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As possibilidades de interação proporcionadas pela tecnologia digital de baixo custo e pela popularização da internet causaram grandes mudanças no jornalismo, seja na produção de notícias, na divulgação da informação ou na interação com o público. E quando falamos de jornalismo público, o avanço tecnológico causou uma espécie de reconfiguração do movimento.

A migração para a internet dos sistemas midiáticos que realizaram as primeiras experiências do jornalismo público, o fim do financiamento dos principais projetos do movimento e o encerramento do Pew Center for Civic Journalism, em 2003, sinalizaram que era preciso debater estratégias de sobrevivência para o jornalismo público na contemporaneidade.

Leonard Witt outro pesquisador de referência no jornalismo público norte- americano, publicou um artigo em 2004, destacando que o movimento tinha causado impacto nos jornais e as mudanças já eram percebidas. Para o autor, “[...] o jornalismo público está diariamente nas manchetes de jornais como o Savannah

Morning News, em histórias cheias com as vozes de gente real e boxes dizendo aos

leitores como se envolver ou aprender mais sobre os assuntos discutidos [...]” (Witt, 2004 apud BARROS, 2009, p. 33). O pesquisador reconhecia que os preceitos do jornalismo público estavam sendo absorvidos por outros movimentos, mas encarava essa transformação com otimismo.

Muito do que os jornalistas públicos ou cívicos têm lutado para conseguir por mais de uma década, na maior parte das vezes, de dentro da mídia impressa, está sendo repentinamente empurrado sobre a mídia, de fora, à velocidade da luz. (WITT, 2004 apud BARROS, 2009, p. 33-34).

De fato, se um dos propósitos do jornalismo público é estreitar as relações entre os sistemas midiáticos e o cidadão, as tecnologias contemporâneas da informação e comunicação quebraram as barreiras sociais, territoriais e temporais que separavam o público dos selecionadores de notícias.

Nessa perspectiva, Vicente (2010) acredita que o jornalismo público ganhou consistência com as potencialidades da chamada Web 2.0, a segunda geração da

internet, caracterizada pela utilização da web como plataforma e pela colaboração

do internauta. Para o autor, “o jornalismo dos cidadãos convoca agora exigências directas por setores sociais até aqui conhecidos como público”, e essas reivindicações têm como base a “liberação tecnológica da produção de discursos”. (VICENTE, 2010, p. 10). O pesquisador ainda reforça que as propostas do “antigo jornalismo público” são indissociáveis a essa realidade participativa, no que tange uma das suas principais reivindicações, que é transferir aos cidadãos o poder de interferir na agenda midiática.

Rosário (2014) pactua o mesmo pensamento, quando reforça que o jornalismo público da contemporaneidade consolidou-se como jornalismo cidadão, no qual o público mantém uma ligação horizontal com os sistemas midiáticos e

hipermidiáticos. “O jornalismo wiki, como praticado na WikiNews, por exemplo, é a forma mais evidente disso: funciona numa aplicação baseada na web que permite a qualquer um editar, remover ou adicionar conteúdo [...].” (ROSÁRIO, 2014, p. 16).

Apesar de alguns autores defenderem que o jornalismo cidadão é o formato contemporâneo do jornalismo público, nascido na década de 1990, há diferenças que devem delineadas. O jornalismo cidadão parte da premissa de que qualquer pessoa pode elaborar, editar e veicular material jornalístico, sem interferência de um profissional da comunicação ou editor (BARROS, 2009). Enquanto o jornalismo público defende uma aproximação entre jornalistas e público e está comprometido em promover discussões contextualizadas sobre temas relevantes ao debate. Um “jornalista público”, ciente da sua responsabilidade social, abre mão do papel de observador e passa a ser defensor de interesses públicos.

Sabemos que a internet ainda não é acessível a todos, mas a população conectada aumenta a cada ano. Uma pesquisa divulgada pelo IBOPE17, em 2014, revelou que mais de 120 milhões de brasileiros têm acesso à internet, que por sua vez, está em expansão e mais barata. Nas palavras de Castells (2003, p. 08), a

internet é “um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido em escala global”. Nessa

17 INSTITUTO BRASILEIRO DE OPINIÃO PÚBLICA E ESTATÍSTICA (IBOPE). Número de pessoas

com acesso à internet no Brasil. Pesquisa Nielsen, 2014. Disponível em:

<http://www.nielsen.com/br/pt/press-room/2014/Numero-de-pessoas-com-acesso-a-internet-no-Brasil- supera-120-milhoes.html>. Acesso em: 02 mar. 2015.

perspectiva, a internet fortaleceu o jornalismo público, na medida em que permite que o cidadão interaja com os sistemas de mídia e crie sua própria agenda informativa.

Concordando com Borges (2009), acreditamos que o jornalismo público passa por um período de reconfiguração, diante dos novos desafios que surgem em virtude das mudanças sociais e tecnológicas da contemporaneidade, mas é preciso preservar sua identidade. Na visão da pesquisadora, no que diz respeito às rotinas profissionais, os principais desafios do jornalismo público são disponibilizar canais de participação do cidadão na internet e também fora dela, e influenciar a mobilização do cidadão em prol de causas políticas. Em outras palavras, é preciso promover “ligações entre os públicos online e os públicos da sociedade civil, orientando-os para uma efectiva inclusão na esfera mediática, a partir da qual possam exercer influência sobre o poder político”. (BORGES, 2009, p. 110).

Ainda de acordo com a autora, é preciso que o jornalismo público consolide o seu formato de jornalismo de profundidade, em que a informação é tratada de forma menos objetiva e mais abrangente, tendo como prioridade a formação crítica do cidadão. Dessa forma, o jornalismo público reafirma o seu modelo alternativo de exercício da profissão e preserva suas raízes.

Em síntese, para que o jornalismo público se sustente enquanto movimento, é necessário que ele adapte as experiências vivenciadas pelos “jornalistas públicos” ao atual panorama hipermidiático contemporâneo, marcado pela cultura da convergência, em que público está cada vez mais ativo e participativo, na medida em que interage com os sistemas de mídia no ciberespaço, produz e compartilha conteúdos. Em época de convergência, assistimos ao nascimento de novas mídias e

hipermídias, as ferramentas online de armazenamento, produção e

compartilhamento de informações multimídias, a exemplo da WebTV, que tem como característica a oferta de conteúdo jornalístico audiovisual na rede, elaborado com base nas possibilidades interativas que a web oferece.

A seguir, serão aprofundadas as discussões sobre a cultura da convergência, mas antes é necessário refletir sobre a conjuntura da contemporaneidade, a era da modernidade líquida, onde a sociedade fluida, inconstante e individualizada tem como marca o rompimento com antigos padrões sociais, culturais, religiosos e políticos.

3 CENÁRIOS DA CONTEMPORANEIDADE: CONVERGÊNCIA JORNALÍSTICA EM TEMPOS DOS SISTEMAS HIPERMÍDIA

Antes de abordar o processo multidimensional da cultura da convergência, é preciso retomar o contexto da contemporaneidade. O sociólogo polonês Sygmunt Bauman, que tem se dedicado aos estudos da complexidade e diversidade da vida humana, criou uma metáfora para expressar as condições do mundo contemporâneo. Na modernidade líquida, tudo é passageiro, fluido, incerto, guiado pela lógica do consumo. A liquidez da contemporaneidade se opõe à solidez do tempo moderno, estável, composto por padrões sociais enraizados, como explica Bauman (2003, p. 02):

É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "autoevidentes".

A comparação do pesquisador reflete a inconstância dos valores das sociedades contemporâneas, que se configuram pelo rompimento de antigos padrões sociais, culturais, religiosos e políticos. A modernidade líquida também é vista como um processo de desconstrução, parte da edificação de uma nova ordem social, marcada pela liquefação de pontos de referência.

Numa época em que nada é feito para durar, a organização do tempo mudou. Na modernidade líquida, o tempo não é cíclico, nem linear, é um tempo sem direção, vivenciado através de momentos, “cada um deles episódico, fechado e curto, apenas frouxamente conectado com o momento anterior ou o seguinte, numa sucessão caótica”. (BAUMAN, 2009)18.

O primeiro livro em que Bauman retratou a temática foi Modernidade Líquida (2001). Na obra, o autor aborda as mudanças sociais da contemporaneidade, marcada pela dissolução da ordem moderna, por dinâmicas fluidas de tempo e espaço e por indivíduos cada vez mais desprendidos de laços sociais.

18 BAUMAN, Zygmunt. 'Estamos constantemente correndo atrás. O que ninguém sabe é

correndo atrás de quê'. Extra, Rio de Janeiro, 26 abr. 2009. Entrevista concedida a Karla Monteiro. Disponível em:<http://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/zigmunt-bauman-estamos-

constantemente-correndo-atras-que-ninguem-sabe-correndo-atras-de-que-273321.html>. Acesso em: 02 jun. 2015.

Em tempos líquidos, o homem vem perdendo a capacidade de estar só consigo mesmo, de forma que os momentos de reflexão estão sendo substituídos por horas conectados à internet, via smartphone, tablet, notebook etc. Bauman (2009) enfatiza que é devido à dependência humana às tecnologias que as pessoas em geral tendem a viver em um ritmo cada vez mais acelerado, logo, quando muito tempo distantes dessas ferramentas têm a sensação de enfado. E esse ritmo acelerado de vida é causado, principalmente, pelo consumo. Bauman (2009) argumenta que o homem autossuficiente, satisfeito com suas necessidades materiais e espirituais foi substituído por um ser que satisfaz seus desejos através de mercadorias. A felicidade plena não é mais desejada nas sociedades contemporâneas, de forma que há uma busca incansável por uma satisfação mercadológica, fluida e efêmera, que pode ser adquirida com cartão de crédito.

Na contemporaneidade, a comunicação também ficou mais frágil e flexível. As tecnologias da comunicação dissolveram a solidez do antigo sistema comunicativo verticalizado, de forma que, na modernidade líquida, o ritmo de produção de notícia é cada vez mais estabelecido pelo público. A internet veio para revolucionar as tradicionais formas de produção, distribuição e circulação de notícias e, através ela, o público produz um fluxo intenso e incontrolável de conteúdo capaz de influenciar a agenda midiática. As transformações nos modelos convencionais de produção, circulação e consumo de notícias configuram o que Rublescki e Silva (2012, p. 119) nomeiam de jornalismo líquido:

[...] Insere-se em uma nova ecologia da mídia, em que a configuração de um sistema comunicacional integrado por conexões e nós propicia um fluxo permanente de notícias e interações entre usuários a partir de vários subsistemas, sendo particularmente marcado pela ruptura dos limites espaciais e temporais que caracterizavam as práticas jornalísticas na modernidade.

O jornalismo líquido representa o declínio do jornalismo convencional no que diz respeito ao seu papel de instituição mediadora na sociedade, mas não o fim. Na sociedade líquida, “o leitor” e o jornalista desempenham funções similares no processo de construção de conteúdos. Numa entrevista ao Diário Catarinense, em maio de 2015, Castells ressaltou os impactos do avanço tecnológico no jornalismo contemporâneo, enfatizando que a produção de notícia já não é mais

responsabilidade exclusiva de jornalistas19. Na realidade, as notícias estão sendo elaboradas por um conjunto de pessoas, incluindo jornalistas profissionais, agências de notícias e cidadãos jornalistas, pessoas comuns, que acessam a internet através de smartphones, nos computadores em casa, em cibercafés e escolas, e interagem na rede com outras pessoas e com sistemas midiáticos e hipermidiáticos. Da mesma forma, o jornalismo passa por uma “desconstrução criativa”, que altera modos de produção de notícias, a disseminação de conteúdos, o relacionamento entre grandes empresas midiáticas e seus públicos e modifica até o papel do jornalismo na contemporaneidade.

Para Jenkins (2006), esse cenário em que produtores de notícia e público estabelecem relações interativas compõe a cultura da convergência. Um fenômeno amplo e multidimensional, que vem modificando as tecnologias existentes, a indústria midiática e a maneira como consumimos informação. Esses e outros aspectos da cultura da convergência serão abordados no tópico seguinte.