureza

criação ausência de criação (invenção de novas formas) formas condensadas harmonia ausência de harmonia

A verificação de tal polaridade no modo de ser e de agir das personagens é corroborada pela idéia de que as qualidades extrínsecas de Jiní – traços do rosto, beleza do corpo – sofreriam a ação do tempo e perderiam o poder de atração, ao passo que as qualidades intrínsecas de Rosalina, por não se sujeitaram ao implacável avanço temporal, continuam plenas de vitalidade e frescor, a despeito da idade avançada. Talvez seja por isso que as qualidades de velha e moça estejam mescladas: “De lance, o olhou – ria um pecado de riso quente no esmalte de seus velhos olhos de menina – como um lume d’água entre a folhagem, retombado e com reenvio de claridade” (ROSA, 1969, p. 199). Os termos “pecado” e “quente” sugerem vitalidade, efusão erótica; a expressão “riso quente”, ao acentuar três impressões, a sonora, a visual e a palatal, destaca a

energia vital que emana da personagem; em “velhos olhos de menina” acomodam-se as marcas antitéticas de maturidade e juventude, que conferem tamanha singularidade a essa personagem. Ademais, os nomes também comprovam a diferença em sua composição: a mulata é sempre reconhecida por Jiní14, ao passo que a senhora é identificada por Rosalina, Lina, Mãe-Lina, Zália, Velhinha, em atenção às várias facetas e vivências dessa personagem.

3 Os modos narrativos