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O narrador, o tempo e o monólogo de Miguel

2 Coordenadas de espaço e tempo

2.2 O narrador, o tempo e o monólogo de Miguel

A investigação das relações entre o protagonista e a categoria de tempo obriga-nos a considerar a instância do narrador, cujo posicionamento é vital para a manifestação da memória.

Conjugados ao flashback, os processos interiores de Miguel alcançam maior consistência graças à atitude do narrador heterodiegético que, através do discurso indireto livre, mantém-se próximo ao protagonista, valendo-se do conhecimento de quem experimenta os fatos para narrá-los: “no discurso indirecto livre, o narrador assume o discurso da personagem, ou, se se preferir, a personagem fala pela voz do narrador, e as duas instâncias vêem-se então confundidas” (GENETTE, 19--, p. 172-173), permitindo o acesso a percepções, sensações e desejos, como mostra este trecho, revelador da subjetividade de Miguel:

Na última noite passada no Buriti Bom, na sala, os lampeões, a lamparina no meio da mesa, o que fora: Maria da Glória certamente o amava, aqueles belos braços, toda ela tão inesperada, haviam falado de menores assuntos, disto e daquilo, o monjolo socava arroz, com o rumorzinho galante, agora Maria da Glória não o poderia ter esquecido, e o amor era o milagre de uma coisa. Glória, Glorinha, podia dizer, pegar-lhe nas mãos, cheirar o cheiro de seus cabelos. A boca. Os olhos (ROSA, 1976, p. 250).

Nota-se que o narrador conhece a aspiração do focalizador, em “Maria da Glória certamente o amava”, sua opinião, em “O amor era o milagre de uma coisa”, como também emocionadas impressões sensoriais, através da menção a características físicas do par feminino; detalhes que não são meras imagens avulsas, pois, como menciona Bosi (2000, p. 135) a partir da análise de uma quadra de Rosalía de Castro: são determinações que a experiência de quem “fala” já conheceu: “aqueles belos braços”, “o cheiro de seus cabelos”, “A boca”, “Os olhos.”

Da contigüidade e mesmo a mistura entre as três categorias - narrador, personagem e focalizador - passa-se a outra técnica narrativa, o monólogo interior, no qual o comando do ato narrativo fica a cargo da personagem e a marca da primeira pessoa se inscreve no discurso. No caso de um monólogo que não ocupe a totalidade do romance, a instância narrativa é mantida, lateralmente, pelo contexto. (GENETTE, 19--, p. 173)

Na iminência da analepse, percebe-se um movimento que se inicia com o discurso indireto, chega ao indireto livre, culminando no monólogo interior:

Na última noite passada no Buriti Bom, Miguel tinha conversado a respeito de coisas assim. O que fora:

Na sala-de-jantar. A lamparina, no meio da mesa. Nos consolos, os grandes lampeões. O riso de Glória. Iô Liodoro jogava, com Dona Lalinha. Glória falava. Ele, Miguel, ouvia.

De repente, reconheceu, remoto, o barulhinho do monjolo. De par em par de minutos, o monjolo range, gonzeia. Não se escuta sua pancada, que é fofa, no arroz. Ele estava batendo o tempo todo; eu é que ainda não tinha podido notar. (ROSA, 1976, p. 84-85)

O domínio do discurso indireto compreende os dois primeiros parágrafos, de “Na última noite [...]” até “Ele, Miguel, ouvia.” No parágrafo seguinte, percebe-se a oscilação entre a voz do narrador e a voz da personagem, característica do discurso indireto livre, no qual o som do monjolo, além de fazer “explodir os conteúdos recolhidos da consciência da personagem (SANTOS, 1978, p. 96), marca a autonomia narrativa concedida3 a Miguel: “Ele estava batendo o tempo todo; eu é que não tinha podido notar”, encerrando-a no final da analepse, novamente com a referência ao monjolo: “O monjolo trabalha a noite inteira... Assim o que fora. Aquele serão de despedida, no Buriti Bom” (ROSA, 1976, p. 91).

Comprovado pelas marcas discursivas referentes à primeira pessoa, “[...] emancipado de qualquer patrocínio narrativo” (GENETTE, 19--, p. 172), o monólogo interior caracteriza um discurso marcado por diferenças peculiares,

Primeiro, por se tratar de uma descida na consciência que se realiza sem intenção de análise ou de ordenamento racional, quer dizer, que reproduz fielmente o seu devir (naquilo que tem de espontâneo, irracional e caótico), conservando todos os seus elementos num mesmo nível; segundo – e fundamentalmente -, porque a sua verdadeira realidade é dada no plano da expressão, mediante a introdução de um discurso que rompe, definitivamente, com as características peculiares que a análise introspectiva tinha consagrado a propósito do monólogo ou solilóquio tradicional (causalidade, simplicidade, clareza) (TACCA, 1983, p. 93).

3 A esse respeito, Maria Célia Leonel (1985, p. 66) afirma que o aproveitamento do registro do monjolo, proveniente de anotação de viagem, ocorre no momento em que a personagem é autorizada a assumir gramaticalmente um discurso que já era dela.

Ao distender-se em vários fios condutores, que misturam percepções oriundas da primeira viagem ao Buriti Bom e representações da infância, a analepse veiculada por Miguel sofre um ordenamento “espontâneo”, como diz Tacca, no qual se percebem as múltiplas impressões acionadas na mente do narrador, interpostas, por certo, de acordo com o grau de impressividade de cada uma delas; mais uma vez, é a subjetividade de Miguel que entra em jogo, provocando o surgimento de determinadas imagens. Dessa forma, associa-se o registro sobre Lalinha, Maria da Glória, Maria Behu, iô Liodoro, Chefe Zequiel e o Buriti- Grande às evocações da infância – o tatu, a cachorra, o mutum (lugar e ave) e Dito – compondo um todo desembaraçado das exigências sintáticas, mas sem prejuízo racional.

Acerca da afirmação de Tacca (1983, p. 93), de que o monólogo interior tem como característica a ausência de lógica, vale a explicação de Genette (19--, p. 172), em relação à insistência de Dujardin nesse critério estilístico: para este escritor, no caso desse tipo de monólogo, como a personagem exprime seu pensamento mais íntimo, há maior proximidade com o inconsciente, que é anterior a toda organização lógica. Ao refutar essa explicação, o teórico francês afirma:

A ligação entre a intimidade do pensamento e o seu carácter não lógico e não articulado é [...], manifestamente, um preconceito de época. O monólogo de Molly Bloom corresponde bastante a essa descrição, mas os das personagens de Beckett são, pelo contrário, hiperlógicos e raciocinantes. (GENETTE, 19--, p. 172)

No que respeita à prevalência da voz de Miguel na analepse, vale lembrar que, distribuídos ao longo de “Buriti”, há muitos momentos em que a presença do focalizador configura-se e que podem manifestar alguma diferença em relação à primeira analepse. Veja-se o seguinte trecho, que também ilustra um flashback:

Resguardava meus olhos dessa moça, durante horas me adiei dela, as deusas ferem. Ali, no Buriti Bom, o capturável aspecto das criaturas

também se defendia de mim, me escapava. Melhor muito em minúcias,

me recordo de tudo o mais, depois e antes, na Grumixã, por exemplo, ou na estrada, enquanto viajava com nhô Gualberto. Mas, no Buriti Bom, todos circulavam ou estavam justos, num proceder estabelecido, que esquivava a compreensão. (ROSA, 1976, p.128; grifos nossos)

No fragmento, evidencia-se um processo interior em andamento no trecho grifado, com níveis de elaboração distintos, ainda que seja num único bloco, com segmentos que mostram uma articulação sintático-semântica singular, como em “o capturável aspecto das criaturas também se defendia de mim, me escapava”, até a ausência de lógica em: “Melhor muito em minúcias”, ocasionada pelo hipérbato somado à aliteração em /m/, para, em seguida, apresentar coerência plena em “me recordo de tudo o mais”.

Essa variação observada na linguagem do monólogo interior explica-se também pelo modo de ser do protagonista, pertencente à gama de personagens modernas, cuja personalidade não é estabelecida por meio da descrição externa, sujeita a parâmetros fixos: na verdade, sabemos muito de Miguel graças ao acesso a suas vivências interiores - obtido em grande parte através do monólogo. Ademais, acreditamos, a partir do dizer de Mendilow (1978, p. 171-172), que a ênfase na subjetividade, no particular e no individual pode significar “[...] privar- se das vantagens dos símbolos de comunicação públicos e generalizados.” Nesse sentido, vale registrar a afirmação do ensaísta (MENDILOW, 1978, p. 173), a partir dos dizeres de Bergson, que valoriza justamente a diferença no trato com a linguagem:

A palavra com contornos bem definidos, a palavra rude e acabada que fornece o elemento estável, comum, e conseqüentemente impessoal nas impressões da humanidade, esmaga ou pelo menos oculta a impressão delicada e fugitiva da nossa consciência individual.

Ligado à postura do narrador, há ainda um ponto importante a ser esmiuçado: como vimos, o conhecimento daquele que narra em “Buriti” é limitado. Ao não deter o conhecimento total dos fatos, o narrador da novela equipara-se àqueles das narrativas modernas, pois, nos romances tradicionais, “[...] o narrador, mesmo quando não se manifestava de um modo acentuado,

desaparecendo por trás da obra [...], impunha-lhe uma ordem [...], a partir de uma consciência situada fora ou acima do contexto narrativo” (ROSENFELD, 1982, p. 91-92).

Enquanto a técnica tradicional do romance dota o narrador onisciente de plenos poderes, contrariando os modos normais de percepção e narração (TACCA, 1983, p. 70), a narrativa moderna, via de regra, dispõe de um narrador que não tem ciência total dos fatos, podendo adotar o ponto de vista de uma ou mais personagens. Nesse sentido, Tacca (1983, p. 73) considera que:

A narração ganha em vibração humana se o narrador, em lugar de conceder a si próprio um ponto de vista privilegiado para a sua informação, se cingir àquela que podem ter os personagens; se renunciando à visão onisciente, optar por ver o mundo com os olhos deles. As coisas, os factos e os seres tomam, imediatamente, a forma e o sentido que têm para cada personagem, não para um juiz superior e distante. O narrador não decreta, mostra o mundo tal como o vêem os seus heróis. Distribui, pois, um caudal de informação equivalente à destes: [...] Esta forma exige, naturalmente, uma maior participação do leitor, que deve estar alerta: o que se diz não é o que é, segundo Deus ou um espectador distante, mas aquilo que os personagens crêem que é.

Como observa Santos (1978, p. 77, grifo do autor), há em “Buriti” a adoção da perspectiva de pelo menos três personagens, Miguel, Gualberto Gaspar e Lalinha: “Esta mobilidade na visão das coisas que se configuram no interior do romance, na terminologia de Bakhtin, compõe o romance polifônico. Em oposição ao romance monológico de compreensão uniforme, e de visão restrita.”

Ao se delegar a voz para mais de uma personagem constrói-se, segundo o teórico russo (BAKHTIN, 1981, p. 2), uma “[...] multiplicidade de consciências eqüipolentes e seus mundos que [...] se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade.” Em nosso estudo, passa-se dessa imiscibilidade para uma verdade, porque optamos pelo narrador Miguel: “escolheu-se Miguel porque se desejou, num momento, uma narrativa lírica. [...] o leitor, lançado no mundo dos narradores participantes, participa, em cada situação, de uma verdade” (SANTOS, 1978, p. 192; grifo nosso). Ao privilegiar Miguel, nosso estudo distingue uma construção peculiar do texto, na qual se sobrepõe o caráter lírico, advindo da composição do protagonista.