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A SECRETARIA DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA E A CONJUNTURA DE 1990 A

3.1 O jogo político de 1990 a

Em 1990, o Ministro da Saúde Alceni Guerra declarava a baixa qualidade dos medicamentos no Brasil como um problema terrível e afirmava que Vigilância Sanitária deveria ser prioridade de qualquer Ministro da Saúde: “(...) Temos que fazer algo rápido (...) Temos provas e mais provas que nos fazem ter a certeza de que, nessa área, a impunidade é a regra (...) Apertar o cerco à fiscalização será a prioridade da nova direção da SNVS”.2

O Projeto Inovar, lançado em 22 de agosto do mesmo ano, era definido pelo Ministério como uma verdadeira ponte entre o passado e o futuro da Vigilância Sanitária, e visava a implantação de um novo modelo de ação, ao redefinir e redirecionar a atividade de registro de produtos em busca de eficiência e eficácia.

Seus princípios básicos consistiam na redução da interferência governamental sobre as empresas, elaboração de normas para direcionar a ação da Vigilância Sanitária, concentração de esforços visando a qualidade dos produtos, descentralização das ações, elaboração de programas de fiscalização e criação de um sistema de garantia de qualidade. Previa quatro sub-projetos independentes: 1) Zerar: dar resposta a todos os processos pendentes, solucionáveis através de simples medidas administrativas; 2) Normatizar: dar resposta aos processos pendentes na área de produtos, cuja resolução dependia do prévio estabelecimento de normas e padrões; 3) Garantir: assegurar a qualidade dos produtos por meio da inspeção em linha de produção e do controle dos produtos acabados; e 4) Embasar: dar resposta aos processos pendentes, na área de produtos, que necessitam de análise mais detalhada, mediante fundamentação científica.

O primeiro princípio do projeto consistia na redução da interferência sobre as empresas, na linha do Programa Federal de Desregulamentação (Decreto 99.179/90), que objetivava fortalecer a iniciativa privada, reduzir a interferência do Estado nas atividades do indivíduo e contribuir para eficiência e menor custo da Administração Pública Federal, com melhor atendimento do usuário.

Pode-se dizer que muitos dos objetos com os quais a Vigilância Sanitária lida são motivo de grande interesse econômico, polêmica pública e iniciativas periódicas de mudança, aos quais suas políticas tendem a responder em movimentos de sístole e diástole: ora regulamentando, ora desregulamentando, em função da preponderância dos interesses econômicos e políticos do período. A ênfase na modernização da SNVS, nesta fase estava relacionada à mínima regulação, visto que dos sub-projetos do Projeto Inovar, somente o primeiro foi efetivamente implementado. Dar resposta, conforme depoimentos da época, significava conceder os registros sem análise técnica e, em especial, os de medicamentos.

O Conselho Regional de Farmácia do estado de São Paulo denunciava que o projeto agilizaria a concessão de 23 mil registros de produtos de qualidade duvidosa.3 Da mesma forma, a Comissão Estadual de Defesa do Consumidor de São Paulo alertava para os riscos da autorização de 5.418 produtos (entre eles 3.560 medicamentos) sem análise de critérios técnicos, somente administrativos: “(...) o Ministério da Saúde está tentando agilizar o processo de avaliação das milhares de petições de uma forma louca, e que nos preocupa muito”.4

Mas o projeto foi implantado e orientou as decisões técnicas até 1993, quando foi revogado e considerado “(...) danoso à Saúde Pública e, em particular, à Vigilância Sanitária, acarretando inúmeros prejuízos em relação aos processos e informações sobre produtos e serviços sob o regime de controle e de fiscalização dos órgãos de Vigilância Sanitária e controle de qualidade”.5 Na sua vigência, conforme Costa e Rozenfeld (2000), foi registrada irregularmente no Ministério da Saúde, uma enorme quantidade de produtos, especialmente medicamentos, em um processo de desregulamentação que ignorou que o modo de produção capitalista cria lógicas de conflito com os interesses sanitários da coletividade.

O Presidente Fernando Collor de Mello, em meio ao processo de impeachment iniciado pelo Congresso Nacional, renunciava ao cargo em dezembro de 1992. Itamar Franco assumia a Presidência e, em 1993, reorganizava os ministérios. Na reestruturação, a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária passa a denominar-se Secretaria de Vigilância Sanitária.6 3 FSP, 23/08/90 4 FSP, 07/09/90 5 Portaria SVS/MS nº 85 de 06/08/93 6 Lei nº 8.490 de 19/11/92

Neste período era editado o importante e polêmico Decreto nº 793, de 06 de abril de 1993, que determinava a obrigatoriedade do destaque ao nome genérico na rotulagem de todos os medicamentos e o uso dessa denominação na prescrição médica. Ao determinar que o tamanho das letras da denominação genérica fosse três vezes maior que o da marca, a medida visava aumentar a concorrência e baixar os preços. Era grande a preocupação com o preço dos medicamentos no período, devido à necessidade de estabilizar a economia. Porém, a indústria, que tem exatamente na marca sua estratégia de venda, não acatou essa decisão política e foram várias as liminares contra o decreto. Em meados de 1993, o Tribunal Superior de Justiça (TSJ) suspendia os efeitos das liminares concedidas. Mesmo assim, a indústria farmacêutica continuou a ignorá-lo.

Seminário realizado em março de 1993 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Ministério da Saúde (MS) apresentava, entre as resoluções, a implantação dos medicamentos genéricos no país. Mas, apesar de toda a dificuldade na implementação do decreto, o Ministério da Saúde não promoveu a divulgação destas conclusões.7

O ministro Henrique Santillo, que não contava com o apoio político do Presidente da República8, teria entregue o Ministério da Saúde e a SVS para o partido político ao qual era filiado9. Nesse âmbito, observa-se o aberto conflito entre o Ministro e a Presidência da República, dadas as intervenções diretas e indiretas desta última sobre a Secretaria. Um conjunto de várias denúncias de improbidade administrativa, sucessivas trocas de dirigentes e direta interferência político-partidária, caracterizaram o contexto do ano de 199410, dando continuidade ao processo de corrosão da SVS. Muitas eram as denúncias de corrupção, supostos pagamentos de propinas e falsificação de assinaturas para registro de alimentos, medicamentos e cosméticos. Na época, doze mil produtos aguardavam registro no Ministério da Saúde para serem comercializados.11

Em maio de 1994, o Presidente Itamar Franco intervinha informalmente na Secretaria: afastava o Secretário em exercício, nomeava como interventor um funcionário aposentado do Banco Central e proibia a circulação de lobistas. O Secretário afastado declarou não ter conseguido nomear nem o seu chefe de gabinete. O interventor nomeado

7 FSP, 27/10/94 8 FSP, 31/12/94 9 FSP, 27/10/94 10 FSP, 22/06/94; 20/08/94; 23/10/94; 27/10/94; 27/12/94

não teve melhor sorte, pedindo demissão do cargo pouco mais de um mês depois, alegando pressões insuportáveis.12

Em outubro de 1994, outro Secretário também era afastado. Conforme declarou, promoveu ações de retirada de medicamentos irregulares do mercado e iniciou a descentralização das ações de Vigilância Sanitária, visando eliminar o suposto cartel de corrupção, denunciando, após sua demissão, que setores do Palácio do Planalto intervinham para garantir a manutenção do esquema existente. Nesse período, também, a pedido do Presidente da República, técnicos das Forças Armadas foram convocados para trabalhar na concessão de registros.13

Uma Comissão Especial de Investigação (CEI) foi criada em 1994 pelo Presidente Itamar Franco para apurar as denúncias na SVS e em outros órgãos do governo federal. No respectivo inquérito, a indústria farmacêutica aparecia como suspeita de práticas de corrupção.14 Porém, tal Comissão viria a ser extinta em 1995, sem que tenha sido concluído nenhum dos inquéritos que apuravam as denúncias do setor.15

Em resumo, na gestão do ministro Henrique Santillo, a desordem na SVS se tornou explícita. Nas matérias da imprensa suspeitas de corrupção são o grande foco, as declarações dos dirigentes giram em torno de qualificações como precariedade, impossibilidade e interferência. Mas não há confrontos explícitos entre os setores público e privado porque, em síntese, de uma forma geral, ambos pareciam usufruir os dividendos da corrosão da Secretaria.