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No decurso de nossas vidas, saboreamos as emoções do jogo, as descobertas que fazemos a partir dele; e esse sentimento de revelação que ele nos proporciona é como um resgate daquilo que somos verdadeiramente. Natureza, história, tempo, espaço, tudo se transforma em apenas uma vertente da existência, pois, na verdade, o jogo manifesta-se não só como presença total, mas também como ausência; e se ele, em um momento, é abismo, em outro será delícia. A fascinação encontrada no jogo é explicada pela experiência da unidade. Os contrários se aproximam, o cansaço e o prazer dialogam calmamente.

Nós somos nós mesmos enquanto jogamos ou brincamos. Os estados de estranheza, repulsa, contato e fascinação são movimentos de comunhão conosco. E se nos ausentarmos do reconhecimento daquilo que somos, logo a experiência faz com que nosso ser abra suas entranhas.

Se o jogo é tanta coisa: comunhão, regresso, liberdade, autonomia, reconhecimento, cansaço, prazer, estranheza, abertura, enfim, ação, é porque os conteúdos existentes nele são necessários à vida, ao nosso crescimento. E esses conteúdos, internos e externos, por formar um núcleo indissolúvel,

possibilitam ao homem descobrir os conhecimentos da realidade em sua essência, ou seja, a compreensão da realidade e do mundo de maneira ampla, dinâmica e significativa.

Geralmente, o conhecimento é visto como uma fórmula, um conjunto de informações “enganosas“ e às vezes contraditórias, que são passadas para se decorar e logo após esquecer. Porque nada aprendemos de fato fora da experiência, do contato direto. O que deve importar ao homem- cidadão é a compreensão dos conteúdos que contribuirão para seu crescimento, para sua realização e felicidade.

O jogo é uma experiência de total entrega. Nessa entrega, os conteúdos são internalizados não como verdades exatas ou respostas certas, mas como reflexão de possíveis verdades e questionamentos. Não são as receitas prontas que movem o jogo, mas as coisas que estão por serem exploradas, descobertas e aprendidas. Isso porque o jogo e o brincar têm linguagem própria.

Na Ludopedagogia, essa linguagem própria do jogo está associada à linguagem dos conteúdos da disciplina a que serve. Servir a uma disciplina equivale a participar ativamente de uma ação conjunta de construção crítica, reflexiva e prazerosa do saber. Não devemos pensar com isso que o jogo é um “exercício”, um “dever”, uma atividade recreativa em que o objetivo maior seja transmitir conteúdos, ele de fato não o é. Seu significado, enquanto portador de conteúdos, está em que toda ação – elaboração, transformação, revelação – é dinâmica e traz em si elementos que fazem parte de nossa vida, do cotidiano, do mundo; e compreender esses elementos é exercitar a sabedoria, é aprender verdadeiramente.

Em uma aula de Língua Portuguesa, por exemplo, só aprendemos os conteúdos sintáticos, semânticos e morfológicos se os vivenciarmos, se os experimentarmos em nossa vida prática. Pontuar o texto não é diferente de pontuar os fatos, os acontecimentos, a vida. Os sujeitos inexistentes, indeterminados, etc, nos períodos, não são diferentes dos sujeitos da vida; os objetos diretos e indiretos são objetos diretos e indiretos também fora do texto gráfico, isso porque nossa história se faz textualmente. Não tem sentido entender a gramática ou a literatura fora de uma ação concreta.

Quando o educando é, ao longo de sua vida, obrigado a decorar regras, macetes e definições termina por assassinar sua própria língua. E quando se diz que “estudar português é um porre”, é porque o aprendizado da língua assume um valor mecânico, imperativo e diretivo.

Paulo Leminski, no poema O assassino era o escriba, traduz, de maneira criativa e lúdica, o sentimento de um aluno diante da postura castradora do professor de português:

O assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo de sujeito inexistente.

Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,

Regular como um paradigma da 1a conjugação.

Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, Ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito

Assindético de nos torturar com um aposto. Casou com uma regência.

Foi infeliz.

Era possessivo como um pronome. E ela era bitransitiva.

Tentou ir para os EUA. Não deu.

Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.

A interjeição do bigode declinava particularidades expletivas, Conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.

Um dia, matei-o como um objeto direto na cabeça.

Isso mostra que a experiência com jogos é uma conquista de nós mesmos. Sua finalidade é possibilitar o autoconhecimento, a revelação do ser que somos. Por isso, conforme muitos teóricos, ela é mesmo uma função essencial na vida. Assim, seu sentido mais profundo é proporcionar o contato do homem consigo mesmo; assegurar a experiência do sagrado onde o homem passa a perceber-se e aceitar-se tal como é, porque permite-se adentrar seus próprios vazios e restaurar, mesmo que aos poucos, o valor de sua existência; trata-se de fazer o ser que joga ou brinca reconhecer, na ação que executa, sua finitude e pequenez e, em nome da vida, entregar-se à experiência em total plenitude.

Se observarmos crianças, adolescentes e até mesmo adultos jogando ou brincando, logo perceberemos que eles se entregam à ação e nela se revelam plenamente. Assim acontece também na escola. Se observarmos os educandos em uma ação semelhante, podemos constatar claramente a entrega com que eles se dão à atividade vista aí como fio condutor e transformador do pensamento, das emoções, enfim, da construção do saber.

É lícito reafirmar que, na Ludopedagogia, o jogo e o conteúdo da disciplina a que serve devem constituir uma unidade indissolúvel, porque, entregues à experiência, os alunos mergulham na criação, na descoberta, no encontro plural com organismos vivos e dinâmicos. Se reduzirmos o jogo, na escola, apenas à diversão, ao relaxamento, etc, estamos retirando dele seu verdadeiro valor: o de ser e proporcionar conhecimento, encontro, respiração, exercício muscular, liberdade, experiência, respeito às regras, revelação, “plenitude.”

Diante da dicotomia que muitos educadores têm feito, ao longo dos anos, sobre conteúdos e jogos, podemos constatar que a ação Ludopedagógica vem perdendo muito de seu significado, enquanto prática pedagógica prazerosa e portadora de conteúdos; e o conhecimento, separado da atividade em si, tem sido imposto de forma diretiva e castradora, ocasionando o imobilismo e a indisposição dos educandos. Daí muitos educadores questionarem a eficácia do jogo na educação. Se o conteúdo da matéria escolar não estiver imbuído no jogo, nem um nem outro se ajustará à vida do aluno, despertando nele a alegria de descobrir, analisar, refletir, criticar e construir o saber. Ocorrerá, portanto, o contrário: tédio, desânimo, falta de interesse e indisciplina.

Normalmente, os jogos são alternados com aulas expositivas tradicionais e aplicados “apenas”, antes ou depois da exposição, muito mais como um exercício de fixação, um dever. Entretanto, é necessário entender que seus resultados não são diferentes dos deveres e exercícios convencionais.

Porém, insistimos em afirmar que o jogo, na prática educativa, só deixará de ser um passatempo frívolo quando as pessoas compreenderem que dentro dele já estão os conteúdos necessários para que os educandos possam, pela ação, reflexão e prazer, construir o saber, com “sabor”. No entanto, essa

compreensão tem sido difícil para muitos educadores e pedagogos que ainda não conseguem unir teoria e prática, jogo e conteúdo.

O importante continua a ser o fato de que não é necessário remeter o aluno a um conteúdo anterior a um jogo ou brincadeira, pois, através de ambos, simultaneamente, é que se chegará ao conhecimento. Não podemos deixar de levar em conta que toda atividade ludopedagógica evoca assuntos diversos. Porém, para compreendê-los é necessário estar em sintonia com a alegria, o desejo e o prazer de conhecer e aprender.

Assim, partindo desse princípio, é preciso enxergarmos o jogo como um instrumento de aprendizagem que proporciona ação, auto-expressão, alegria, liberdade, e ainda oferece caminhos para que educandos e educadores possam evoluir como seres construtores e transformadores, satisfazendo, dessa forma, suas múltiplas necessidades.

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