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3. A NAVEGAÇÃO CONTRA CORRENTE E OS OBSTÁCULOS NATURAIS

3.1 A alfa jornada de Villa Real

A configuração natural do rio Araguaia foi, no século XIX, o maior desafio à sua conquista. As grandes distâncias a serem percorridas, as doenças tropicais e os ataques de povos nativos eram indicações claras de que aquelas paragens não cederiam tão facilmente aos impulsos conquistadores do homem moderno. Para que esses infortúnios pudessem ser superados era fundamental estabelecer o povoamento das margens e um efetivo comércio ao longo do leito do rio, utilizando-se de grandes embarcações que pudessem estabelecer um tráfego viável e constante, tanto de pessoas quanto de mercadorias. A superação de tais dificuldades esbarrava nas barreiras oferecidas pelo leito do rio.

Neste capítulo, propomos fazer uma análise dos relatos de quatro viajantes brasileiros que visitaram o rio Araguaia entre 1792 e 1881. A escolha desses relatos foi feita de acordo com a importância da viagem e particularidades do período pela qual a região passava.

Dessa forma, demonstraremos a importância dos obstáculos naturais no contexto dos viajantes e como interferiram no processo de ocupação e exploração dessa região. Abordaremos também a forma como era estabelecida a relação homem/ natureza durante as viagens no sentido de compreender suas necessidades e expectativas para o futuro daquele imenso sertão.

3.1 A alfa jornada de Villa Real

Em 1791, o então governador da província do Pará, Francisco Maurício de Sousa Coutinho, ordenou a Thomaz de Souza Villa Real20 que liderasse uma equipe de barqueiros a uma viagem histórica: o reconhecimento da navegação pelo rio Araguaia.

Até aquele momento, a comunicação entre as capitanias do Pará e de Goiás eram realizadas parte pelo rio Tocantins e parte por via terrestre, numa situação em que as correspondências chegavam a percorrer mais de 3.400 km (BORGES, 1986).

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Villa Real era militar do exército, designado como cabo da expedição de reconhecimento da navegação pelos rios Tocantins, Araguaia e Vermelho, entre as cidades de Belém e Vila Boa.

A missão de Villa Real em tese era simples: subir pelo rio Tocantins de Belém até a foz do Araguaia, subir por este até sua confluência com o rio Vermelho e por fim, pelo rio Vermelho, chegar à antiga capital de Goiás Vila Boa.

Após a subida, Villa Real demorou quase dois anos preparando sua viagem de retorno, zarpando da barra do rio Ferreiro com o rio Vermelho em 22 de dezembro de 1792 com destino a Belém.

Devido a grande quantidade de chuvas no rio Araguaia nesta época do ano, em diversos momentos a viagem teve de ser interrompida, perdendo dias inteiros sem possibilidade de navegação. Contudo, o grande volume de água apresentado pelo rio era de importância primordial para a transposição das cachoeiras, corredeiras e afloramentos de rocha pelas embarcações. Villa Real cita em seu diário quatro cachoeiras, todas situadas abaixo da Ilha do Bananal21.

Em 6 de janeiro de 1793, apenas 16 dias após zarpar, as doenças começaram a assolar os tripulantes, obrigando Villa Real a ancorar para poder cuidar dos barqueiros doentes. Dez dias após, morre um dos doentes, o ajudante João Barreiro. No dia 26, a peste faz mais uma vítima, dessa vez Antônio João que também foi sepultado às margens do rio Araguaia, tendo o ritual de sepultamento acompanhado pelos nativos, para os quais Villa Real mandou o interprete pedir para não desenterrarem o corpo de seu camarada.

Até o século XIX as doenças tropicais eram consideradas um dos grandes perigos para os viajantes que se aventuravam próximo aos trópicos, estando quase sempre relacionadas ao clima quente e úmido comuns na região. Segundo Albuquerque et al (1999), muitos dos naturalistas estrangeiros que estiveram no Brasil no século XIX fizeram relatos acerca das moléstias que atingiam a população local e os visitantes. A visão científica europeia predominante na época buscava determinar a origem desses males em contexto universal, levando a crença de que a natureza exótica e exuberante proporcionava a ocorrência das enfermidades, além de justificar as diferenças sociais e culturais dos povos que a habitava. Segundo Sônia M. Magalhães (2004) a deficiência na alimentação eram um sério problema para a saúde dos goianos no século XIX. A autora salienta que a alimentação era banal e mesmo para muitos daqueles que saciavam a fome acabavam apresentando algum tipo de doença ligada à nutrição.

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Com 20 mil km², a Ilha do Bananal está situada na região Oeste do Estado do Tocantins é a maior ilha fluvial do mundo. Possui rica biodiversidade, abrangendo ainda o Parque Indígena do Araguaia (Povos Javaé e Karajá) ao sul e o Parque Nacional do Araguaia ao Norte. Ver: http://www.livre-expedicoes.com/index.php/ilhabananal.

Quanto se trata especificamente dos viajantes do Araguaia, é comum observarmos o racionamento da alimentação e até mesmo a falta de alimentos que, somado ao enorme esforço utilizado para impulsionar as embarcações, diminuía consideravelmente a resistência dos barqueiros às moléstias.

Normalmente, a ração dos viajantes resumia-se a farinha de mandioca, carne seca, pescados e caça. A farinha e a carne seca eram providenciadas antes da partida ou em pontos de apoio (quando houvesse) ao longo do rio, tendo como principal vantagem à baixa perecividade. Já os pescados e a caça eram conseguidos durante a viagem, levando os barqueiros a dependerem do sucesso dos mariscadores22. Durante a viagem de Villa Real, não havia nenhum ponto de apoio entre a cachoeira do Itaboca no rio Tocantins e Vila Boa.

O relatório descreve também os contados realizados com os nativos do vale do Araguaia, dando ênfase ao perigo oferecido pelos Apinagés, temidos até mesmo por outros grupos indígenas.

A passagem pelo trecho encachoeirado foi facilitada pelo grande fluxo do rio apresentado no período de chuvas, cobrindo grande parte das rochas e criando canais que acomodavam a passagem das embarcações. Logo após os Martírios, a comitiva já ouve o barulho do impacto das águas com as rochas da Cachoeira Grande, a qual foi superada em apenas duas horas e meia, tamanha era a velocidade da correnteza. Três dias depois, em 10 de Fevereiro de 1793, chegaram à barra do Araguaia com o rio Tocantins.

Villa Real contou em seu diário, quatro cachoeiras (Figura 2); a primeira localizada logo após a “povoação dos Karajás23”, seguido pela Carreira Grande24, cachoeira dos Martírios e Cachoeira Grande25.

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Os mariscadores eram tripulantes contratados especificamente para providenciar a caça e a pesca durante a viagem, também era responsável por conduzir a montaria, uma pequena embarcação utilizada para a exploração dos rios (ERTZOGUE, 2014).

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Próximo à cidade de Pau D’Arco-TO. 24

Cachoeira de São Miguel, próximo à cidade de Xambioá-TO. 25

Figura 2 – São Miguel (1), Carreira Comprida (2), Martírios (3) e Santa Isabel (4).

Fonte: Google Earth, 2015.

O relatório produzido por Villa Real apresentou de maneira simplificada a melhor forma de conduzir a navegação pelo Araguaia que até então era inexplorada. Apesar de modesto, seu diário de viagem ofereceu subsídios suficientes para que os governadores de Goiás e Pará pudessem por em pauta essa possibilidade.

Tristão da Cunha Menezes presidente da província de Goiás na época, acreditava que a navegação do Araguaia serviria mais à comunicação entre as províncias do Pará e do Mato Grosso, possibilitando a Goiás estabelecer-se como entreposto comercial.

Já Coutinho, entendia que a navegação comercial serviria para estabelecer melhor a comunicação entre Belém e Vila Boa e, posteriormente, com Cuiabá. Segundo Coutinho, com a navegação viria o povoamento e aproveitamento daquela região que se encontrava praticamente deserta.

A viagem de Villa Real deu início a um processo que levaria décadas para gerar resultados. Embora realizada ainda no século XVIII, apresenta características não muito diferentes das descritas pelos viajantes do fim do século XIX, refletindo as dificuldades em superar os obstáculos deste imenso rio.

Tabela 1 – Distâncias demarcadas por Villa Real.

Figura 3 – Trecho navegado por Villa Real entre 1791-93.